Por Louis Althusser Traduzido por Gabriela Fero e Reginaldo Gomes, via Akephale.
Este texto, intitulado “Lam” por Althusser, foi-lhe encomendado por Wilfredo Lam em uma carta datada de 18 de agosto de 1977. Ele seria incluído no catálogo de uma exposição retrospectiva sobre a obra de Lam, prevista para abril de 1978 na Maison de la Culture em Nanterre, que acabou por ser cancelada. De acordo com a carta, o catálogo também contaria com textos de Aimé Césaire, Gabriel García Márquez e Alejo Carpentier. Althusser enviou este texto a Wilfredo Lam acompanhado de uma carta datada de 13 de outubro de 1977.
O texto de Althusser foi finalmente publicado após a morte do pintor em 1982 nos três catálogos de uma exposição apresentada sucessivamente no Museu Nacional de Arte Contemporânea de Madrid (20 de outubro à 12 de dezembro de 1982), no Museu de Arte da cidade de Paris (23 de março à 22 de maio de 1983) e no Museu Ixelles em Bruxelas. O catálogo da exposição parisiense intitula-se Wilfredo Lam: 1902-1982.
Lam, eu poderia dizer: para mim são corpos esticados até o extremo da linha, linhas estendidas até o ponto final, ângulos como proas encalhadas por terem dividido o espaço de seu impulso até a sua última praia – Lam, eu poderia dizer: ele pinta no limite, como outros, raros, pensaram.
No entanto, prefiro escrever: estas palavras são de um homem que, entre milhares e milhares de outros, um dia encontrou Lam em seu trabalho.
Mas será que devemos falar a linguagem arriscada do encontro? É preferível falar a que está à entrada, a mais natural possível, no mais próximo dos espaços e no mais familiar dos mundos.
Como todos, fiquei impressionado com alguns pintores, chocado com outros, por vezes intrigado e até mesmo dilacerado – por alguns dos grandes. E cada vez foi necessário um longo trabalho, nos recantos mais silenciosos do corpo para quem sabe, restabelecer a paz de um acordo ou para dizer sim ao sofrimento.
No entanto, a primeira tela que vi de Lam foi como se eu já a conhecesse desde sempre. Eu não sabia: mas ela já fazia parte de mim. E cada vez que eu avançava em sua obra, por seções e acasos, os dentes da vida [les dents de la vie], para os primórdios dos corpos nus e mudos como rostos, ou alhures, e mais tarde, cada vez ele sempre me precedeu.
Eu realmente acredito que esse é o seu milagre: esse homem, que vem até nós do fim do mundo, do outro lado, da borda de um oceano sem fim, esse pintor que traça em linhas tão longas ou densas pássaros feras flores trepadeiras selvas e humanos nunca antes vistos, esse homem estrangeiro que fala nossa língua desconhecida em silêncio, e nós o ouvimos.
A razão desse milagre? É sem dúvida, a humildade de Lam, e a sua bondade: aceitar ser quem ele era, da sua terra e do seu céu, e contemplar as plantas, os animais e os homens, simplesmente amando-os. É também isso que ele pinta nos limites: não tanto dos seres e suas formas, mas do grito mudo de um povo esmagado por séculos de história. Na humildade a tal recusa da humilhação, na paz a tensão de tal violência. É por isso que o mundo de Lam é desde o início nosso: porque ele o desnuda.
Freud falou de uma estranha familiaridade [d’étrange familiarité]. Os grandes pássaros de Lam, feitos de sol e noite, mais do que pássaros são talvez estranhos, assim como esses seres enigmáticos esticados no infinito de um ar rarefeito demais para não ser o vazio. O que é estranho é que eles não são estranhos para nós, mas familiares. Uma estranheza familiar. Quando entramos no mundo deles, um ser silencioso, muito antes de nós, já disse a eles sim: nosso corpo e sua memória dilacerada de sofrimento e paz.
Eu o descubro: conheço Lam desde sempre. Ele nasceu antes de nós, o pintor mais velho do mundo: o mais novo.