Por Alfie Bown, via Mariborchan, traduzido por Daniel Alves Teixeira
A filosofia de Slavoj Žižek, embora não sem seus detratores e opositores, provou mais de uma vez ser poderosa, influenciadora e massivamente popular. Žižek é confrontado regularmente com uma corrente de oponentes de alto perfil, de Chomsky a Critchley. Normalmente, no final de tudo, Žižek sai parecendo mais ou menos incólume, com pelo menos tantos seguidores quanto antes, se não mais. Os críticos têm mesmo escrito sobre o especial apelo de Žižek como um objeto de desejo ele mesmo, algo com que nós sentimos inexplicavelmente atraídos e cativos.
Agora, finalmente, há uma consciência crescente de que Žižek não é o único filósofo na Eslovénia. Nos últimos anos, os filósofos e comentaristas começaram a se referir ao ‘esloveno-lacanismo’ em geral e tem notado o trabalho de outros filósofos igualmente importantes que têm trabalhado e escrito de Ljubljana nas últimas décadas. Talvez os mais importantes deles sejam Mladen Dolar e Alenka Zupančič, que, juntamente com Žižek, compõem o que os eslovenos se referem semi-jocosamente como “o triunvirato”: um grupo lacaniano-hegeliano-marxista de filósofos radicais cuja influência coletiva dificilmente pode ser exagerada. Em meu próprio campo, o de estudos do riso, posso dizer sem dúvida que o livro de 2009 de Zupančič “The Odd One In” mudou completamente os estudos sobre a comédia e abriu novamente o campo de onde ele havia previamente emperrado. O livro de Dolar no conceito ‘da voz’ não foi menos poderoso em sua própria área de teoria crítica.
Samo Tomšič representa a primeira publicação em inglês vinda de uma nova geração de filósofos eslovenos que já trabalharam com e sob esses teóricos mais estabelecidos supramencionados ao longo da última década e cuja influência dentro e fora da academia pode ser enorme e de longa duração. Tendo trabalhado diretamente com Jelica Sumic, que é um outro membro do círculo mais amplo de lacanianos de Ljubljana, a sua tese sobre a noção de antifilosofia em Lacan foi publicado em esloveno em 2010. Seu primeiro grande livro em Inglês, “O Inconsciente Capitalista: Marx e Lacan”, acabou de sair pela Verso e representa uma contribuição significativa desta nova e excitante geração de filósofos, de quem é provável que haja muito mais por vir.
Tomšič começa o livro antecipando as críticas prováveis que lhe serão dirigidas, perguntando se a tentativa de tratar Lacan e Marx juntos vai ser vista como um pouco mais do que uma tentativa de transformar Lacan em um pensador de esquerda e defendê-lo contra seus críticos, que viram Lacan como completamente oposto a Marx. Em tais críticas Lacan foi acusado de ajudar a consolidar e reproduzir as formas capitalistas de dominação (Foucault e Deleuze fornecem duas dessas críticas de Lacan) fazendo dele qualquer coisa, menos um radical de esquerda. Admitindo que as preferências políticas pessoais de Lacan se inclinaram para o conservadorismo de Charles de Gaulle, Tomšič negocia a relação entre Lacan e Marx de forma diferente, estabelecendo uma série de conexões úteis entre as obras de ambos os pensadores. Da mesma forma, quando vai se falar de Freud mais à frente no livro, Tomšič não ignora a indiferença de Freud para problemas “políticos”, mas ainda assim lê Freud contra a corrente (como Lacan fez) para mostrar quão político o inconsciente freudiano realmente é.
Logo no início do livro Tomšič aponta para uma conexão entre a luta de classes e o inconsciente, e mostra que nenhuma dessas coisas são “essências trans-históricas invariáveis” e que em ambos os casos “toda sua” consistência “reside na distorção das aparências que acompanham a reprodução da ordem dada “. Em outras palavras, uma vez que o inconsciente não é consistente e imutável mas criado e alterado pelos discursos de seu momento (embora Tomšič seja também contra a ideia de um “inconsciente coletivo”), ele não deve ser visto como um conceito essencializante, mas como algo que pode ser usado para explorar o quão radicalmente as estruturas sociais podem se diferenciar de uma a outra e quão profundamente as condições sociais e políticas mudam e constituem a subjetividade e a identidade. O livro, em seguida, trabalha contra a ideia existente sobre como ambos, a luta de classes e o inconsciente, infinitamente reproduzem e constituem coisas (por exemplo, a fraca ideia de que sempre temos luta de classes e nada pode ser feito sobre isso), mostrando como as condições políticas de cada momento determinam tanto a luta de classes como o inconsciente, dois conceitos relacionados. Uma vez que o inconsciente é o efeito da política, ele é algo com que temos de lutar e nos confrontar cada vez mais.
Com base neste argumento, Tomšič argumenta que o inconsciente não é o reino do irracional ou do privado, como tantas vezes pensado, um lugar onde a realidade social é suspensa. Pelo contrário, é um terreno onde o sistema político é reproduzido de forma mais eficaz, um espaço que é territorializado e organizado pela realidade social e política. Tomšič então mostra que a ideia de homologia entre economia política e libidinal implica que as mesmas estruturas discursivas operam nas realidades subjetivas e sociais. O efeito disto é que nós somos feitos para sentir que a estrutura de nossos desejos e a estrutura da nossa sociedade espelham uma a outra. Por conseguinte, a aderência ao capitalismo se intensifica em um nível inconsciente, fazendo o capitalismo parecer inevitável e inescapável. Em outras palavras, Tomšič mostra que, embora o capitalismo pareça ser o efeito dos nossos desejos, nós estariamos melhor ao ver os nossos desejos como o efeito do capitalismo.
Em última instância, o ponto é mostrar que, para a psicanálise, o inconsciente sempre foi um campo de batalha, onde um confronto com a estrutura social predominante tem lugar, e onde as consequências subjetivas desta estrutura podem ser analisadas. No mínimo, nós precisamos reconhecer que o inconsciente é político a fim de ter alguma esperança de verificar como somos criados enquanto sujeitos pelas condições políticas e para ter alguma chance de potencialmente mudar alguma coisa.
Tomšič em seguida, estende o argumento-chave do livro: os efeitos dos modos de produção capitalistas podem se tornar visíveis e desafiados através de uma nova abordagem conjunta do inconsciente e do capitalismo. Ele usa a teoria marxista para argumentar que o Estado moderno pode ser definido como um estado em que cada cidadão é colocado na posição do ‘devedor’, de modo que todos nós sentimos que ‘devemos’ algo de volta para o estado, que por sua vez é colocado na posição do ‘credor’.” A análise de Tomšič aqui me parece verdadeira tanto em termos práticos (numa sociedade baseada em dívida em que todos usam o crédito para empréstimos estudantis, empréstimos hipotecários e compras) quanto mais abstratos (nossa constante sensação de que devemos “dar algo de volta” para a sociedade e para o nosso empregador). Tomšič então junta esta análise marxista com uma lacaniana, escrevendo:
“O equivalente a colocação do cidadão na posição do devedor é a transformação do sujeito em uma subjetividade quantificável e explorável, que está antecipadamente em dívida e também é produzida como tal.”
Assim, o inconsciente de cada sujeito, de cada trabalhador no capitalismo, é estruturado desta maneira particular pelo capitalismo. Tomšič mostra que o sujeito lacaniano não é natural ou essencial e que por causa disso não poderia ser mudado, mas ele é aquele que é o efeito ou sintoma de condições políticas e sociais. Em suma, o capitalismo modificou e transformou o sujeito “faltoso” lacaniano em um novo sujeito: o sujeito endividado. Ele fez isso para nos transformar em uma força de trabalho cuja energia pode ser aproveitada.
Quando Marx escreveu a famosa frase “a história é a história da luta de classes”, ele não quis dizer que nós sempre tivemos a mesma velha e inevitável luta de classes ao longo da história. Ele quis dizer, ao contrário, que a luta de classes determina o que chamamos de história e que, como Walter Benjamin diria mais tarde, a história que nós contamos é “a história do vencedor” desta luta. Tomšič mostra que a história do inconsciente precisa ser vista sob essa luz. Longe de ser algo que sempre esteve lá, continuando sempre o mesmo, o inconsciente tem sido determinado por batalhas travadas e vencidas, ao menos nos últimos séculos, pelo capitalismo.
Ao final de tudo, o leitor fica com um novo sentido do inconsciente e um novo medo dele. Tendo destronado a ideia de que o inconsciente é privado, secreto ou ‘nosso,’ Tomšič deixa o leitor alerta de como o inconsciente é estruturado e condicionado pela política do capitalismo. Isso é, de certa forma, o capitalismo dentro de nós. Por outro lado, as coisas não são sem esperança. O inconsciente é, ao mesmo tempo, algo que responde aos discursos políticos e sociais conscientes, resistindo a eles e se tornando um campo de batalha em que estas coisas podem ser combatidas. Reconhecer a relação entre o inconsciente e o capitalismo, com a ajuda de Tomšič, nos fará mais bem equipados para continuar esta luta de classes. Um dos livros mais importantes do ano.
Link para download do livro em inglês: http://mariborchan.si/text/books/samo-tomsic/the-capitalist-unconscious/
2 comentários em “Resenha: “O Inconsciente Capitalista: Marx e Lacan”, de Samo Tomšič””
A linha entre a dor e o prazer é tênue, camaradas. Nós respondemos dentro das margens postas, mas se o rio cava pra dentro e vai fundo, as margens alargam.
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