por Catarina Príncipe & Dan Russell*, via Jacobin Magazine, traduzido por Gabriel Landi Fazzio, revisado por Carlos Henrique Menegozzo.
A esquerda na Europa e no mundo estão diante de enormes desafios. Qual tipo de estratégia política nós precisamos para seguir em frente?
Seria difícil fazer um trabalho melhor defendendo o projeto politico que representava o Syriza – tanto contra aqueles que o condenaram desde o começo, quanto contra aqueles que agora defendem a capitulação de sua direção – do que fez Stathis Kouvelakis nos últimos meses.
Kouvelakis, porém, não estava apenas defendendo o Syriza ou a “nova” esquerda europeia mais amplamente, mas precisamente a estratégia de construção de partidos de trabalhadores de massas, para organizar e transformar a consciência da classe por meio da luta – uma estratégia que remonta o séc. XIX.
A posição de Kouvelakis é bastante diferente daquelas, como a de Tad Tietze, que descartam a possibilidade de uma alternativa política à austeridade e nos pedem para, ao invés disso, nos focarmos em desenvolver movimentos extraparlamentares.
Mas uma estratégia viável de esquerda para acabar com a austeridade não pode contrapor o social e o político: uma alternativa política deve contribuir para a criação de sua própria base social. Esse era precisamente o projeto do Syriza, que a recém-formada Unidade Popular levará adiante agora que a liderança do Syriza abandonou seu compromisso de luta contra os memorandos.
Apesar das derrotas e desvios, tais projetos seguem o único percurso viável em direção a uma eventual ruptura e não apenas com a austeridade, mas com o próprio capitalismo. Aqueles que não têm de confrontar a questão do poder estatal imediatamente ainda sim devem aprender as corretas lições, tanto do Syriza quanto da história da qual ele nasceu.
Reforma e Revolução
A primeira experiência na construção de partidos de massas da classe trabalhadora se encerrou com a deflagração da 1ª Guerra Mundial e a quase unânime decisão tanto do partido social-democrata alemão quanto do francês – os faróis-guias do movimento europeu – de trair a causa do internacionalismo socialista e de apoiar a marcha de seus respectivos governos rumo à guerra.
A tarefa de unir uma oposição minoritária caiu nas mãos dos bolcheviques. Seus esforços lançaram as bases para uma nova Internacional que iria brevemente convergir no despertar da Revolução Russa.
O espaço para uma Terceira Internacional e para partidos revolucionários de massa que se definiam em oposição ao reformismo social-democrata apareceu por conta de condições concretas, em particular pela intensificação da luta de classes desencadeada pela guerra.
Ainda assim, apenas os comunistas alemães – já devastados pelo assassinato de suas maiores lideranças e expulsos do partido social-democrata – foram capazes de manter uma contínua disputa pelo poder antes que a onda revolucionária retrocedesse, que a social-democracia se reestabelecesse, e antes que stalinismo viesse, fatalmente, a remodelar os jovens Partidos Comunistas.
Aqueles que intentaram traçar um curso revolucionário independente foram expurgados ou isolados tanto pelo movimento Comunista oficial quanto pela social-democracia, os quais viriam a dominar o movimento proletário ao longo da 2ª Guerra Mundial. Algumas mudanças tiveram que ocorrer antes dos revolucionários conquistarem novamente audiências massivas: a revelação dos crimes de Stalin, a supressão dos levantes húngaro e tcheco pela União Soviética, e a retomada, em perspectiva militante, das lutas de classe nos anos 1960 e 1970.
Este último fator, expôs o conservadorismo da maior parte dos Partidos Comunistas da Europa ocidental, abrindo espaço para novas formações de esquerda, como o Partido Socialista dos Trabalhadores Britânicos e a Liga Comunista Revolucionária na França. Mas com o início da ofensiva neoliberal no final dos anos 1970, tais partidos acabaram enfraquecidos.
Os partidos social-democratas tradicionais também foram prejudicados, e de maneira irreversível. A esquerda reformista social-democrata experimentou derrotas e recuos, enquanto sua ala direita alegremente se encarregou de gerir o neoliberalismo.
Conforme esses antigos partidos de trabalhadores começaram a implementar a austeridade, dissidentes social-democratas, comunistas e outros construíram novos partidos que atuaram lado a lado com movimentos sociais e se engajaram em debates sobre a melhor forma de confrontar o neoliberalismo. Através da última década, formações com o Bloco de Esquerda, Die Linke e Syriza preencheram a lacuna deixada pela social-democracia.
Infelizmente, alguns revolucionários transformaram em virtude aquilo que de 1930 a 1980 era uma necessidade – construir pequenos grupos revolucionários por conta da dificuldade ou impossibilidade de operar independentemente no interior de partidos reformistas de massas ou comunistas oficiais. Isto, mediante uma interpretação equivocada da experiência da social-democracia em geral e dos bolcheviques em particular.
Os bolcheviques não tentaram construir um partido “revolucionário” especial, mas um partido social-democrata no contexto repressivo da Rússia tzarista. Foi esse contexto e a cisão com os mencheviques – não qualquer pureza teórica – que tornaram as tendências reformistas, que dominavam o aparato partidário na Alemanha, marginalizadas na Rússia.
A mais relevante lição da social-democracia pré-guerra para a luta de classes de hoje é que devemos primeiramente construir partidos que se tornem dominantes no movimento operário através da luta por reformas. É apenas pela experiência coletiva de conquistar vitórias tangíveis e testar os limites do reformismo que uma maioria será ganha para políticas revolucionárias.
Se é verdade que tais formações iriam recriar muitas das mesmas contradições presentes na social-democracia pré-guerra, isso não significa que estejam fadadas ao mesmo resultado. E revolucionários que cedem aos reformistas a tarefa de criar e modelar formações políticas que possam atrair e mobilizar a maioria da classe trabalhadora na luta política minam não apenas tais organizações, mas na mesma medida qualquer projeto revolucionário “separado”.
Partidos de um Novo Tipo
Com as ascensão do neoliberalismo e a mudança subserviente de tradicionais partidos social-democratas, que se converteram de partidos de trabalhadores e de massa em partidos que administram a austeridade, o centro de gravidade política se deslocou à direita. Isso significa que as lutas na Europa por Estados de Bem-Estar Social funcionais e por direitos trabalhistas ficaram órfãs por muitas décadas.
O giro à direita, combinado à queda da União Soviética e aos movimentos anti-guerra e alter-mundistas, abriram um espaço político que precisava ser ocupado por uma nova esquerda. Esses partidos foram fundados na rejeição ao stalinismo e numa nova ideia de como se relacionar com os movimentos sociais, com a meta de conquistar a base social da social-democracia, agora sob influência liberal.
Fazê-lo significava adotar pontos programáticos centrais de partidos social-democratas tradicionais – protegendo o Estado de Bem-Estar Social e os direitos trabalhistas – acrescida de uma mais ampla camada de demandas feministas e ambientais. Conforme a política na Europa e em outras regiões se deslocou para a direita, era dado aos radicais que se organizassem em torno destas políticas.
Esses partidos se orientaram na construção de partidos de trabalhadores e de massa tendo duas coisas em mente. A primeira é que o partido é um instrumento de intervenção social – interagindo com movimentos sociais, com o movimento sindical e esforços organizativos de base – que deveria simultaneamente construir um programa político autônomo e lutar pelo poder estatal.
A segunda é que a base de sustentação da Nova Esquerda é tanto a base tradicional dos partidos de trabalhadores de massa, quanto os milhões que se tornaram descontentes com o sistema político como um todo.
Essas novas correntes se estabeleceram no entendimento de que não havia necessidade de se contrapor, de um lado, o esforço por atrair as pessoas a uma pauta de demandas reformistas e de esquerda; e, de outro, a necessidade de se conquistar o apoio a ideias e correntes mais radicais. Pelo contrário, esse tipo de engajamento amplo era o único caminho para manter a esquerda radical relevante para as pessoas comuns.
A composição ideológica difusa desses partidos permite sua transformação em sentidos progressistas, ao mesmo tempo em que como oferece aos radicais uma ampla plataforma pública. O que tem mantido vivas as ideias revolucionárias tem sido precisamente o seu engajamento em projetos reformistas de esquerda.
O partidos da Nova Esquerda agora proliferam, mas ainda permanece incerto para muitos na esquerda europeia para onde vamos daqui. Nós oferecemos três ideias estratégicas para contribuir com este debate.
Grandes partidos de esquerda não emergem do ar, ou pela boa vontade de pequenos grupos radicais ou revolucionários: eles são o produto de mudanças geradas por mobilizações políticas mais amplas, as quais os partidos existentes foram incapazes de aproveitar.
Um dos objetivos centrais desses partidos de “novo tipo” tem sido minar os partidos social-democratas neoliberalizados absorvendo sua base de apoio. Isso só é possível se há um projeto político autônomo que se recusa a ser muleta para os partidos social-democratas tradicionais, enquanto ao mesmo tempo luta por reformas, tenta ganhar maiorias sociais, e disputa o poder estatal.
Além disso, cada ruptura importante com os partidos de centro-esquerda aconteceu porque alguma formação estava aplicando pressão à esquerda – como o envolvimento Oscar Lafontaine e outros membros da ala esquerda do Partido Social-Democrata Alemão na fundação do partido socialista Die Linke.
No entanto, essa tática tem sido bem-sucedida apenas em parte. A estratégia de conquistar tanto os apoiadores tradicionais dos partidos social-democratas quanto as pessoas amarguradas com o atual sistema político tem se provado, obviamente, difícil de levar a cabo: esses partidos “de novo tipo” carregam demais a lembrança dos demais partidos, para aqueles desiludidos com o sistema, enquanto parecem demasiado distantes e anti-sistêmicos para os que não estão preparados para uma reforma do atual sistema político.
Vela frizar que a vulnerabilidade e o declínio dos partidos social-democratas tem sido auto-infligidos. Aplicando e gerindo a austeridade ao invés de expandir aos serviços sociais, esses ex-partidos de trabalhadores têm adotado a mesma abordagem política básica que suas contrapartes conservadoras. É precisamente por conta desta “Pasokificação” que precisamos de fortes organizações reformistas de esquerda; apenas elas são capazes de atrair e organizar as pessoas que mais tendem a debandar dos partidos social-democratas.
E a presença de revolucionários nessas organizações é e será crucial para prevenir uma guinada à direita.
Outro ponto-chave tem a ver com a relação entre a luta social nas ruas e a busca por cargos políticos. Nós temos que entender os partidos como instrumentos para a luta social, veículos que nos ajudam a coordenar e construir relações entre diferentes movimentos. A manutenção da autonomia desses movimentos não é necessariamente conflitante com a construção de programas e campanhas que visem alcançar o poder estatal e a implementação de políticas progressistas.
Embora aquilo que os socialistas possam atingir usando o estado capitalista seja limitado, este possui uma autonomia relativa em relação aos “negócios”. A capacidade do Estado de se prestar a finalidades progressistas depende da correlação de forças entre trabalho e capital. Não reconhecer essa possibilidade significa abandonar as esperanças e depreciar toda reforma como carente de conteúdo revolucionário.
A presença de ideias revolucionárias é, mais uma vez, essencial, não apenas pela necessidade de se reconhecer os limites envolvidos na conquista do poder de Estatal sem sua própria transformação; mas inclusive porque a organização de um poder popular é central para a sustentação, e uma questão central, para qualquer governo de esquerda.
Os limites do “Projeto Europeu”
Desde sua fundação, uma meta dos mais amplos partidos de esquerda tem sido transformar a União Europeia por dentro. Entretanto, os desenvolvimentos recentes revelaram que a EU, e a zona do euro em particular, são capazes de lidar com a democracia, a igualdade e autodeterminação apenas até certo ponto.
A chantagem do governo grego tornaram visíveis e inquestionáveis as fissuras no assim chamado Projeto Europeu, bem como sua verdadeira natureza: uma zona com centro e periferia, que almeja esmagar experiências democráticas e tentativas de reformas igualitárias a fim de dar suporte à economia dos países centrais e desmantelar a proteção social dos trabalhadores, em particular do sul da Europa.
“Negociar” de uma posição à esquerda tem rendido pouco, e a margem para manobra têm encolhido exponencialmente. A única alternativa é pensar fora das fronteiras da zona do euro. Essa não é uma missão fácil. O que alguns têm chamado de “euro-fetichismo” tem uma base material bastante concreta – é o resultado de trinta anos de destruição dos setores produtivos da periferia, e a sua substituição por créditos e dependência excessiva em relação aos fundos europeus.
Entender que há mais de um caminho de saída da zona do euro é recolocar o centro da discussão no nível político. Como construímos um movimento popular de esquerda que possa se ligar a projetos comuns no resto do continente, imaginar alternativas para a prisão financeira na qual fomos metidos e lutar contra a extrema direita e contra as tendências nacionalistas emergentes em toda Europa? Isto não significa que devamos cessar as lutas e a construção de conexões no interior deste arranjo; significa simplesmente que devemos começar a pensar sobre lutas e interconexões, bem como construí-las, para além dele.
A resposta para essas difíceis questões nós acharemos, apenas, caso reconheçamos que são estas as questões-chave estratégicas com as quais se defronta a esquerda em seu conjunto; caso mantenhamos como meta central a conquista de maiorias sociais e da hegemonia ideológica; e caso, além disso, nós abracemos esses partidos de “novo tipo”, com suas carências e contradições, como o melhor e mais concreto instrumento para cumprir essa tarefa hoje.
*Catarina Príncipe faz parte do Bloco de Esquerda (Portugal) e Die Linke [A Esquerda] (Alemanha) e editora colaboradora da Jacobin Magazine. Dan Russell é membro da International Socialist Organization [Organização Socialista Internacional] em Oakland (EUA).
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