Abolicionismo penal, anistia e responsabilização

Por Daniel Almeida

Recentemente, foi levantada uma polêmica sobre a compatibilidade das palavras de ordem de “sem anistia” e de “punição para os golpistas/Bolsonaro” por parte de militantes do coletivo Ecoar, agrupamento de juventude da Comuna (corrente interna do PSOL)1.

De modo sucinto e sem a pretensão de retomar a integralidade do texto, que se encontra disponível para todos/as que tiverem interesse em sua leitura, acreditamos que as considerações dos companheiros do PSOL são pertinentes e merecem algumas reflexões.

No que tange à descrição do funcionamento cotidiano do aparato de justiça criminal e mesmo dos riscos de captura das pautas de organizações de esquerda por parte daquilo que se costuma chamar de “populismo penal”, temos acordo com os companheiros do Ecoar.

Contudo, discordamos firmemente de sua apreciação negativa sobre a palavra de ordem “sem anistia” ou mesmo da noção de que o clamor por “punição”, prisão de Bolsonaro e seus colaboradores golpistas, implica (em si) numa “captura da imaginação da esquerda” pela justiça criminal ou mesmo de que a adesão a tais demandas implicaria em grandes ilusões quanto à natureza burguesa do aparato repressor do Estado.

Com o intuito de promover o debate fraterno entre marxistas que reivindicam o abolicionismo penal, acreditamos que há algumas considerações pertinentes a serem feitas sobre as formas como o abolicionismo penal e as organizações comunistas podem interagir.

Abolicionismo Penal e Responsabilização

Não são novos os movimentos de contestação e formulação crítica sobre o sistema prisional e o próprio direito penal. Quase cem anos atrás, Pachukanis já considerava o direito penal e a “superestrutura jurídica em geral” como um complexo de relações a serem superados (PACHUKANIS, 2017, p. 223).

No contexto brasileiro, a crítica ao funcionamento do direito penal só pode ser feita de modo qualificado levando-se em conta o papel explícito de violência e dominação racista que ele promove contra os setores mais precarizados da classe trabalhadora (VASQUES, 2020)2.

No campo das organizações comunistas, muito foi produzido sobre este tema3 a partir do resgate das contribuições de obras de autores como Clóvis Moura (Ibid.), da criminologia crítica (LEITE, 2020)4, Pachukanis5, Angela Davis6 e (ocasionalmente) tem feito um esforço de aproximação com o abolicionismo penal7.

Um dos principais questionamentos levantados contra os movimentos pela abolição do sistema penal, e os movimentos de contestação ao sistema prisional em geral, é a demarcação sobre quais as alternativas possíveis para a resolução de conflitos e da violência. É sobre esse aspecto das reflexões abolicionistas, suas proposições políticas, em que pretendemos centrar este texto. As inúmeras críticas do abolicionismo ao próprio direito penal já são objeto de análise central em diversos outros textos, razão pela qual evitaremos nos debruçar sobre elas no presente trabalho.

Talvez nenhum nome tenha maior associação com a pauta abolicionista no imaginário médio da esquerda brasileira do que a figura de Angela Davis, razão pela qual é pertinente avaliar suas reflexões sobre essa faceta do abolicionismo. Ao se debruçar sobre essa questão, Davis refletiu sobre como o horizonte de superação do complexo penal-carcerário demanda a construção de uma série de “novas instituições que ocupem o espaço agora ocupado pela prisão” (DAVIS, 2018, p. 116).

Nas palavras da própria autora:

Se […] deslocamos nossa atenção da prisão, percebida como uma instituição isolada, para o conjunto de relações que compõem o complexo industrial-prisional, pode ser mais fácil pensar em alternativas. […] O primeiro passo, portanto, seria deixar de lado o desejo de encontrar um único sistema alternativo de punição que ocupasse o mesmo raio de ação do sistema prisional.” (DAVIS, 2018, p. 114-115)

Podemos afirmar que, ao menos em Davis, a superação da dinâmica prisional de resolução de conflitos é intimamente associada a um esforço maior de transformação social. Contudo, de modo mais imediato, a teórica estadunidense retoma as reflexões de Herman Bianchi para esboçar possíveis métodos alternativos de resolução de conflitos e até mesmo cita o exemplo da chamada “justiça restaurativa” (Ibid, p. 123) em certo momento. Nas palavras da própria autora:

É no contexto dessas alternativas abolicionistas concebidas de forma mais ampla que faz sentido abordar a questão das transformações no sistema de justiça existente […] além de minimizar, por meio de várias estratégias, os tipos de comportamento que levam as pessoas a ter contrato com a polícia e os sistemas de justiça, há a questão de como tratar aqueles que violam os direitos e o corpo dos outros. […] Em casos limitados, alguns governos tentaram implementar alternativas que abrangem desde a resolução de conflitos até a justiça restaurativa. […] Existe uma literatura crescente sobre a remodelação dos sistemas de justiça por meio de estratégias de reparação, em vez de retaliação, bem como um crescente número de evidências empíricas das vantagens dessas abordagens para a justiça e das possibilidades democráticas que elas prometem” (DAVIS, 2018, p. 122-123)

A mediação encontrada por Davis, sem que abra mão de um horizonte maior de superação do sistema penal, se firma a partir de uma retirada do centro da discussão na aplicação da “pena” para a questão da “reparação do dano”. Trata-se de modelar a discussão não a partir do quanto alguém que comete um ato de violência ou transgressão “deve sofrer” e sim para “o que pode ser feito para reparar o que foi danificado”.

Essa mudança na abordagem da resolução de conflitos não é inteiramente livre de suas próprias contradições, como já comentei em outro momento (LEITE, 2022), mas nem por isso deixa de ter um enorme potencial político no que diz respeito à construção de propostas políticas concretas para a resolução de conflitos que vá além da dinâmica prisional.

A preocupação de Davis com a reparação de danos encontra convergência com as formulações de Nils Christie sobre as dinâmicas da justiça criminal. Para Christie as vítimas de crimes são colocadas pelo aparato penal em uma posição de “duplo perdedor” (CHRISTIE, 1977), primeiro para seu ofensor e depois para o próprio aparato estatal, que lhe transforma num mero instrumento de avaliação do conflito para aplicar as medidas que ele mesmo acredita pertinentes, independente dos interesses da vítima (Ibid).

Essa dinâmica onde o aparato estatal expropria e se apossa da situação de vítima, encarnada na figura do promotor, para então “solucionar o conflito” através de uma simples avaliação de um preço a ser pago em anos de reclusão, há muito já foi apontada pelo próprio Pachukanis (PACHUKANIS, 2017, p. 210 – 211). A inovação de Christie consiste no grau de profundidade com que aborda a forma com a qual a justiça criminal “sequestra” os conflitos das vítimas (e também dos próprios ofensores e suas respectivas comunidades), retirando delas o direito de voz e opinião sobre os rumos da resolução do conflito, bem como em sua

proposição de uma transformação do sistema de justiça passando a ser orientado principalmente a partir do dano causado à vítima (CHRISTIE, 1977).

O criminólogo escandinavo propõe que, após uma investigação onde se constate a materialidade de determinada transgressão e a concretude do dano contra a vítima, que se organize um tribunal em uma série de fases onde:

[…] a situação da vítima é levada em consideração, todos os detalhes sobre o que aconteceu – juridicamente relevantes ou não – são trazidos à atenção do tribunal. Particularmente importante aqui seriam as considerações sobre o que pode ser feito pela vítima, primeiramente, por seu ofensor; depois, pela comunidade local; e, por último, pelo Estado. Seria possível compensar os danos, consertar a janela quebrada no incidente, trocar a fechadura arrombada, pintar as paredes, ressarcir a perda de tempo pelo roubo do carro através de faxinas na casa ou lavar o carro por dez domingos seguidos? Ou, talvez, quando a discussão comece, os danos não pareçam tão graves quanto pareciam nos documentos escritos para comover as companhias de seguro? Seria possível que o sofrimento físico ficasse um pouco menos doloroso diante de alguma retribuição do ofensor durante dias, meses ou anos? Além disso, a comunidade esgotou todos os recursos possíveis e disponíveis para ajudar no caso? Será que o hospital local poderia fazer alguma coisa?” (CHRISTIE, 1977. Tradução de autoria nossa)

Somente então, propõe Christie, há de se ponderar a necessidade de uma punição. O próprio processo de investigação e reparação do dano pode ser considerado “punitivo” o bastante para responsabilizar o ofensor, talvez a punição seja considerada uma medida inteiramente desnecessária após esse processo. Mas há também a chance da comunidade, após a reparação do dano, ainda clamar por uma punição do ofensor. Nesses casos, o criminólogo pondera que o tribunal deve agir em sintonia com a comunidade que o constitui, já que “Tribunais locais fora de sintonia com os valores locais não são tribunais locais.” (CHRISTIE, 1977).

Por fim, Christie também afirma a necessidade de avaliar as necessidades e demandas do próprio ofensor, num momento posterior à própria sentença. O agressor “pode ter necessidades de medidas sociais, educacionais, médicas ou religiosas – não para que sejam prevenidos futuros crimes, mas porque necessidades devem ser atendidas” (Ibid).

Poderíamos nos debruçar sobre outras propostas e formulações. Muitos outros autores e autoras trazem uma série de considerações imprescindíveis à compreensão da justiça

criminal burguesa e a luta pela superação do direito penal. Contudo, acreditamos que com os trechos anteriores já é possível esboçar uma visão introdutória acerca de possíveis contribuições do debate abolicionista sobre paradigmas alternativos de resolução de conflitos.

No que diz respeito a exemplos históricos de experimentos com modelos de justiça que dialoguem com as propostas abolicionistas, há tanto registros de contextos prévios ao debate abolicionista propriamente dito8, como experimentos interessantes no contexto latinoamericano9, ambos também já discutidos em um trabalho anterior (LEITE, 2022).

Feitas essas considerações, convém retomar uma importante lição de Alessandro Baratta.

[…] uma política criminal alternativa coerente com a própria base teórica não pode ser uma política de “substitutivos penais”, que permaneçam ligados a uma perspectiva vagamente reformista e humanitária, mas uma política de grandes reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanas, e do contrapoder proletário, em vista da transformação radical e da superação das relações sociais de produção capitalistas” (BARATTA, 2011, p. 201. Itálico de autoria nossa)

Aqui, sem prejuízo de demais considerações sobre este ou os outros autores, há de se dar destaque para a questão do contrapoder proletário destacado por Baratta. O abolicionismo penal, enquanto conjunto de textos e reflexões teóricas que pairam no éter, não é passível de grandes conquistas na luta contra as violências da justiça burguesa. É somente na medida em que o esforço teórico se une a uma prática política coletiva que ganha potencial de influir em processos de transformação social.

Com o perdão de uma citação já muito conhecida, mas não por isso menos adequada:

A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma; o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas” (MARX, 2013, p. 157)

Passemos então ao fundamental: Somente quando a crítica abolicionista se associa com a construção cotidiana e orgânica de movimentos de massas, de organizações revolucionárias e de seu trabalho político é que ela pode se tornar mais do que um tópico de pesquisa acadêmica. Somente quando o debate abolicionista se faz em um diálogo vivo e instrutivo com os rumos da luta de classes é que a crítica dos aparatos penais pode ser mais do que um tópico que causa um alvoroço em “um pequeno círculo de especialistas” (PACHUKANIS, 2017, p. 217).

Essa associação orgânica e propositiva pode ser observada, ainda que de modo fragmentário e descentralizado, na atuação conjunta de militantes abolicionistas com movimentos de familiares de pessoas presas, de lutas contra a expansão do sistema prisional ou de contestação ao proibicionismo. Nesse tópico, sabemos da atuação de nossos companheiros do Ecoar e temos respeito por sua atuação política nos últimos anos.

Similarmente positiva é a crescente associação e contribuição das críticas abolicionistas aos programas e intervenções das organizações revolucionárias. Para além dos textos citados previamente, também podemos apontar essa aproximação no próprio programa político esboçado por determinadas organizações. O programa eleitoral do PCB no estado de São Paulo, por exemplo, reivindica abertamente a construção de instâncias coletivas de “resolução de conflitos que deem voz para a(s) vítima(s) na própria resolução do processo, priorizando sempre a reparação de danos como solução para o conflito”10, a restrição das penas restritivas de liberdade somente para os crimes que envolvessem violência, grave ameaça ou de cunho sexual, a abertura do espaço prisional para a comunidade, o fim da verba para a construção de novos presídios e a luta por uma política de drogas “não mais pautada na criminalização e repressão estatal”11 dentre outras medidas fundamentadas a partir da crítica abolicionista.

O que essas considerações diversas buscam ilustrar é que o abolicionismo penal não é, de forma alguma, uma perspectiva que implica necessariamente em pacifismo ou no abstencionismo. A crítica abolicionista é plenamente capaz de abarcar formas diversas de responsabilização e de responder à violência com medidas de similar violência na medida em que se faça necessária. Isto é, contanto que os proponentes do abolicionismo se disponham a colocar propostas concretas na ordem do dia e aceitem a necessidade de estabelecer mediações com situações contraditórias.

Afinal de contas, se propomos uma ênfase na reparação de danos na resolução de conflitos e no atendimento a demandas de vítimas, é preciso que aceitemos que essa forma de resolução de conflitos irá causar alguma medida de sofrimento para aqueles considerados como ofensores. Sofrimento que, independente do nome que se busque aplicar, pode e provavelmente irá ser vivenciado como uma “experiência punitiva”.

A luta política demanda a capacidade de navegar contradições concretas e é nesse aspecto que acreditamos que os companheiros da juventude Ecoar tenham se equivocado em sua oposição às palavras de ordem “sem anistia”.

Abolicionismo e leninismo

Como bem disse Lenin, ao se debruçar sobre o tema da “Guerra de Guerrilhas”, o marxismo se diferencia das demais correntes socialistas na medida em que “não amarra o movimento a qualquer forma determinada e única de luta”12(LENIN, 1986), o marxismo reconhece e organiza as mais diversas formas de luta e visa organizar e elevar a consciência das classes revolucionárias a partir das formas em “que surgem por si no curso do movimento” (Ibid.).

A experiência legada pelas contribuições do pensamento de Lenin nos impõe que sim, devemos ser rigorosos em nossos princípios e horizontes políticos estratégicos, e ao mesmo tempo preconizar a máxima flexibilidade tática para alcançar esses mesmos horizontes e objetivos. Nenhuma forma de luta é inerentemente errada ou certa em si, o que deve prevalecer é a análise concreta da situação concreta, para que se possa formular as táticas e mediações que melhor promovem o avanço da organização e consciência política da classe trabalhadora no rumo à revolução.

É justamente na necessidade de mediações e na construção de táticas de luta propositivas que alguns adeptos da crítica abolicionista podem se equivocar.

Num contexto político de anos onde organizações majoritárias do campo de esquerda ativamente sabotaram iniciativas de organização e mobilização popular, como no caso dos dirigentes petistas que tentaram impedir atos de rua clamando por vacinas durante a pandemia13, e onde muitas organizações têm escanteado a questão do combate ao fascismo para além da “via institucional”, as preocupações que os companheiros do Ecoar esboçam com uma legitimação do sistema de justiça no imaginário da esquerda é compreensível.

Compreensível, contudo não acertada na aparente oposição que promovem contra palavras de ordem como “sem anistia” e nas demandas populares por responsabilização e punição a Bolsonaro e outros golpistas.

Os gritos da população na cerimônia de posse do Presidente Lula, os brados de “sem anistia” que até mesmo interromperam a fala do Presidente, não são expressão de “confiança nas instituições”, ao menos não mais do que os gritos de “justiça” de qualquer pessoa que perde um ente querido para a violência policial seriam “expressões de confiança” na justiça burguesa.

Certamente, é lamentável que não tenhamos tribunais populares e organizações proletárias suficientemente estruturadas e combativas para que a própria classe trabalhadora leve ferro, fogo e justiça para seus algozes. É deprimente que, massacre após massacre, o conjunto das organizações de esquerda não consigam reivindicar muito mais do que pressão e mobilização na esperança de pressionar algum setor da justiça burguesa a ceder provisoriamente na sua seletividade habitual, a “entregar o anel para não perder os dedos”. E é particularmente patético quando membros de organizações socialistas aplaudem ou endossam de modo acrítico a atuação de forças repressivas do Estado Burguês (tal qual alguns setores do PSOL fizeram durante a Lava-Jato).

Mas é justamente contra essa passividade e imobilismo que palavras de ordem como “sem anistia” podem ser utilizadas para mobilizar a justa insatisfação da população trabalhadora. O chamado de responsabilização para Bolsonaro e seus colaboradores fascistas não deve ser encarado pelas organizações comunistas como um mote de fé nas “instituições” mas justamente uma convocatória para que a classe trabalhadora não permita que o Brasil reincida em seu histórico de esquecimento dos massacres cometidos contra o povo.

Talvez possamos encontrar convergência com os companheiros do Ecoar na noção de que a prisão é absolutamente insuficiente para que se responda às centenas de milhares de mortes promovidas diretamente pelo negacionismo de Bolsonaro, ao tratamento dos Yanomami e inúmeras outras barbáries que seu governo promoveu. Insuficiente, na medida em que não existem anos de prisão que um ser humano possa pagar para reparar o dano que essa corja fascista, à serviço da burguesia, causou. O tratamento dado a Mussolini parece levemente mais adequado, e mesmo esse não sanaria as feridas causadas e seria tardio.

Mas independente de considerações pessoais sobre o caso, fato é que há setores expressivos da população antagonizados e motivados a buscar justiça e combater o fascismo pela raiz. Trata-se de uma oportunidade tanto no que diz respeito a promover derrotas contra fascismo através da agitação e mobilização de tais setores da população, como também de justamente expor para tais setores a seletividade e o caráter burguês das instituições de justiça criminal que há anos acobertam e promovem os maiores algozes da classe trabalhadora.

Qualquer “punição” que venha para Bolsonaro e demais golpistas será fruto de uma de duas alternativas: Uma conquista arrancada pelo povo trabalhador através de duras lutas ou um descarte promovido pela burguesia como tentativa de se preservar diante de insatisfação popular. A primeira alternativa é consideravelmente mais favorável para as lutas futuras de qualquer organização comunista, em especial as que pretendem dialogar com o abolicionismo penal, do que a segunda.

Convém lembrar que, sim, toda prisão é uma prisão política. Essa é uma máxima verdadeira e constante do pensamento crítico sobre a questão penal. Contudo, valeria adicionar: Nem toda prisão é igual em seu conteúdo político. A prisão sistemática, massiva e seletiva de jovens negros por crimes de tráfico ou propriedade todos os dias possui um caráter político totalmente distinto das prisões de sujeitos que participam de chacinas policiais e cujas prisões só ocorrem após ampla pressão e mobilização das comunidades vitimadas.

O movimento “Mães de Maio”, por exemplo, busca articular um esforço conjunto de denúncia da atuação racista dos órgãos de segurança estatal, tanto quanto luta por “justiça” em nome daqueles que foram vítimas da violência promovida por membros das forças policiais. O caráter de classe de qualquer prisão que seja arrancada do sistema de justiça burguês por tal movimento é inteiramente distinto do que é a marca tradicional da justiça burguesa.

Essas conquistas pontuais não mudam a essência do Estado burguês e seu aparato repressivo. Não fazem com que magicamente o tribunal penal deixe de ser “instrumento da luta de classes”(PACHUKANIS, 2017, p. 210) que cotidianamente exerce violência em nome da burguesia. Mas, ainda que tenhamos como objetivo a construção de novas formas de organização da justiça, de superação do próprio direito e até mesmo do Estado, o movimento comunista não deve abrir mão de qualquer forma de luta que esteja apta a promover um avanço nas condições de luta.

Ora, tanto os companheiros da juventude Ecoar estão abertos a mediações táticas que, no mesmo texto em que apontam (corretamente) o caráter racista e burguês da justiça criminal, também concluem com reivindicações de estatização das empresas que fomentam o bolsonarismo, quanto a interceptação das redes sociais de Bolsonaro. A interceptação de redes sociais é uma medida que, atualmente, ocorre através da interação entre órgãos do judiciário, forças policiais e empresas do ramo de tecnologia. A medida, correta, proposta pelos companheiros implicaria necessariamente em alguma mediação com os próprios órgãos de repressão da burguesia que seu texto (também corretamente) criticou. Não menos contradições teria a proposta de estatização de empresas associadas ao Bolsonarismo, e nem por isso a medida deixa de ser pertinente.

A incorporação das contribuições promovidas pela crítica abolicionista penal é absolutamente necessária para todas as organizações comunistas. Trata-se de um instrumental teórico e político que deslegitima e expõe as inúmeras razões pelas quais a classe trabalhadora não deve confiar no aparato de justiça criminal, não deve apoiar projetos que expandem o alcance dos aparatos repressivos do Estado mesmo quando eles tentam se legitimar através de discursos “progressistas”. Nada disso se contesta.

Mas a crítica abolicionista não deve fornecer amarras morais para o movimento comunista. A crítica aos aparatos de justiça criminal se consagra na medida em que sua atuação e expansão é ativamente danosa para a classe trabalhadora. Essa é a tendência do aparato de justiça criminal enquanto componente de um complexo de dominação racista e classista.

Mas tal qual as mobilizações de vítimas de violência policial por responsabilização contra agentes do Estado não representam (em si) uma expansão e um dano desse aparato contra a população trabalhadora, antes o oposto: Permitem, ainda que permeadas por limites e contradições diversos, mobilizar a população contra seus algozes e (ocasionalmente) arrancar conquistas pontuais, o mesmo se pode dizer sobre a palavra de ordem “sem anistia” e a mobilização da população contra Bolsonaro e seus apoiadores.

Sim podemos e devemos superar o entulho abjeto que é a justiça burguesa e o próprio direito penal. Sim, o abolicionismo penal não deve ser observado ou taxado como um tema proposto por pacifistas ou idealistas, mas é igualmente essencial que a crítica abolicionista não se converta em um arcabouço para (ainda que acidentalmente) frear o ódio da população trabalhadora contra seus inimigos. Nas dezenas de vezes em que setores de esquerda promovem (inadvertidamente) uma expansão ativa do aparato penal burguês, a crítica abolicionista é absolutamente correta e adequada. Mas a contribuição crítica dos comunistas para elevar a consciência da população trabalhadora deve sempre caminhar de modo a incentivar a organização e a combatividade da classe trabalhadora, deve trazer formulações ativas e energéticas, encaminhar palavras de ordem e propostas concretas em torno das quais os movimentos de luta consigam se organizar.

Esperamos que nos próximos anos o movimento comunista no Brasil consiga avançar para que os próprios trabalhadores possam construir espaços para aplicar sua justiça, que comecemos a romper com as amarras do estreito horizonte jurídico da burguesia. Devemos desde agora promover a agitação para construir essa possibilidade. Mas tal qual inúmeras vítimas de violência estatal que se veem obrigadas a pressionar ou recorrer ao próprio Estado ante a falta de outros recursos para lidar com suas demandas, não devemos recusar nenhum meio de derrotar nossos inimigos. Isso também vale quando discutimos meios de luta que envolvem instituições e relações que almejamos superar e extirpar da face da terra. Tal qual Lenin se valeu do direito czarista para lidar com um especulador que prejudicava barqueiros (PACHUKANIS, 2018)14 ou até mesmo como discutia a necessidade de construção de um aparato estatal revolucionário antes da superação plena do Estado (PACHUKANIS, 2017, p. 287 – 288).


Notas:

1https://juventudeecoar.org/a-pauta-da-nao-anistia-e-punicao-para-golpistas-como-fica-o-abolicionismo-penal/

2 https://pcb.org.br/portal2/25661

3https://pcb.org.br/portal2/28831, https://pcb.org.br/portal2/28076

4 https://lavrapalavra.com/2020/03/02/politica-criminal-e-luta-de-classes/

5 https://lavrapalavra.com/produto/direito-penal-e-luta-de-classes/

6Ibid

7Ibid e https://pcb.org.br/portal2/27531

8 BRYANT, Louise. Seis meses na Rússia vermelha. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2022. Capítulo XIX

9 https://lavrapalavra.com/2018/11/07/contrapoder-e-autodefesa-na-america-latina

10https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/SP/546/candidatos/892432/5_166023705318 6.pdf

11 Nos termos do programa: Tal qual a vigilância sanitária se viabiliza sem prisões em massa e extrajudiciais contra donos de restaurantes que atentam contra normas sanitárias, o controle popular de substâncias entorpecentes pode prescindir de tais meios de repressão;

12 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/09/30.htm

13 https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/05/6153935-washington-quaqua-e-coerencia-que-se-chama.html

14 https://lavrapalavra.com/2018/06/26/lenin-e-os-problemas-do-direito/


REFERÊNCIAS:

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos – 6ª edição, 6ª reimpressão. – Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011.

BRYANT, Louise. Seis meses na Rússia vermelha. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2022. Capítulo XIX

CHRISTIE, Nils. Conflicts as property. Publicado originalmente no The British Journal of Criminology, vol. 17, jan. 1977, n1. Disponível em: https://hotsite.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativo/Material_de_Apoio/Conflicts_as_Pr operty_by_Nils_Christie.pdf

COSTA, Ian. As polícias e o Estado Burguês: Basta de genocídio. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/28831

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. Tradução de Marina Vargas – 1ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2018

LEITE, Daniel. Política Criminal e luta de classes. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2020/03/02/politica-criminal-e-luta-de-classes/

LEITE, Daniel. Direito Penal e Luta de Classes: Uma introdução via Pachukanis. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2022

LENIN, Vladimir. A Guerra de Guerrilhas. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/09/30.htm

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus – 3.ed. – São Paulo: Boitempo, 2013

PACHUKANIS, Evgeny. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921 – 1929). Coordenação Marcus Orione, Tradução Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017

PACHUKANIS, Evgeny. Lenin e os problemas do direito. Traduzido por Gabriel Landi Fazzio e Thais Hoshika. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2018/06/26/lenin-e-os-problemas-do-direito/

PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO. Programa eleitoral. Disponível em: https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/SP/546/candidatos/892432/ 5_1660237053186.pdf

QUAQUÁ, Washington. É coerência que se chama?. Disponível em:

https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/05/6153935-washington-quaqua-e-coerencia-que-se-cha ma.html

SILVÉRIO, Leonardo e HAUG, Marianna. A Pauta da “Não Anistia” e Punição para Golpistas. Como fica o Abolicionismo Penal?. Disponível em:

https://juventudeecoar.org/a-pauta-da-nao-anistia-e-punicao-para-golpistas-como-fica-o-aboli cionismo-penal/

UJC NITERÓI. Guerra às drogas e genocídio do povo negro. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/28076

VASQUES, Tálison. O genocídio como atividade essencial do Estado. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/25661/o-genocidio-comoatividade-essencial-do-estado/

VASQUES, Tálison. Uma crítica marxista à política de segurança pública. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/27531

ZIBECHI, Raúl. Contrapoder e autodefesa na América Latina. Tradução de Elisa Brasil, 2018. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2018/11/07/contrapoder-e-autodefesa-na-america-latina

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