Por Cinthya Bastos Ferreira (1)
1. Tecnologia, dependência e colonialidade
A questão da tecnologia é fundamental para a compreensão das dinâmicas do capital em movimento (HARVEY, 2018). No entanto, antes de assumir a tecnologia como categoria translúcida ou dado a ser inferido pela bagagem sociocultural reinante, cabe a problematização acerca de seus significados. Nesse sentido, identifica-se quatro variações principais: 1) uma ligada à sua etiologia, circunscrevendo a tecnologia como teoria da técnica; 2) uma associada ao uso social corrente do termo, que propaga uma equivalência entre tecnologia e técnica, tornando estas intercambiáveis; 3) como desdobramento da perspectiva anterior, outra que localiza a tecnologia como conjunto de todas as técnicas de que dispõe uma sociedade em particular – sendo esta a acepção mobilizada quando se propõe medir o grau de desenvolvimento das forças produtivas das sociedades desde um ponto de vista comparativo; 4) por último, encontra-se a tecnologia como ideologização da técnica (VIEIRA PINTO, 2005).
No bojo destas discussões, a técnica, como par dialético da tecnologia, se insere enquanto expressão do sociometabolismo entre sujeito e natureza, no processo mesmo de produção das condições materiais e espirituais de existência, nos fluxos do trabalho. Por extensão, a objetivação da subjetividade, a partir de seus “pores teleológicos” (LUKÁCS, 1978), em instrumentais diversos e diversamente instrumentalizados na realidade historicamente situada, aponta para a inescapabilidade da técnica quando se aborda a presença de agrupamentos humanos. Sendo assim, contesta-se a hipótese ora mais e ora menos implícita de que os povos empobrecidos não possuem técnica – suposição insustentável, porque, se assim o fosse, não existiriam; pois, toda sociedade possui a técnica que lhe permite organizar-se no estado em que vive –, bem como se associa a gênese e disseminação desta premissa ao pensamento colonizador, que adota por padrão de valor máximo a técnica da sociedade dominante.
A esse respeito, os conceitos de colonialidade do poder e de colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) ocupam um lugar nuclear, sendo que o primeiro conceito chama a atenção para um processo “ocidentalização do imaginário”, ao passo que o segundo designa a repressão com relação a outras formas de produção de conhecimento que não aquelas europeias-centradas. Ou seja, são conceitos que reservam a si uma singularidade, mas que estão intimamente articulados pelo vetor mais amplo da colonialidade enquanto fruto da dinâmica do colonialismo, que domina e subjuga primeiro pela violência e depois persiste por suas reverberações no campo simbólico e por suas reconfigurações contemporâneas que espraiam modos de subordinação menos óbvias, mas, nem por isso, menos incisivas.
Ademais, na contramão do apelo de cunho personalista, o qual, grosso modo, atesta ser as invenções fruto da iluminação intelectual de gênios isolados e não fruto da processualidade sócio-histórica, ressalta-se a impossibilidade de se inventar ou de criar o que quer que seja, seja no plano físico ou no plano das ideias, a não ser aquilo que se instaura na ordem do dia (VIEIRA PINTO, 2005), que se coloca como relevante ou imperativo, e que engloba tanto a posse dos instrumentos lógicos e materiais indispensáveis para se chegar a uma nova realização, quanto a exigência ou demanda desta realização em potencial pela sociedade que, enquanto tal, enquadra problemas e necessidades outras, quiçá inéditas, no curso de seu desdobramento histórico permeado por contradições.
Tendo em vista tais ressalvas, mais do que diferenças de graus de desenvolvimento (concepção quantitativa), há diferenças nos modos de desenvolvimento (concepção qualitativa) ao largo do globo – embora prevaleça a coexistência combinatória entre quantidade e qualidade, não sendo estas mutuamente excludentes. A multiplicidade cultural que caracteriza a humanidade revela dinâmicas e prioridades sociais dissemelhantes, ligadas a inúmeros fatores que deságuam em organizações sociais singulares, com espaço para o comum e para o irredutível a outras organizações sociais – neste ínterim, merece menção o fato óbvio, mas não raro negligenciado, de que nada emerge no vácuo e, neste caso, vislumbra-se que a multiplicidade é alocada desde um prisma em que se prevaleceu o etnocentrismo (CARVALHO, 1997) e seus impactos em termos das condições de (auto)valorização dos povos subalternizados econômica e subjetivamente (FANON, 2008).
Por outro lado, se se partisse de uma concepção com destaque a elementos pretensamente quantitativos, haver-se-ia de se equacionar as desigualdades que perpassam os fluxos internacionais os quais conformam obstáculos ao desenvolvimento do denominado Sul global – aquele cuja existência carrega consigo a mácula do colonialismo e da escravização, em interface ao estigma do atraso. Nesse sentido, o Sul global se entrelaça conceitualmente à periferia do sistema capitalista, historicamente constituída enquanto provedora dos subsídios necessários para o alavancamento das economias centrais (PRADO JÚNIOR, 1981), de modo que estas, longe de se desenvolverem por geração espontânea, tiveram seu desenvolvimento calcado na expropriação de valor das regiões periféricas: por isso, além de se dizer de divisão internacional do trabalho e de tecnologia genericamente, diz-se de uma divisão e de uma tecnologia pautada em hierarquias que determinam o maior ou menor grau de soberania das diferentes regiões e de suas produções (OSORIO, 2018).
Isso posto, defende-se aqui que, ao invés de uma correspondência entre técnica e tecnologia e ao invés de uma teoria da técnica que traduziria o (suposto) real com fidedignidade inconteste, a tecnologia é, acima de tudo, um arranjo ideológico sobre a técnica, cuja atuação tende a despir o caráter relacional da tecnologia, isto é, cuja atuação busca dissociá-la da totalidade. Por essa via, vislumbra-se um esforço de ocultar as forças em embate nas sociedades de classes, reafirmando a neutralidade dos objetivos societários perseguidos/concretizados e inflamando uma visão reificada e fetichista da tecnologia, de modo que, deste encadeamento, cuja racionalidade é irracional (MARCUSE, 2019), fermenta-se, ainda, uma concepção homeopática da tecnologia (VIEIRA PINTO, 2005), centrada na crença de que só ela poderia salvar o mundo dos conflitos que ela própria desencadeia.
A alienação tecnológica, nesse sentido, contribui com e reafirma a colonialidade (CASSINO, 2021), em especial, em uma realidade regida pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC), tal qual se revela a atualidade neoliberal. De tal modo alienado, o desenvolvimento tecnológico assume contornos que passam: 1) pela presunção da imparcialidade da tecnologia, que seria apenas um meio ou instrumento isento de valores ou interesses particulares; 2) pela convicção de que os contratos formalmente dispostos ou vinculados pelas gigantes da tecnologia não se desviam ou se alteram no plano do vivido; 3) pela indistinção dos efeitos que a coleta massiva de dados das populações têm nos países centrais e nos periféricos; 4) pela inferência fatalista que atesta a impossibilidade de desenvolvimento científico e computacional local (SILVEIRA, 2021).
2. Resgatando Marx: tecnologia e desenvolvimento das forças produtivas
Ao retomar aspectos do pensamento marxiano, salta-se aos olhos aproximações diversas em relação ao tema aqui em pauta. Contudo, a atenção direcionada à atuação da tecnologia na realidade social, pelo crítico da economia política, não implica que as análises empreendidas sejam completas ou incontestáveis – daí a importância de se reconhecer contribuições, mas de, concomitantemente, localizá-las concretamente no campo do então possível a ser delineado, uma vez que todos/as nós somos conformados/as historicamente, ou seja, ninguém se coloca além ou aquém de seu tempo.
Traçadas estas ponderações, em O Capital, nos seus volumes I, II e III, é justamente o papel da tecnologia e da ciência em relação à valorização do capital e à produção de mercadorias que ganha ênfase analítica, ainda que se identifiquem lacunas sobre as tecnologias de circulação, distribuição ou reprodução social (HARVEY, 2018). No entanto, ainda em diálogo com as elaborações do geógrafo marxista supracitado, tem-se que Marx tinha bons motivos para assumir esta posição relativamente comedida, pois mudanças técnicas e organizacionais tendem a ocorrer em todo lugar, a todo o tempo e por vários motivos na história das sociedades. A questão em xeque é que algumas dessas novas técnicas e formas organizacionais persistem, enquanto outras não; isto é, nem toda mudança é estável a ponto de tornar-se estruturante.
Quanto a isso, pode-se mencionar que a China antiga teve um longo percurso de inovações técnicas e organizacionais, embora nenhuma delas tenha se mostrado duradoura ou amplamente adotada. E é desfiando este apontamento que se chega a uma elaboração fulcral: “é somente sob o regime capitalista que se encontra uma força sistemática e poderosa impulsionando o dinamismo tecnológico, com efeitos duradouros e acumulativos” (HARVEY, 2018, p. 86). E isso por quê? Em linhas gerais, porque sob o capitalismo, o processo produtivo é moldado pela busca perpétua por mais-valor e, mais especificamente, por mais-valor relativo, atrelado a transformações técnicas que incrementam as forças produtivas.
Em suma, os capitalistas sem concorrência uns com os outros vão vender as suas mercadorias a um preço social médio, associado ao tempo de trabalho socialmente necessário de sua produção (MARX, 1983). Contudo, aqueles proprietários que possuem uma tecnologia ou forma organizacional diferencial e superior (em termos de eficácia e eficiência) em sua produção, têm lucros extras (ou seja, mais-valor relativo), por produzirem a mercadoria a um custo menor e a venderem pela média social. Em sentido oposto, os que lançam mão de tecnologia ou forma organizacional inferior obtêm lucros menores ou mesmo prejuízos, sendo, por isso, forçados a adotar novos métodos, a fim de evitar o risco da falência ou de serem adquiridos por aqueles que estão à frente no mercado.
Nesse sentido, a tecnologia e a inovação conduzem a uma generalização de si mesma como condição de manutenção da sobrevivência no mercado concorrencial. Aqueles produtores em situação mais vantajosa têm um incentivo para adotar métodos sempre melhores, de modo a garantir a sua fatia no mercado e aumentar os lucros extras. Resumindo, portanto, quanto maior a disputa ou mais intensa a corrida pela liderança no mercado, maior a probabilidade de ocorrer saltos de inovação, já que, se uma empresa passa à frente, as outras são impelidas a alcançá-la ou ultrapassá-la, a fim de garantir sua continuidade.
Todavia, há de se pontuar, nesse aspecto, que o aumento do mais-valor relativo pode vir, ou não, acompanhado de um aumento no padrão de vida da classe trabalhadora em sua pluralidade (MARCUSE, 2019), o que vai depender de como os benefícios relativos ao aumento da produtividade serão distribuídos entre capital e trabalho – em outras palavras, vai depender do estado da luta de classes. Outro ponto importante é que, uma vez que para os capitalistas as máquinas aparecem como uma fonte primordial de mais-valor extra, é comum a inferência de que as máquinas, elas mesmas, constituiriam uma fonte de valor, impulsionando uma ofensiva sobre a classe trabalhadora, ofensa que desestabiliza o poder de negociação entre os polos antagônicos de expropriadores/as e expropriados/as.
Ora, as máquinas são trabalho morto e, como trabalho morto, não podem produzir nada por conta própria. O trabalho vivo (e não o acúmulo de trabalho passado) é que se firma como a única fonte de mais-valor. O resultado deste equívoco é um paradoxo que continuamente engendra uma visão alienada da tecnologia, em que as relações sociais entre os próprios seres sociais vão assumindo para eles (para nós) a forma “fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 1996, p.198), como se a tecnologia adquirisse vida própria, transmutando, por conseguinte, o processo de trabalho em servidão ao objeto, em uma clara inversão de meios e fins.
Seguindo, porém, com a discussão acerca dos elos entre inovação tecnológica e concorrência, faz-se necessário levar em conta um cenário outro, em que, por vezes, condições de monopólio ou oligopólio, em vez da concorrência, predominam no âmbito socioeconômico. Este é um cenário potencialmente capaz de atenuar a força motriz por detrás do dinamismo tecnológico, no entanto, há outros incentivos, além daqueles da concorrência, para que sejam adotadas novas tecnologias. Nesse quesito, inovações são concebidas também no sentido de desempoderar a classe trabalhadora (BIHR, 1998), tanto no mercado quanto no transcurso do processo de trabalho. Dito de outra maneira: tecnologias capazes de substituírem a mão de obra qualificada são uma arma crucial na luta de classes e uma ameaça constantemente manejada para diminuir a capacidade de barganha dos/as trabalhadores/as.
No bojo desta discussão, “a tecnologia é simultaneamente ameaça difusa de desemprego e promessa do fim do trabalho” (FONTES, 2017, p. 50). Por isso, a maquinaria atua não apenas como concorrente, no sentido de tornar, ao menos na aparência imediata, “supérfluo” ou “obsoleto” o trabalhador e a trabalhadora, em particular aqueles/as em regime de assalariamento em contratos formais. O capital também manipula a maquinaria como potência hostil ao trabalhador e à trabalhadora, uma vez que converte a maquinaria em um dispositivo de repressão das revoltas da classe que vive-do-trabalho, visto que desarticula as organizações trabalhistas, nos lança, enquanto seres sociais que dependem da venda da própria força de trabalho para se reproduzir, contra nós próprios na luta pela subsistência e legitima esse estado de coisas no campo superestrutural (naturalização).
Destarte, o que se presume é que, independentemente do estado que se encontra o pêndulo entre concorrência e monopólio, assegurar uma dinâmica contínua de mudança tecnológica e organizacional é interessante do ponto de vista do capital, uma vez que este precisa se movimentar para se realizar. Quanto a isso, é possível, à título de exemplo, remontar à crise capitalista do final da década de 1970, com a quebra e a insustentabilidade do pacto fordista então prevalecente em conjunto com Welfare State no âmbito estatal e com o keynesianismo no âmbito econômico (BIHR, 1998), e a maneira como a abertura do comércio pra uma estrutura globalizada de concorrência foi adotada como solução, ainda que parcial e contraditória, para se retomar um projeto de dominação societal sob o jugo do capital (ANTUNES, 2000).
Igualmente relevante é pontuar que, mesmo durante a denominada era de ouro do capital, localizada entre os anos 1945-1970, cuja marca tem de ver com a proeminência da intervenção estatal no sentido de fomentar e de consolidar políticas sociais, não entrava na equação os países periféricos. Desse modo, há de se questionar: era de ouro para quem? Pois os/as trabalhadores/as sem direitos, tal qual imigrantes, que viviam nesses países privilegiados, não estavam contemplados. Tampouco os povos camponeses de outros países que estavam sendo espoliados pelo avanço imperialista (FONTES, 2017). Além disso, na contramão da formalidade conquistada nesse período nos países centrais, nos países de economia dependente persistiu as historicamente precárias condições de trabalho hoje feitas tendência mundiais.
Isso posto, e regressando outra vez mais ao diálogo com o pensamento marxiano sobre o desenvolvimento tecnológico, faz-se necessária a tessitura de ponderações quanto à ideia comumente propagada de que Marx seria um “determinista tecnológico”. Dentro desse tema, não só os críticos de Marx, mas inclusive autodesignados marxistas postulavam que Marx pressupunha um desenvolvimento tecnológico ilimitado e que propagava o domínio absoluto sobre a natureza como um triunfo do gênero humano (SAITO, 2021). Por isso, estaria posto um pretenso utopismo tecnológico em Marx, o qual o impediria de identificar e de compreender a dialética que acabaria engendrando retaliações da natureza sob o predomínio do produtivismo.
Quanto a isso, e em direção oposta, nota-se já nos denominados Cadernos de Paris, de 1844, o afloramento da problemática ecológica (SAITO, 2021), principalmente na teoria sobre a alienação, que remonta criticamente à dissolução da unidade entre seres sociais e natureza pela hegemonia da propriedade privada. Mais do que isso, no próprio rol de elaboração da sua economia política, a problemática referente à insustentabilidade ambiental surge como uma barreira imposta ao processo de valorização do capital e, nesse sentido, a crise ecológica é uma crise e uma contradição do próprio capital que, ao buscar sua valorização contínua, destrói suas próprias condições materiais e se confronta com os limites da natureza.
Marx considerou a tensão antagônica entre valor de uso e valor de troca como chave para as contradições internas do capitalismo e também do conflito deste com o seu ambiente natural externo. Insistiu em que a natureza e o trabalho constituíam, em conjunto, as duas fontes de toda a riqueza. Ao incorporar apenas o trabalho (ou serviços humanos) nos cálculos econômicos do valor, o capitalismo assegurava que os custos ecológicos e sociais da produção fossem excluídos do resultado final. De fato, a economia política liberal clássica, argumentou Marx, tratava as condições naturais de produção (matéria-prima, a energia, a fertilidade do solo etc.) como “brindes da natureza” para o capital (FOSTER, 2015, p. 88, grifo meu).
Mais do que isso, o que é sublinhado pelo autor de O Capital diz respeito à tendência de o trabalho morto gradativamente substituir o trabalho vivo (MARX, 1983). Nesse sentido, ao ressaltar o movimento de desenvolvimento das forças produtivas, assevera-se que as condições materiais para a transformação estrutural das sociedades capitalistas já estão postas nelas mesmas. Entretanto, é preciso levar em conta que com base apenas no desenvolvimento da produção capitalista não há possibilidade de um empreendimento revolucionário ser levado a cabo (HARVEY, 2018; MARCUSE, 2019), já que não se apresenta como possibilidade concreta que cada ser social lance mão do seu tempo, porque assim como a apropriação da produção de mercadorias, a apropriação do tempo disponível, no capitalismo, é privada. Isto é: a diminuição do tempo necessário para a produção de mercadorias não se traduz em mais tempo livre a ser desfrutado pela classe trabalhadora, porque enquanto houver uma sociedade cindida em classes sociais, o que prevalece não é o valor de uso, mas o valor de troca.
3. Capitalismo de plataforma, dataficação e mundo do trabalho
A sociabilidade capitalista é conformada por continuidades e rupturas, as quais se vinculam com o próprio movimento do real em sua complexidade. O capitalismo contemporâneo não é o mesmo que aquele emergente com a dissolução feudal, assim como não coincide com o capitalismo mercantil ou com o industrial, ainda que traços de um ou de outro permaneçam e se reinventem no presente. Condições histórico-concretas, que remontam às dinâmicas econômicas, sociais, culturais, políticas, inter e intrassubjetivas, amalgamam-se no enquadre mais ou menos estável da realidade. No entanto, as mutações substanciais a que se assiste no decorrer da história ainda se dão no bojo do capitalismo ele mesmo, sendo seu núcleo duro preservado: a propriedade privada dos meios de produção e a cisão por classes sociais. Sendo assim, se as continuidades são parciais, também as são as rupturas com relação a si próprio enquanto sistema que preza pela valorização do valor.
Ao apresentar a extração, a classificação e a interpretação de dados como parte indispensável do capitalismo em sua forma história atual, abre-se margem para perscrutar os componentes coloniais a ele inerentes. A esse respeito, considera-se o colonialismo menos a partir de uma ideia de invasão militar visando a dominação pela força e pela imposição, e mais como um processo de utilização de vantagens e desvantagens estruturais no exercício de influência política, jurídica e comportamental. Se outrora era possível pensar em termos de distinção entre um “mundo real” e um “mundo virtual”, hoje essas divisas formam um amálgama complexo, em que os fluxos de informação se interpenetram, resultando na apropriação da vida cotidiana via codificação extensiva e intensiva dos dados produzidos pelas populações, em um cenário em que dados são recursos à serviço da acumulação de capital e que o acesso a eles se dá de modo predatório pelas corporações.
O movimento de aparecimento das plataformas é replicado de várias formas controlando esferas até então virgens e/ou contribuindo para lhes conferir caráter comercial. Tratar-se-á, portanto, de seguir dois movimentos fundamentais e complementares de naturezas distintas. O primeiro dá seguimento ao processo histórico de subjugação da mão de obra à demanda e organiza, a partir da transformação causada pela era digital, as novas condições extremas de utilização e descarte da força de trabalho. O segundo, a partir da potência da subversão wireless dessas mesmas tecnologias digitais, segue colonizando as esferas vernaculares até então constituídas em torno da reciprocidade e mantidas distantes da esfera comercial (CINGOLANI, 2022, p. 2).
Neste esteio, embora a economia digital seja associada ao reino do imaterial, há de se ater às infraestruturas que a sustenta e que tanto se distanciam da aura imaculada e desencarnada de progresso que disseminam. Para partir do básico, a existência deste estado de coisas, movido pelas TICs, não prescinde de materialidade. O complexo industrial (micro)eletrônico não se fincaria sobre os próprios pés se as práticas extrativistas de metais diversos (como lítio e estanho, por exemplo), não o subsidiasse; se água e energia não fossem largamente consumidos no trajeto de fabricação dos artefatos tecnológicos, se combustíveis fósseis não fossem utilizados e não permitissem o cumprimento logístico, se trabalhadores/as não atuassem no descarte ou na reciclagem de lixo eletrônico, e assim por diante.
Por conseguinte, a digitalização da vida, mais do que abstração, é fruto de relações sociais concretas com lastros materiais, que envolvem a apropriação de matérias-primas e sua repercussão no nível de salubridade da vegetação, do ar e da água da região, as disputas geopolíticas e suas articulações com conflitos bélico-militares e os fluxos de trabalho vivo em distintas etapas da cadeia de produção, de distribuição e de circulação, com efeitos diversos sobre as condições gerais de vida, que permitem a alusão ao racismo ambiental (JESUS, 2020) e à necropolítica (MBEMBE, 2018) como uns dos nexos que permeiam o colonialismo contemporâneo. Sendo assim, o imaterial oculta justamente a exploração massiva da natureza, do trabalho e, em suma, da existência.
O enraizamento destas novas configurações institucionais, aparentemente aderidas por todos/as livremente, invisibiliza a ausência de reciprocidades estruturais (ZUBOFF, 2018) entre as empresas e suas tecnologias, por um lado, e as populações às tecnologias vinculadas, por outro. Nesse sentido, a ausência de reciprocidades estruturais exprime a proeminência de termos definidos unilateralmente, os quais minam com os contratos que previam, ao menos parcialmente, a participação e a agência dos sujeitos envolvidos. Mesmo, e quiçá principalmente, em tal circunstância de assimetria, os indivíduos passam a depender das novas ferramentas de informação e comunicação como recursos indispensáveis na batalha diária não só competitiva, mas também estratificada, na busca por uma vida mais eficaz. Somado a isso, as novas ferramentas, redes sociais, aplicativos, plataformas e mídias diversas passam a se tornar requisitos para a participação social em diversos âmbitos, o que produz uma sensação de inevitabilidade.
De modo geral, identifica-se três tipos de plataformas de trabalho (WOODCOCK, GRAHAM, 2022), que se capilarizam no tecido social e, não raro, se apresentam como alternativa única ante a um cenário de desemprego estrutural: 1) plataformas que requerem uma localização específica dos/as trabalhadores/as (como no caso da iFood, Rappi, Uber e demais semelhantes), sendo este um tipo de trabalho que possui similitudes com os trabalhos que precedem as plataformas digitais – como pedir um táxi ou entregar uma refeição, por exemplo –, mas que é irredutível a estes, dadas as diferenças no gerenciamento por meio de aplicativos pautados no controle algorítmico e gameficado; 2) plataformas de microtrabalho ou crowdwork, caracterizadas principalmente pelo trabalho de treinar dados para a chamada “inteligência artificial”, a partir do reconhecimento ou da transcrição de imagens, por exemplo; 3) plataformas freelances, de cloudwork ou macrotrabalho, que reúnem tarefas diversas, que podem ser realizadas de qualquer ponto do globo.
À vista deste cenário, de aniquilamento de direitos sociais e de ascensão do trabalho disperso e flexível, mas minuciosamente monitorado em uma economia de polimento de dados e de regulação algorítmica, demanda-se dos sujeitos modulações contínuas em suas performances, as quais passam a dialogar com temporalidades e espacialidades outras, que desviam do padrão mobilizado pelas sociedades disciplinares e, mais do que isso, acionam o imperativo do engajamento subjetivo (ZARIFIAN, 2002) como artifício de (auto)responsabilização, sem contrapartida das empresas-aplicativos, da massa de trabalhadores/as que devem encontrar-se continuamente em posição de prontidão, de modo que se circunscreve um apagamento das nuances entre tempo de trabalho e tempo de vida, com amplas consequências no que se refere aos processos de adoecimento físico e psicossocial dos/as trabalhadores/as (SAFATLE, SILVA JUNIOR, DUNKER, 2021).
Desse modo, vislumbra-se três principais movimentos de construção de alternativas ao cenário contemporâneo do trabalho mediado e subordinado por plataformas, de caráter reformista, dentro da ordem, mas também portadores de potenciais revolucionários no sentido de fomentar a formação política crítica e o engajamento popular: 1) a regulação do trabalho nas plataformas digitais como pauta reivindicatória; 2) a organização dos/as trabalhadores/as; 3) o desenvolvimento de novas lógicas de organização do trabalho, como o cooperativismo de plataforma. Assim, inquirir acerca das possibilidades e dos interesses em jogo na complexa interface entre tecnologia e trabalho torna-se um desafio a se percorrer a fim não só de elaborar um diagnóstico da realidade, como também e essencialmente, de entrever rotas outras para um reencantamento do mundo (FEDERICI, 2022).
Referências bibliográficas:
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento subordinado ou viração? Uberização e o trabalhador just-in-time na periferia. Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, set-dez. 2021, p. 933-955.
ABÍLIO, Ludmila Costhek; AMORIM, Henrique; GROHMANN, Rafael. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, mai-ago 2021, p. 26-56.
ANTUNES, Ricardo. Fordismo, toyotismo e acumulação flexível. In: Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2000.
BIHR, Alain. A ruptura do compromisso fordista. In: Da grande noite à alternativa – o movimento operário europeu em crise. São Paulo: Boitempo, 1998.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia, 2008.
FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o Marxismo, Rio de Janeiro, v.5, n.8, jan,/jun. 2017.
FOSTER, John Bellamy. Marxismo e Ecologia: fontes comuns de uma Grande Transição. Lutas Sociais, São Paulo, vol.19 n.35, p.80-97, jul./dez. 2015.
GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: entre a dataficação, a financeirização e a racionalidade neoliberal. Epitic, Sergipe, v. 22, n. 1, jan.-abr. 2020.
HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.
JESUS, Vitor de. Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental. Saúde e Sociedade, v. 29, n. 2, 2020.
LIMA, Fátima. Trauma, colonialidade e a sociogenia em Frantz Fanon: os estudos da subjetividade na encruzilhada. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 72, p. 80-93, 2020.
LUKÁCS, Georg. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas, São Paulo, n. 1, 1978.
MARCUSE, Herbert. Da ontologia à tecnologia: as tendências da sociedade industrial. Revista Dialectus, Fortaleza, n.14, p. 310-319, 2019.
MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Economistas, Livro I, Tomo 1, 1983.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
OSORIO, Jaime. O Estado no Centro da Mundialização: a Sociedade Civil e o Tema do Poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019.
POELL, Thomas; NIEBORG, David; VAN DIJCK, José. Plataformização. Tradução: Rafael Grohmann. Revista Fronteiras – estudos midiáticos, v. 22, n. 1, p. 1-10, jan./abr. 2020.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1981.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Clacso, 2005a. p. 107-30.
SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson; DUNKER, Christian. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021.
SAITO, Kohei. O ecossocialismo de Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2021.
VIEIRA PINTO, Álvaro. O conceito de Tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
WOODCOCK, Jamie; GRAHAM, Mark. Economia Gig: uma abordagem crítica. São Paulo: Editora Senac, 2022.
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação. In: BRUNO, Fernanda, CARDOSO, Bruno, KANASHIRO, Marta, GUILHON, Luciana e MELGAÇO, Lucas (org.). Tecnopolíticas da vigilância: prespectivas da margem. São Paulo, Boitempo, 2018.
Notas:
(1) Possui graduação em Psicologia (PUC-MG) e em Ciências Sociais (UNIFAL/MG). Membra do GETT – Grupo de Estudos Sobre Trabalho e Tecnologia, da UNIFAL/MG.