Tradução por Daniel Alves.
Segunda parte da entrevista que Alenka Zupancic concedeu à Revista Indigo em 2011, em que debate questões de suas leituras da filosofia e do mundo contemporâneo. A primeira parte está disponível em nosso blog.
Indigo: Quando esse ativismo ou movimento tem lugar? Quando as pessoas se tornam seguras o suficiente para aceitar riscos? Ou quando o capital de fúria está elevado o suficiente para fazer a mudança?
Alenka Zupancic: Sobre as pessoas se sentirem segura, eu não acho que isso seja fundamental em nenhum caso. Isso é verdade em certo contexto em que o mínimo de ativismo pode custar a sua vida e não há muito espaço para que para que ele exista porque você pode ser preso ou imediatamente assassinado. Então nesse sentido, se você tem um espaço de segurança que pode trazer um momento um pouco maior e mais produtivo, isso não é ruim. Mas ao mesmo tempo, se a segurança em si mesma é a condição, então esse tipo de ativismo obviamente têm os seus limites. O ativismo para os outros sem querer refletir sobre nossa própria posição na sociedade envolve introduzir os outros a quem queremos ajudar. Em uma certa medida, a segurança não deve ser o último fundamento no qual o ativismo pode expandir. O ativismo é sobre acreditar fortemente em algo e fazer isso concreto no mundo, e então eu penso ser capaz e estar pronto a aceitar riscos por isso. Antes de perguntar, “O que posso fazer para melhorar?”, deve-se sempre olhar para a situação presente e olhar para os lugares onde alguma coisa está acontecendo. Eu não acho que se deva esperar pelo evento. Por exemplo, Peter Hallward sempre diz que há todos os lugares do mundo – a Europa não é o centro do mundo. Que somente aqui seja chato ou tenha políticas ruins não significa que seja assim em toda parte. As coisas estão acontecendo de forma diferente e isso deveria ser o ponto de partida de toda ética ou de todo exame ou questionamento político. Não simplesmente perguntando o que fazer por nós mesmos, mas talvez esquecer nós mesmos e ver onde alguma coisa está realmente acontecendo e então construir mais com isso. Eu acho que isso é um caminho muito mais seguro para a o aperfeiçoamento ter lugar.
Indigo: As pessoas começam a ser ativista para irem em direção de algum bem e também quando elas acham que existe algum mal. Como podemos definir essa palavra “mal” no século XXI?
Alenka Zupancic: Eu acho que um modo muito produtivo de fazer isso é através de Kant, porque ele tem essa noção muito interessante do mal que não é de nenhuma forma relacionada, e talvez ele tenha algumas falhas nesse assunto, a algum mal empírico maior ou menor. Porém, é um modo de funcionamento que abandona qualquer ambição por emancipação ética ou política. Para ele o mal radical é o ato de desistir, ou aceitar ser reduzido a somente natureza ela mesma. É a resignação de dizer que nós somos somente pessoas e que nós temos nossos defeitos e tudo mais. É claro que isso é verdade, mas não se deve perceber isso como mais alguma coisa que existe no mundo. Então essa é uma maneira de se aproximar dessa difícil questão, ela permanece ainda um pouco abstrata, mas ainda assim de alguma maneira ética ou filosófica. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que toda a questão de como o mal é definido na sociedade presente é, claro, sempre muito relacionada com certas decisões políticas. Não é simplesmente reconhecer o mal enquanto tal; não é simplesmente óbvio. Pode ser verdade, mas também ser egoísta dizer que esse ou aquele ataque terrorista é mal. No tempo da brigada vermelha existiu uma possibilidade de dizer que havia alguma dúvida em denunciá-los com maus. Nada obstante, é possível reconhecer algo com potencial para ser um simples mal. Mas obviamente eu não estou dizendo que é isso que procuramos na maior parte dos casos de terrorismo. Ao mesmo tempo a noção ou o axioma do mal existe como um jogo onde a política reacionária usa a ética ou o medo ético como pretexto. Pode-se dizer que isso é a política do mal. Eu penso, em uma perspectiva empírica, que toda a questão de o que é o bem e o mal é algo para ser constantemente, não só reinventada, mas pela qual se deve lutar. Existe um certo nível transcendental para essa questão e há também esse nível empírico onde esse espécie de designação precisar ser parte de algum tipo de antagonismo e luta, e preciso ser vista como tal. Como defini-la é sempre uma questão muito difícil. Existe algo nessa questão que pode ser reduzida a um nível muito banal.
Indigo: Existe um ponto interessante no seu livro sobre o medo. Como essa noção do medo pode ser usada para fazer a ética mais construtiva? Ou o medo simplesmente mata a ética de alguma forma?
Alenka Zupancic: Não, eu definitivamente penso da segunda forma. O medo é simplesmente um fato da vida. Apesar da ética kantiana ser normalmente vista como algum tipo de ir além de toda resistência e capacidade humana e viver em algum tipo de guerra impossível. Mas não é isso que eu leio em Kant. O medo é definitivamente parte da composição subjetiva de um sujeito ético ou político. Então ele não necessariamente bloqueia a ética porque ele não se refere à ética, essa não é simplesmente sobre atos heroicos. Aqui eu concordaria bastante com você, mas a ética é frequentemente sobre uma obrigação ou um trabalho muito comum. Não é simplesmente ir e completar algo extraordinário. Pode ser isso, mas também pode ser certa ética de fidelidade a uma certa prática de persistir nisso apesar do risco, não somente da sua vida, mas talvez você arrisque perder respeito ou uma certa posição. Muitas vezes existem riscos, mas ao mesmo tempo o que é bom em Kant é que ele tenta nos fazer como, no que ele chamaria de constituição ética do sujeito, esse tipo de risco não é necessariamente percebido como tal. Eu acho que entendemos mal Kant, mas eu acho que o que a perspectiva dele nos permite dizer e conceituar é porque o que você percebe como uma grande perda muda com o ato de engajamento prático em um conjunto de valores. Não que isso seja olhar sempre a frente, o medo é muito maior ou muito mais paralisante se colocado desse modo. Em algum sentido deve-se pensar a ética como um ato através do qual alguém muda em relação ao que era antes. Esse é a afirmação de Kant, “Através de um ato ético não se é mais a mesma pessoa”. É claro que isso não é algum tipo de transformação mística, mas aqui existe algo. Nós não somos somente algum tipo entidade tola, subjetiva, que afeta o mundo em torno de nós, mas o que nós fazemos também nos transforma e muda a forma que olhamos para as coisas. Então poderia ser simplesmente dito que o grande medo de perder alguma coisa transforma. O que nós perdemos não é mais visto como uma perda quando isso acontece. Eu penso que esse é o bom móvel da ética, não esse caminho ou vontade de ir e conseguir algo mesmo se isso significar um último sacrifício. Eu acho que esse é muito o jeito hollywoodiano. Não é a maneira mais produtiva para pensar o que a real política ou ética significa.
Indigo: Nós podemos ser otimistas sobre a noção de Kant de paz perpétua poder estar relacionada com a justiça global no século XXI, que é bastante diferente de sua própria noção de paz perpetua? Como pode essa noção de paz perpetua ser transposta para nosso tempo de capitalismo global?
Alenka Zupancic: Esse é uma questão difícil. Eu diria que ela não é possível hoje. Mas isso não quer dizer que ela é impossível. Existe algo que realmente é impossível na constelação que estamos vivendo agora, mas algo pode acontecer que todo o pano de fundo, todo o ponto de partida mude, e então algo absolutamente além da imaginação de hoje pode se tornar uma opção real. Eu não acho que aqui se deva usar a psicanálise para provar como as pessoas nunca vão mudar – talvez elas nunca vão mudar – mas nos tempos de agora elas podem mudar como espécie, eu não sei. Esse não é o horizonte último sobre o que sabemos sobre a humanidade.
Mas talvez uma maneira de responder sua questão fosse relacioná-la com a discussão inicial do bem comum porque eu acho que possivelmente deve-se agir em um sentido que algo não é bom a não ser que aconteça para todos. Isso pode na realidade ser visto de duas formas: uma é empírica (dizer que nós temos o bem e agora nós devemos dividir com todos) e outra é a questão da desigualdade e do não-comum (isso é necessário para que esses bens sejam produzidos, o próprio sistema de funcionamento). Relacionando as duas duras questões, em um sistema onde a única produção de mais ou menos bem comum sempre depende de algumas partes da humanidade serem excluídas, não somente do compartilhamento, mas em sua própria produção, o problema é bem maior. Não somente excluir algumas pessoas do uso, é também explorar algumas pessoas para produzir esse bem. Então, parte disso, se o sistema precisa desse tipo de desigualdade e exploração para funcionar, algo pode eventualmente ser usado para o bem comum, então eu acho que nós não podemos nunca entrar em nenhuma discussão possível sobre uma paz perpetua. Porque, claro, guerras são também categorias político-econômicas. Nesse tipo de sistema, quando a questão do compartilhamento é sistematicamente levantada no nível do que nós já temos, talvez nós devêssemos redistribuir e então as pessoas na África terão mais. Mas eu penso que isso não é o suficiente se o próprio sistema para produzir o quer que seja a mais que nós temos é construído de tal maneira que ele precisa se esgotar para sua própria perpetuação. A exclusão sistemática de algumas partes do mundo ou em camadas ou classes da sociedade não pode nunca se tornar a base para uma paz perpétua. Eu acho que isso é bom é então vem também a questão, “A paz é boa, mas a que preço?” Se isso significa uma violência sistemática desse tipo, talvez nós podemos ter muitos séculos semnenhuma guerra, mas aí pode haver muita violência e sofrimento em outro nível. Não é somente a guerra que é violenta. Então alguma coisa deveria mudar no próprio modo que esse antagonismo é organizado agora. A esse respeito eu não sou tão otimista imediatamente. Mas eu não diria que isto é um rebaixamento geral e que nada poderia acontecer de outra forma.
Indigo: Qual a questão teórica mais urgente que você gostaria de trazer?
Alenka Zupancic: Eu acho que talvez a questão o que é um coletivo e como ele funciona? Quero dizer, o que é mais, não é algo para perguntar às pessoas, mas isso realmente deveria existir entre as pessoas. Ao mesmo tempo isso está relacionado com essa coisa estranha que é coletiva que não é simplesmente a soma de todos os indivíduos que estão reunidos, mas esse corpo inteiro, que é mais que todos esses e o que alguém poderia fazer começando disso. Eu não acho que alguém pode ir além desse fundador familiar do qual sempre se começa quando tudo está terminado. Em um certo nível a filosofia não é um momento coletivo nesse sentido imediato. Mas isso não quer dizer que ela não reconhece ou não pode dizer algo sobre isso. Ela é uma prática solitária que ao mesmo tempo pode concernir a todos. Ela pode ter parte em algum tipo de organização coletiva, é claro. Mas não é imediatamente ela. Então minha questão urgente seria “ do que um coletivo é capaz?”.
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