Advogados, bem-vindos ao deserto do real!

Por Marcelo Rodrigues Mendonça

Historicamente, o ofício dos juristas no Brasil foi supervalorizado, advindo de uma classe superior e distinta, a um estamento e depois parte de classe trabalhadora. (1) Ocorre que os juristas nunca se consideraram parte da classe trabalhadora – a insistência de alguns profissionais em serem chamados por “doutor” é a prova disso – e isto pode ser considerado culpa da boa e velha consciência de classe e ideologia reinante. O jurista sentia que seu trabalho, por manusear leis e advir do intelecto era especial… Ledo engano, afinal, como Marx explicou no Livro I d’O Capital, todo trabalho particular torna-se uma ameba de trabalho abstrato socialmente necessário para confecção de determinada mercadoria – ou serviço.

Pode-se considerar que os advogados, viviam numa realidade que não era perfeita, mas que proporcionava benefícios e privilégios à “classe” e não aceitavam o real da precarização da classe trabalhadora, que estava batendo às suas portas. Real e realidade são conceitos centrais de Lacan, e foram usados por Slavoj Žižek em cinco ensaios sobre como os EUA tiveram um choque com o real nos atentados de 11 de Setembro de 2001. “Bem-vindo ao Deserto do Real!” – título que referencia o filme Matrix (1999) – é o livro que compila estes ensaios.

Com o advento do capitalismo pós-fordista, as relações de trabalho mudaram: funcionários não mais ficavam décadas numa mesma empresa, a estabilidade era coisa do passado; todos os trabalhadores agora são regularmente avaliados numa burocracia infernal de entrega de resultados; empreendedorismo é a palavra em voga – e como diz Ricardo Antunes: “empreendedor de si mesmo e escravo de si próprio” (2), afinal, a jornada de trabalho tornou-se mais extensa e mais porosa, requerendo um dinamismo desumano.

Por um tempo os advogados viram-se imunes a isso, ou abraçaram as mudanças com um estoicismo cego – veja como advogados correram para abandonar a CLT e trabalharem em regime de associados para com grandes escritórios de advocacia. Curioso que este regime de sociedade, em geral, concede apenas alguns décimos percentuais para a grande massa de advogados, que na realidade tornam-se trabalhadores precarizados, pois não mais tem diante de si as limitações da CLT: com remunerações mensais que não tem índices de reajustes para obedecer, jornadas de trabalho ilimitadas e planos de carreira kafkianos e risíveis são apenas alguns aspectos desta precarização.

Com a pandemia, a precarização se acelerou: advogados passaram a trabalhar de suas casas – ou seja, os gastos operacionais foram em boa parte transferidos aos subordinados dos grandes escritórios de advocacia – em sucessivas e intermináveis reuniões em vídeo chamadas: atendimento a clientes, audiências, etc. E agora o regime híbrido de trabalho já é uma realidade para muitos profissionais.

Por óbvio, os profissionais abençoados pelo “capital social” conseguem uma vantagem tremenda, como é o caso dos filhos e parentes de advogados já renomados e experientes. Inclusive, certas áreas do direito já dependem muito mais deste capital para contratar mão de obra, como pode ser verificado pela ausência gritante de vagas para advogados criminalistas nas plataformas digitais. É um ramo em que o peso da indicação é muito maior.

Mas isto é o que encaram os advogados “empregados”, o que resta, portanto, aos advogados iniciantes?

Ora, para saber isto é necessário situar os cursos de direito no Brasil: Temos algo entre 1200 e 1500 cursos de direito no Brasil todo. Somando China, Estados Unidos, África e Europa temos 1100 cursos NO TOTAL (3). Para se ter uma noção basilar, Psicologia é ensinada em quase 400 cursos no Brasil  (4) e Medicina em 350 cursos pelo Brasil (5).

No fim das contas, temos 1 advogado para cada 164 pessoas no país (6). Como tantos profissionais do direito são absorvidos pelo mercado de trabalho? Simples: não o são, pelo menos não formalmente.

Há todo um mercado de prestação de serviços jurídicos – a “correspondência jurídica” – a preço de banana online, e é para lá que jovens advogados e bacharéis em direito vão para tentar a sorte. Nestas plataformas, a lógica de funcionamento é semelhante ao Uber ou iFood: Alguém (pessoas físicas, empresas e até escritórios de advocacia – dos pequenos aos massificados) oferece um serviço em determinado local, e um advogado/bacharel com acesso a este local se prontifica a realizar esta “diligência”. Pode ser tirar cópias de processos físicos, participar de audiências de conciliação e até de instrução. Tudo isto por um valor irrisório e pela chance de “calcar um nome”, ou “dar uma sorte” neste mercado de trabalho.

Isto permite que escritórios grandes captem clientes em todo o Brasil, pois para qualquer necessidade poderão pagar alguns trocados para um advogado uberizado realizar a diligência. O cliente, apesar de pagar pelo escritório de arquitetura faraônica, recebe um serviço realizado por alguém que mal o conhece e mal conhece o processo – muitas vezes conhecendo-o naquele mesmo dia da audiência, por exemplo.

Outro caminho é que os recém “empossados” advogados recorrem às redes sociais e anúncios online para divulgarem seu trabalho, e o resultado é no mínimo deprimente… Já tentou ensinar o que é ICMS, patente, FGTS, etc. em 1 minuto de uma forma engraçada com uma música que viralizou ao fundo?

O mais dramático não é que é difícil – ou quase impossível – absorver estes profissionais recém-formados no mercado de trabalho e sim que boa parte destes profissionais não estão desempregados e sim inempregáveis. O que é inempregável? Žižek ensina isto em seu livro ‘O Ano em que Sonhamos Perigosamente’: resumidamente é a parcela da população que nunca mais conseguirá um emprego formal. São eles que fazem pressão para que a população desempregada se qualifique a ponto de conseguir um emprego. Por sua vez, é a população desempregada que faz pressão para que os empregados não se tornem muito ambiciosos em suas demandas coletivas e sejam mais dóceis e produtivos no ambiente de trabalho.

É o clássico conceito de exército industrial de reserva e superpopulação relativa de Marx, também d’O Capital, Livro I: O avanço da tecnologia, inteligência artificial, big data, machine learning, bots, etc. tem tornado o antes tão prezado “trabalho intelectual e artesanal” dos advogados obsoleto. Não é segredo para ninguém que um escritório que tocava X processos/mês com Y advogados, hoje consegue fazê-lo com –Y advogados.

Além disto, as reformas neoliberais continuam a todo vapor: depois da reforma trabalhista veio a previdenciário e agora surgem no horizonte as reformas tributária e administrativa. A fonte está secando nestes segmentos, ao mesmo tempo que novas oportunidades se abrem com novos lapsos legislativos ou exploração de antigos trechos dos textos legais até então esquecidos.

E toda a massa de estudantes e bacharéis de direito fabricados pelos 1500 cursos pelo país, o que acham desta calamitosa situação? Ora, eles desconhecem tal situação. Aqui a ideologia do capitalismo pós-fordista(neoliberal) atinge seu ápice: sempre será o colega a ficar empoçado no mercado de trabalho, tal coisa nunca aconteceria “comigo”, pois sou dedicado, inteligente, etc; prefiro muito mais trabalhar “por conta” do que ter que cumprir horário e receber ordens, etc., etc., etc.

Por fim, resta aos advogados que reconheçam a precarização e a uberização de sua profissão. Consciência de classe aqui não deve ser uma arrogância luxuosa de seu papel na sociedade e sim a constatação de que são trabalhadores, altamente técnicos, que merecem um plexo de direitos mínimo e remuneração digna.

Pois é… o real que estava batendo à porta dos advogados alguns anos atrás agora já a arrombou, dobrou advogados “clássicos”, sentou-se sobre de advogados “renomados” e fez dos jovens advogados seu capacho, enquanto queima a antiga dignidade altiva da profissão na lareira.

Notas:

(1) MASCARO, Alysson Leandro. Cátedra da Educação Advocatícia – ESA OAB, 2020-2022.

(2)  https://www.youtube.com/watch?v=CcBF1DpuePU

(3)  https://www.direito.ufg.br/n/815-brasil-o-maior-complexo-industrial-de-producao-de-bachareis-em-direito

(4) https://vaidebolsa.com.br/blog/graduacao/melhores-faculdades-de-psicologia/

(5) https://portal.cfm.org.br/noticias/conselheiro-do-cfm-denuncia-na-camara-dos-deputados-que-80-das-faculdades-de-medicina-estao-em-municipios-sem-a-infraestrutura-ideal/

(6) https://www.migalhas.com.br/quentes/370971/pais-tem-1-advogado-a-cada-164-pessoas-nivel-dos-cursos-preocupa-oab

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