Por Jodi Dean, via Liberation School, traduzido por Daiana Ferro
À medida que os obituários do neoliberalismo se acumulam em nossas mesinhas de cabeceira e o ditado de Antonio Gramsci de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer parece novo e profundo, nos voltamos para o passado em busca de direção. Que sucessos devem nos guiar? O que podemos aprender com nossos fracassos? Se quisermos avançar politicamente no século XXI, precisamos aprender as lições do século XX. Mas qual são elas?
Para alguns da esquerda, os problemas que enfrentamos hoje são o que sempre foram: falhas de organização e comprometimento coletivo. Uma classe trabalhadora disciplinada e organizada poderia fazer mais do que forçar concessões do capital; poderia transformar a sociedade. Sendo necessário um partido revolucionário. Outros na esquerda culpam a fraqueza política dos trabalhadores por se recusarem a manter um compromisso pela causa. Organizações militantes não são soluções. São erros. Somente quando os sindicatos e os partidos de esquerda aceitarem as relações capitalistas de propriedade social é que os trabalhadores conquistarão seus lugares à mesa e se engajarão na negociação aumentando sua participação. Os partidos comunistas impedem esse movimento.
Quarenta anos de neoliberalismo revelam a falência desta última perspectiva. O capital faz concessões apenas quando não tem outra escolha. As classes dominantes em todo o Norte Global desmantelaram os setores públicos e dizimaram as classes médias em vez de fornecer o apoio tributário necessário para manter a social-democracia. Eles reverteram ganhos políticos e sociais duramente conquistados, tratando os direitos democráticos básicos como ameaças ao seu poder. Enquanto fortes tendências da direita reconhecem a radicalização como necessária para a política em um período de incerteza apostando em iliberalismos, os oponentes da revolução insistem que a lição do século XX é a necessidade de compromisso. Presumindo que não há alternativa ao capitalismo, os thatcheristas de esquerda declaram que o progresso depende de deixar para trás nossa bagagem comunista.
Um exemplo dessa perspectiva é o livro de Jonah Birch, “The Cold War Made it Harder for the Left to Win”. Criticando o argumento de Gary Gerstle em “The Rise and Fall of the Neoliberal Order”, Birch rejeita a alegação de Gerstle de que foi a ameaça comunista que tornou possível uma reforma significativa no século XX. Com a Suécia homogênea como seu exemplo de sucesso social-democrata, Birch afirma que as condições eram piores para o trabalho em países com grandes partidos comunistas. Ele admite que é improvável que o contexto socioeconômico que levou ao crescimento econômico após a Segunda Guerra Mundial reapareça. No entanto, Birch aconselha a esquerda a aceitar a lição de que os comunistas ferem a classe trabalhadora.
A luta contra a supremacia branca e o fascismo é luta de classes
A mensagem profundamente conservadora de Birch se move para a direita do reconhecimento liberal dominante no impacto do tribunal da opinião mundial durante a Guerra Fria. É amplamente aceito que a competição com a União Soviética por corações e mentes levou os EUA a tomar medidas em direção à abolição do apartheid de Jim Crow e à supremacia branca institucionalizada. A negação do direito de voto e a repressão violenta de ativistas prejudicaram a reputação do país como defensor global da democracia. Assim que se reconhece o caráter multirracial e multinacional da classe trabalhadora, percebe-se como a fantasia sueca opera (mesmo na Suécia, como Tobias Hϋbinette demonstra em um artigo recente na Boston Review) para fazer um pequeno subconjunto de lutas –lutas dos trabalhadores brancos por salário– representam a ampla gama de lutas da classe trabalhadora multinacional diversa.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o envolvimento comunista na luta contra linchamentos, segregação e Jim Crow foi mais do que um ponto de propaganda no conflito de grandes poderes da Guerra Fria. Desde seus primeiros anos, o Partido Comunista reconheceu que os trabalhadores só venceriam se estivessem unidos. Enquanto os trabalhadores negros recebessem salários mais baixos do que os trabalhadores brancos e enquanto os trabalhadores negros excluídos dos sindicatos estivessem disponíveis como fura-greves, a posição de todos os trabalhadores era insegura. A luta contra a supremacia branca foi, portanto, central para construir o poder coletivo para vencer a luta de classes. Essa análise da composição nacional da classe trabalhadora sob condições de supremacia branca e racismo levou os comunistas a aprofundar o engajamento no “trabalho negro” em múltiplas arenas. Essas arenas incluíam a organização de trabalhadores agrícolas e domésticos, realizando campanhas legais em nome dos falsamente acusados e traçando as conexões entre as condições enfrentadas pelos negros nos EUA e as pessoas oprimidas e colonizadas em todo o mundo. Ainda mais amplamente, o Partido demonstrou como os movimentos antifascistas, anticoloniais e antiimperialistas pela paz eram indispensáveis para a luta de classes na medida em que todos visavam o capital monopolista dos EUA.
Os comunistas estavam na vanguarda da luta contra o fascismo e sua doutrina da superioridade ariana. Birch trata os partidos comunistas francês e italiano como organizações divisivas. Ele os culpa por dividir o movimento trabalhista em seus respectivos países, marginalizando assim a esquerda e isolando a classe trabalhadora. Por um lado, as acusações de Birch são desmentidas por suas próprias evidências: em ambos os países, os comunistas ganharam frequestimente cerca de 20% dos votos nacionais nas eleições, o que dificilmente é uma indicação de marginalização e isolamento. Várias localidades e municípios tinham líderes comunistas. Por outro lado, o foco míope de Birch na expansão de programas sociais como a única medida de sucesso político o leva a negligenciar as contribuições centrais dos comunistas. Os guerrilheiros que deram suas vidas na guerra contra os fascistas europeus, os milhares que realizaram uma resistência heróica nos países ocupados, são apagados de vista. Certamente suas conquistas são tão notáveis quanto as instituições de negociação coletiva e generosos serviços sociais que preocupam Birch, e como ele admite que é improvável que as condições econômicas que prevaleceram no auge da social-democracia no pós-guerra voltem a aparecer, qual é o custo político hoje de não reconhecer e aprender com a coragem da resistência comunista?
O internacionalismo como base de luta
A importância significativa da contribuição comunista continua a se expandir à medida que nos afastamos de um foco estreito na Europa. Ninguém pode negar o papel dos movimentos de libertação nacional liderados pelos comunistas no mundo colonizado. Em praticamente todas as lutas de libertação, os marxistas-leninistas desempenharam um papel indispensável. Angola, Moçambique, Vietnã, Coréia, Cuba, Congo-Brazzaville, Etiópia, Indonésia e China não podem ser considerados dados insignificantes apenas porque não são da Europa.
Durante décadas, os críticos do colonialismo e do neocolonialismo apontaram que a classe capitalista conseguiu garantir a passividade política ou mesmo o apoio de uma grande camada da classe trabalhadora no núcleo imperialista por meio dos benefícios acumulados com a exploração global dos negros e pardos. Esses críticos continuam uma linha de argumentação já proeminente na análise de Lênin sobre os enormes superlucros gerados pelo imperialismo. O capital é internacional e a luta contra ele também deve ser uma lição dos comunistas do século XX que continua indispensável no século XXI. Os trabalhadores não puderam permitir a miopia nacionalista naquela época e certamente não podem no cenário atual de cadeias de suprimentos globais, migração em massa e mudança climática.
Nos Estados Unidos, as mulheres negras dentro e ao redor do Partido Comunista na primeira metade do século XX demonstraram as implicações práticas do internacionalismo em sua organização. No inicio do ano de 1928, Williana Burroughs enfatizou tarefas concretas relacionadas ao engajamento de trabalhadores negros nascidos no exterior nos EUA (Índias Ocidentais, América do Sul, Ilhas de Cabo Verde, África) e usando o anti-imperialismo como um ponto de conexão (“Milhares de Negros de Haiti, Cuba, colonias britânicas, Ilhas Virgens e Porto Rico sentiram o calcanhar de ferro do imperialismo britânico ou americano”).
O Partido considerou que os trabalhadores negros nos EUA eram uma minoria nacional oprimida com direito à autodeterminação. Embora controversa dentro e fora do Partido, esta linha constituiu um ponto fundamental para a unificação dos trabalhadores negros e brancos porque reconhecia a centralidade da luta pela libertação negra. Organizar os trabalhadores negros significava incluir as mulheres negras porque a maioria delas trabalhava para sustentar suas famílias. Organizar mulheres negras significava organizar imigrantes e trabalhadores rurais e atender às condições de moradia, educação e vizinhança que impactavam a vida dessas pessoas. Organizar imigrantes e trabalhadores rurais significava construir uma compreensão dos padrões de opressão e resistência enfrentados por todos os trabalhadores. O internacionalismo foi mais do que uma expressão de solidariedade. Foi um princípio com repercussões na organização doméstica.
Durante o famoso discurso de Claudia Jonesno no Dia Internacional da Mulher em 1950, ela descreve o movimento global pela paz e a campanha de abaixo assinados contra a bomba atômica, o Plano Marshall e o pacto de guerra do Atlântico. Jones observou a oposição das organizações de mulheres à OTAN, “que amaldiçoa massas de mulheres americanas e suas famílias a miséria”. Ela defendeu o despertar do internacionalismo das mulheres americanas em protesto contra “os fantoches de Wall Street na Itália militarizada, na Grécia fascista e na Espanha”. E ela vinculou o ataque do Departamento de Justiça ao Congresso das Mulheres Americanas como “agentes estrangeiros” com a defesa de longa data do grupo pelos direitos iguais das mulheres, unidade entre negros e brancos e bem-estar e educação infantil.
A resolucao do internacionalismo comunista no século XX foi indispensável para enfrentar o imperialismo e o colonialismo. Construímos o poder da classe trabalhadora enfatizando os padrões de opressão e resistência, unindo lutas e apontando o capitalismo como o sistema a ser derrotado.
O anticomunismo é o inimigo
Nas últimas décadas de neoliberalismo, a direita avançou. Nos EUA, Reino Unido, Brasil, Hungria, Índia, Israel, Itália, Polônia, Suécia e em outros lugares, os partidos conservadores usam o nacionalismo para alcançar aqueles deixados para trás pela globalização. Quando os socialistas tomam como medida de sucesso o salário de uma imagem antiquada, machista e eurocêntrica da classe trabalhadora, eles minam sua capacidade de construir a unidade de massa, fortalecendo a mão da direita. A insistência na composição multinacional da força de trabalho de todos os países ditos desenvolvidos desmente as fantasias nacionalistas e isolacionistas, bem como as concepções patriarcais da família que as sustentam.
Um componente do avanço da direita tem sido seu ataque implacável ao comunismo. Trinta anos após a derrota da União Soviética, os conservadores atacam até o senso comum das medidas públicas como conspirações comunistas. Mais sutis, mas não menos reacionárias, são as dimensões epistemológicas do anticomunismo, o que Charisse Burden-Stelly teoriza como McCarthismo intelectual [7]. O anticomunismo persiste hoje na supressão do conhecimento das continuidades entre as lutas anticapitalistas, antirracistas, anticoloniais e antiimperialistas. Em vez do local onde essas lutas ocorreram fossem tratados como unificantes, o comunismo é visto como uma ideologia perigosa e estranha. Seu papel na luta contra a supremacia branca nacional e internacionalmente está enterrado.
Para os anticomunistas, a desordem é estrangeira – o refugiado, o imigrante, o negro, o muçulmano, o judeu. Os anticomunistas negam a desordem capitalista da competição, mercados, inovação, desapropriação, execução de hipoteca, dívidas e guerra imperialista. Mudanças dramáticas no caráter do trabalho, das comunidades e da vida que acompanham a tecnologia disruptiva e onipresente; urbanização e despovoamento rural; mudanças da indústria e manufatura para serviços e servidão; a intensificação da competição por um número cada vez menor de casas acessíveis e empregos adequadamente remunerados – tudo isso se transforma em uma desordem a ser tratada pela afirmação da polícia, família, igreja e raça. O anticomunismo continua sendo o ponto central dessa afirmação.
O medo que o anticomunismo mobiliza é o medo da perda, o medo de que o que você tem lhe seja tirado, o que Slavoj Žižek chama de “roubo do prazer” [8]. Marx e Engels denunciam essa mobilização do medo no Manifesto Comunista quando abordam acusações de que os comunistas querem tomar a propriedade das pessoas. Eles escrevem, “em sua sociedade existente, a propriedade privada já foi eliminada para nove décimos da população; a sua existência para poucos deve-se unicamente à sua inexistência nas mãos desses nove décimos” [9]. A mobilização anticomunista do medo esconde a ausência de propriedade, riqueza, segurança no trabalho, sucesso, soberania e liberdade. O comunismo é o que impede você de ser rico, amplamente admirado, fazer muito sexo e assim por diante. A fantasia do “roubo de diversão” obscurece o fato de que sob o capitalismo um punhado de bilionários tem mais riqueza do que metade do planeta. Ao colocar o comunismo como uma fonte de privação, como uma ideologia baseada em tirar algo, o anticomunismo esconde que não temos pois está sendo roubado ostensivamente.
O anticomunismo não está confinado à direita política. Frequentemente se infiltra em círculos socialistas progressistas e autodenominados. Os anticomunistas de esquerda agem como se o comunismo fosse a barreira para o sucesso dos trabalhadores, como se todos nós vivêssemos em um paraíso social-democrata sueco, exceto por esses malditos comunistas. Isso não apenas nega a realidade multirracial e internacional da classe trabalhadora, mas também oculta uma divisão e fraqueza política de esquerda mais ampla. Praticamente em nenhum lugar a esquerda enfrenta a escolha de reforma ou revolução. Praticamente em nenhum lugar a esquerda está em uma posição em que o compromisso de classe esteja sobre a mesa. O anticomunismo obscurece esse fato básico.
O comunismo é aquela ideologia política moderna sempre ao lado dos oprimidos. Quando o trabalho começa a parecer fortalecido, quando aqueles que foram oprimidos racial, sexual, étnica e colonialmente se tornam mais visíveis, mais organizados e mais militantes, o anticomunismo intervém para estabelecer barreiras. Tanto à esquerda quanto à direita, o anticomunismo tenta estruturar o campo político estabelecendo o terreno da possibilidade: quais caminhos políticos estão disponíveis, quais são impensáveis. Mesmo em ambientes onde o comunismo é visto como impossível e descartado, o anticomunismo mobiliza forças sociais para se opor a ele. Essa luta contra o impossível é um sinal ideológico: a discussão não visa avaliar seriamente lições e objetivos. Trata-se de reforçar o status quo, disciplinando a imaginação da classe trabalhadora pela prisão preventiva de qualquer desafiante às relações capitalistas e de propriedade social.
A situação política e econômica que prevalece hoje difere significativamente da era do pós-guerra. Os EUA perderam tanto seu status econômico preeminente quanto a posição moral que assumiu após o fim da Segunda Guerra Mundial (uma posição sempre frágil e contestada devido ao uso de armas atômicas pelos EUA, apoio a ditaduras, política externa imperialista e neocolonial e polícia doméstica estado). Os sindicatos perderam seu poder de negociação e os trabalhadores seus direitos e benefícios duramente conquistados. Hoje a questão é construir organizações e movimentos com poder suficiente para obrigar a reconstrução socialista da economia no contexto de uma rápida mudança climática. Esta luta é multinacional e internacional ou estará perdida.