Por Slavoj Žižek, via In These Times, traduzido por Patricia do Prado Ferreira Lemos
É claro que nenhum agente político privilegiado sabe inerentemente o que é melhor para as pessoas e tem o direito de impor suas decisões sobre as pessoas contra a sua vontade (como o Partido Comunista stalinista fez). No entanto, quando a vontade da maioria claramente viola liberdades emancipatórias básicas, tem-se não só o direito mas também o dever de se opor a maioria.
Algumas vezes rostos se tornam os símbolos das forças anônimas que estão por trás deles. Não era a face estupidamente sorridente do Presidente do Eurogrupo Jeroen Dijsselbloem o símbolo da brutal pressão da União Europeia sobre a Grécia? Recentemente, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (APT) [1] – o primo europeu da Parceria Trans-Pacífico [2] – adquiriu um novo símbolo: a face fria da comissária de comércio da UE, Cecilia Malmström, que respondeu à oposição pública maciça à APT deste modo: “Eu não tomo meu mandato dos povos europeus”.
Agora, um terceiro deste símbolo apareceu: Frans Timmermans, o primeiro vice-presidente da Comissão Europeia que, em 23 de dezembro de 2015, repreendeu o governo polonês por adotar uma nova lei que subordina o tribunal constitucional Polonês a autoridade do governo. Timmermans também condenou a lei que permite ao parlamento polonês substituir todos os executivos das empresas públicas de televisão e rádio do país. Em uma reprimenda imediata, os nacionalistas poloneses advertiram Bruxelas “a exercer de forma mais contida a instrução e o alerta do parlamento e do governo de um estado soberano e democrático”.
Do ponto de vista padrão da esquerda-liberal, é inapropriado colocar estes três nomes na mesma série: Disselbloem e Malmström personificam a pressão dos burocratas de Bruxelas (sem legitimação democrática) sobre os governos democraticamente eleitos, enquanto Timmermans interveio para proteger as instituições democráticas básicas (independência judicial e imprensa livre). Pode parecer obsceno comparar essa brutal pressão neoliberal na Grécia com a crítica justificada da Polônia, mas a reação do governo polonês não atingiu esse ponto? Timmermans de fato exerceu pressão sobre um governo democraticamente eleito de um estado soberano.
Recentemente, quando eu estava respondendo a perguntas de leitores do Süddeutsche Zeitung sobre a crise dos refugiados, a questão que mais chamou atenção era sobre democracia – mas com uma torção populista de direita. Quando Angela Merkel convidou centenas de milhares de refugiados para a Alemanha, o que lhe dava o direito? Meu ponto aqui não é apoiar populistas anti-imigrantes, mas apontar os limites da legitimação democrática. O mesmo vale para aqueles que defendem a abertura radical das fronteiras: eles estão conscientes de que, uma vez que nossas democracias são democracias do estado-nação, sua demanda equivale a uma suspensão da democracia – em outras palavras, que uma mudança gigantesca deve ser permitida sem uma consulta democrática?
Encontramos aqui o velho dilema: o que acontece com a democracia se a maioria está inclinada a votar em leis racistas e sexistas? É fácil imaginar uma Europa democratizada com um povo muito mais engajado na qual a maioria dos governos sejam formados por partidos populistas anti-imigrantes. Eu não tenho medo de concluir que a política emancipatória não deve ser limitada a priori pelos procedimentos formais-democráticos de legitimação.
É claro que nenhum agente político privilegiado sabe inerentemente o que é melhor para as pessoas e tem o direito de impor suas decisões sobre as pessoas contra a sua vontade (como o Partido Comunista Stalinista fez). No entanto, quando a vontade da maioria claramente viola liberdades emancipatórias básicas, tem-se não só o direito mas também o dever de se opor a maioria. Isto não é razão para desprezar as eleições democráticas – mas somente para insistir que elas não são por si só uma indicação da Verdade. Como regra geral, as eleições refletem o juízo convencional da ideologia hegemônica.
Os críticos da esquerda à União Europeia se encontram portanto em uma situação embaraçosa: eles lamentam o ‘déficit democrático’ da União Europeia e propõem planos para tornar as decisões tomadas em Bruxelas mais transparentes, mas apoiam os administradores ‘não-democráticos’ de Bruxelas quando eles exercem pressão sobre tendências ‘fascistas’ democraticamente legitimadas. O que está por trás desta contradição é o Grande Lobo Mau da esquerda Liberal Europeia: a ameaça de um novo fascismo incorporado ao populismo anti-imigrante da direita. Este espantalho é percebido como o principal inimigo contra o qual devemos todos nos unir, desde (o que resta) da Esquerda Radical até os principais democratas liberais (incluindo os administradores da União Europeia como Timmermans). A Europa é retratada como um continente regredindo em direção a um novo fascismo que se alimenta do ódio paranoico e do medo do inimigo étnico-religioso (na maioria mulçumanos). Enquanto este novo fascismo é dominante em alguns países do Leste Europeu pós-comunista (Hungria, Polônia, etc.), ele está se tornando cada vez mais forte em muitos outros países da UE onde a visão é de que a invasão dos refugiados muçulmanos representa uma ameaça para a civilização europeia.
Mas isso é realmente fascismo? O termo é muitas vezes usado para evitar análises detalhadas. O político holandês Pim Fortuyn, morto no início de maio de 2002, duas semanas antes de quando se esperava que ele ganhasse um quinto dos votos, foi uma figura paradoxal: um populista de direita, cujos atributos e opiniões pessoais (para a maior parte) eram quase perfeitamente ‘politicamente corretos’: ele era gay, tinha boas relações pessoais com muitos imigrantes e possuía um senso inato de ironia, etc. – em resumo, ele era um bom liberal tolerante com todas as coisas, exceto sua posição política básica. Ele se opôs a imigrantes fundamentalistas por causa de sua falta de tolerância em relação a homossexualidade, aos direitos das mulheres, às diferenças religiosas, etc. O que ele encarnava era, assim, a intersecção entre o populismo direitista e o retidão política liberal. Talvez ele tivesse que morrer porque ele era a prova viva de que a dicotomia entre o populismo de direita e a tolerância liberal é uma farsa – que estamos lidando com dois lados de uma mesma moeda.
Muitos liberais esquerdistas, como Jürgen Habermas, idealizam uma União Europeia ‘democrática’ que nunca existiu. A política recente da UE nada mais é que uma tentativa desesperada de fazer a Europa apta para o capitalismo global. A crítica esquerdo-liberal usual da União Europeia – que é basicamente “ok, apenas um ‘déficit de democracia’- revela a mesma ingenuidade dos críticos dos países ex-comunistas que apoiavam os comunistas mas lamentavam a falta de democracia. Em ambos os casos, o déficit da democracia é uma parte necessária da estrutura.
Em uma referência à provável eleição do Syriza na Grécia, em dezembro de 2014, o Financial Times publicou uma coluna intitulada: “O elo mais fraco da Eurozona são os eleitores”. No mundo ideal cor-de-rosa, a Europa se livra deste “elo mais fraco” e especialistas ganham o poder de impor diretamente medidas econômicas. Se as eleições tiverem lugar, sua função é confirmar o consenso dos especialistas.
Como o eurocrata e primeiro ministro da Itália Mario Monti colocou: “Aqueles que governam não devem permitir-se serem completamente limitados pelos parlamentares”.
A única maneira de contrariar o ‘déficit democrático’ do capitalismo global seria através de uma entidade transnacional. Mas o estado-nação não pode servir como um baluarte democrático contra o capitalismo global por duas razões: Primeiro, ele está a priori numa posição de fraqueza num momento em que a economia funciona como uma força global; segundo, para fazê-lo, um estado-nação soberano é obrigado a mobilizar a ideologia nacionalista e, assim, abre-se ao populismo de direita. A Polônia e a Hungria são hoje duas destas nações-estados em oposição a globalização.
Isso nos traz ao que é a principal contradição do capitalismo global: a imposição de uma ordem política global que corresponderia a uma economia capitalista global é estruturalmente impossível, e não porque é empiricamente difícil organizar eleições globais ou estabelecer instituições globais. A razão é que o mercado global não é uma máquina neutra universal com as mesmas regras para todos. Ele exige uma vasta rede de exceções, violações de suas próprias regras, intervenções extra-econômicas (militares) e assim por diante. Então, enquanto nossa economia está cada vez mais global, o que é ‘reprimido’ na economia global anônima retorna na política: fixações arcaicas e identidades particulares (étnicas, religiosas, culturais). Essa tensão define nossa situação hoje: a livre circulação global das mercadorias é acompanhada por crescentes divisões sociais. As mercadorias circulam cada vez mais livremente, mas as pessoas estão sendo mantidas separadas por novos muros, por muros físicos (como na Cisjordânia e entre os Estados Unidos e o México) que reafirmam identidades étnicas e religiosas.
Será que isso significa que devemos ignorar o tema da democratização da Europa como um beco sem saída? Pelo contrário, isso significa que, precisamente por causa dessa importância central, nós devemos abordá-la de um modo mais radical.
O problema é mais substancial: como podemos transformar as coordenadas básicas da nossa vida social, da nossa economia e da nossa cultura, para que a democracia como tomada livre e coletiva de decisões torne-se real – não apenas como um ritual de legitimação de decisões tomadas em outro lugar?
[1] Transatlantic Trade & Investment Partnership (TTIP).
[2] Trans-Pacific Partnership
2 comentários em “O problema do fascismo na Democracia”