Por Wesley Almeida
“A filosofia é o risco que a mente corre de assumir sua dignidade” (1)
Fanon, 1951.
Introdução
No ano de 1951, Frantz Fanon apresenta sua tese de exercício à Faculdade Mista de Medicina e Farmácia em Lyon para a obtenção de seu doutoramento em medicina. Intitulada de “Um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão”, a obra é aberta com duas citações; a primeira de Nietzsche: “Só falo de coisas vividas e apresento não só coisas que acontecem na cabeça” (2) e a segunda, de Paul Guiraud e Julian de Ajuriaguerra: “A frequência e a importância dos distúrbios mentais nas enfermidades nervosas familiares não permitem que sejam consideradas acidentes fortuitos”(3). Ambas citações prenunciam os objetivos almejados por Fanon.
Um importante elemento que parece estar no pano de fundo em Alienação e liberdade, dentre outras coisas, é a relação entre a psicopatologia e a ideologia. Nesse sentido, a fronteira entre o normal e o patológico, além da própria concepção de cura, se tornam turvas. Em outras palavras, Fanon percebe que a forma da psiquiatria praticada na Europa, quando posta em contextos de pessoas colonizadas, parece mais reforçar e criar novos quadros patológicos, do que efetivamente superá-los. Dessa forma, em primeiro lugar, exporemos os pressupostos que fundamentam o movimento fanoniano de ruminação do discurso psiquiátrico, isto é, compreender o que está em jogo na análise da subjetividade colonizada, em segundo, analisar os pressupostos teóricos dos quais Fanon parte, e, por último, desdobrar o modo como se aproximou da psicanálise para vislumbrar a relação entre a loucura e a liberdade.
A descida ao verdadeiro inferno
Para pavimentar os caminhos abertos por Fanon, é incontornável que comecemos recorrendo a Pele Negra, Máscaras Brancas. Antes de mais nada, é válido ressaltar que esse texto seria sua tese de doutorado em Lyon, não fosse a recusa da banca sob o argumento de que não correspondia aos parâmetros necessários à psiquiatria; por esse motivo, em seu lugar foi apresentada como tese a obra citada no início deste texto, que nos servirá como fio condutor. Um acidente nem tão fortuito para quem vê na contingência um caminho.
Logo nas primeiras páginas, Fanon prenuncia o ponto de chegada que se almeja: um novo humanismo. Porém, no meio desse caminho há uma pedra; é necessário se vislumbrar um novo humanismo justamente porque a ideia de humano, antes de representar um princípio de humanidade, tem representado o princípio de sua negação fundamental. O branco é humano e “o negro é um homem negro” (Fanon, 2020b, l.22). Fanon constata que não há relação direta entre o negro e o humanismo. O negro não pode ser humano, porque ele não é branco. Nisso identificamos duas metafísicas em que só uma delas o homem se realiza. O humano é um ser, portanto, seu negativo é o não-ser. É nesse sentido que: “Existe uma zona do não ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma encosta perfeitamente nua, de onde pode brotar uma aparição autêntica. Na maior parte dos casos, o negro não goza da regalia de empreender essa descida ao verdadeiro inferno” (Idem.). Na mesma direção de Dante Alighieri (4), Fanon quer realizar essa descida pois é onde será possível encontrar a infraestrutura desse edifício em que estará o nível mais profundo da existência humana. Ele não afirma meramente que o negro é inferior ao branco ou que o negro é refém do branco; mas que o negro não é, e está refém de si mesmo. É interessante ressaltar que esse talvez seja o elemento mais fundamental do qual se desdobram as noções psiquiátricas do martinicano. O não ser é a reificação que destitui do outro a possibilidade de ser sujeito. A subjetividade negra é informada pelos termos desse ser, que é o colonizador. Essa relação se torna mais explícita quando compreendemos a apropriação fanoniana da dialética do senhor e do escravo de Hegel. Na Fenomenologia do Espírito, o autor alemão argumenta que a alteridade só se realiza porque, ainda que o escravo esteja subordinado ao senhor, esse último só possui sua legitimidade nessa relação devido ao reconhecimento que o escravo lhe confere enquanto tal. Em Fanon, nessa dialética – que evidentemente, aqui é racializada – não há alteridade, porque nessa relação só há um ser, e não é possível a um não ser conferir legitimidade ao que quer que seja. É essa a chave para entender a alienação para Fanon. Ela se dá por meio das realidades econômicas e sociais – ou epidérmicas – e o complexo de inferioridade conformado se desdobra a partir disso. De modo provocador, ele a situa da seguinte forma: “Há no homem de cor uma tentativa de fugir da sua individualidade, de anular a sua presença. Sempre que um homem de cor protesta, existe alienação. Sempre que um homem de cor rejeita, existe alienação” (Fanon, 2020b, l.52). Posto nesses termos: “Somente haverá desalienação genuína na medida em que as coisas no sentido mais materialista possível, tiverem voltado ao seu lugar” (Fanon, 2020b, l.16). Em outras palavras, com a desalienação, a consciência de si está aberta à alteridade. Finda toda e qualquer categoria de informação da subjetividade que tenha sido criada nos termos do senhor. Abole qualquer tipo de reificação. Aniquila-se o branco, e para isso, o negro também. Aniquila-se o opressor e, para isso, o oprimido também. A negação abre espaço para a superação dos termos que se excluem e, com isso, o vislumbre efetivo do nascimento positivo do homem e de sua história. É isso que está em jogo quando falamos de um novo humanismo.
Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia (5)
Corolário a esse entendimento que dá forma à alienação, se faz necessário, portanto, uma revisão de modo a compreender as determinações subjetivas e objetivas para se vislumbrar as patologias. Isso dizia respeito a tomar o indivíduo em sua relação com a sociedade, e qualificá-la. Dado o contexto do debate à época, haviam duas tendências a respeito da tese do desenvolvimento humano: a que tomava como determinante o fator individual – ontogenia –, e a noção constitucionalizante que privilegiava o desenvolvimento evolutivo da espécie – a filogenia. Freud chamou atenção para a importância da ontogenia em reação à tendência constitucionalizante de sua época, como forma de levar em conta o fator individual, contrapondo com a tese filogenética (6). Disso, Fanon afirma que a alienação do negro não é individual, portanto, não é ontogenética, e tampouco seria filogenética, pois não pode ser imune à influência humana, mas sim a partir da sociogenia.
Nesse sentido, afirmar o princípio sociogênico é propor uma outra perspectiva à alienação que se afaste do entendimento ontologicamente dado, em detrimento de abranger as subjetividades e os processos de identificação e cultura; sua consequência é, sobretudo, tomar a colonização enquanto um fenômeno histórico-social, que está na base da formação da subjetividade.
Por isso é preciso colocar no mesmo plano o DDT que destróis os parasitas, vetores de doenças, e a religião cristã que combate no nascedouro as heresias, os instintos, o mal. (…) Mas os comunicados triunfantes das missões informam, na realidade, a importância dos fermentos de alienação introduzidos no seio do povo colonizado. (FANON, 2022, p.38)
Nesta passagem de Os Condenados da Terra, que trata sobre como a alienação, no que se refere ao contato da colonização com os costumes do colonizado, se desenvolve e desemboca na desumanização desses (não) sujeitos, Fanon aborda sob um plano que é propriamente dialético o cerne das questões enfrentadas pelos colonizados, e compreende de forma complexa e interconectada as dimensões psíquicas dos indivíduos, como a identidade, com o nível social, histórico e cultural. Isso demonstra como a sociogenia se insere num contexto em que se eleva a uma dimensão muito mais complexa – e nada dicotômica – a tensão da relação entre colonizado e colonizador.
Outro importante ponto que será decisivo nessa virada que Fanon faz em relação à Freud, e que é fundamental para seu desenvolvimento teórico, é o modo pelo qual problematizará o Complexo de Édipo. Na esteira do entendimento sociogênico, a dinâmica social será decisiva também ao modo de se compreender o mito de fundação; contextos africanos, por exemplo, são majoritariamente matrifocais. Dessa forma, a configuração do florescimento de síndromes e distúrbios estruturais na Europa se distinguirão de outros contextos culturais como em África ou América. Na seção em que trataremos sobre a relação de Fanon com a psicanálise, desdobraremos mais essa ideia.
Dessa forma, começamos a vislumbrar a ponte que conecta a crítica clínica à crítica política em Fanon. Se por um lado, temos uma negação ontológica do ser negro através do gerenciamento de sofrimento psíquico próprio ao colonialismo (7), produtor de traumas e patologias psíquicas, que perpetuam sua subjugação, por outro, um entendimento da cura enquanto o elemento capaz de pôr fim a esses dois âmbitos de forma dialética. Não se trata meramente da justaposição de dois âmbitos opostos – o psíquico e o social –, mas sobretudo de compreendê-los enquanto diferentes momentos de um mesmo princípio opressor. A cura emerge como um resultado de se pensar dialeticamente os embates entre a política e psiquiatria, o social e o subjetivo, o inconsciente e a história.
O polimorfismo inerente à ciência neurospiquiátrica (8)
Em sua tese de exercício que busca desdobrar algumas descrições de Nikolaus Friedreich (9), Fanon vê um campo fértil e oportuno para se pensar as fronteiras entre o psiquiátrico e o neurológico. Isso decorre, em primeiro lugar, do modo como Pierre Mollaret, neurologista francês, se voltou à doença de Friedreich, por meio da qual Fanon ressalta a noção de patologia geral. Isso significava pensar as afecções nervosas familiares a partir da formação de uma cadeia contínua (10), ou seja, compreender essas afecções nervosas não mais de modo isolado, mas a partir de uma familiaridade, enquanto participante de um mesmo processo de desenvolvimento no que se denomina então, patologia geral. “Insistimos nessa questão geral porque nos pareceu, após cuidadoso exame, que sintoma neurológico e sintoma psiquiátrico, no grupo descrito por Mollaret, obedecem a um polimorfismo absoluto” (FANON, 2020a, p. 301). Essa noção de polimorfismo absoluto será decisiva para o desenvolvimento da tese de Fanon, porque será por meio dela que será possível expor o fosso entre o neurológico e o psiquiátrico, indispensável para o desenvolvimento da socioterapia (ibid.). Ainda no preâmbulo da tese, Fanon resume de forma bastante clara o problema entre essa relação:
Nesse caso, portanto, deve ser considerado o problema das relações entre o distúrbio neurológico e o distúrbio psiquiátrico. Numa época em que neurologistas e psiquiatras se esforçam para delimitar uma ciência pura, isto é, uma neurologia pura e uma psiquiatria pura, seria válido introduzir no debate um grupo de doenças neurológicas que são acompanhadas de distúrbios psíquicos e levantar a questão legítima a respeito da essência desses distúrbios” (Ibid.).
Trata-se, portanto, de reposicionar o discurso acerca das patologias de um modo que seja possível entrever a análise de patologias extrapolando os limites concernentes à essa delimitação, circunscrevendo a ótica clínica cada vez mais a partir do tempo e do espaço em que se dá (ibid., p 313). Isso significa, por um lado, encarar o dualismo cartesiano de frente e assumir toda afecção a partir de sua unidade indissolúvel em sua vertente física e mental, e por outro, encarar o modo mecanicista de se enxergar o humano, tomando-o enquanto agente ativo.
Com o ser humano, o fato perde sua estabilidade. Já não se trata de apenas um, mas de um mosaico de fatos. A pessoa sempre existe em via de… Ela está aqui, com outras pessoas, e, nesse sentido, a alteridade é a perspectiva reiterada de sua ação. O que equivale dizer que o ser humano, como objeto de estudo, exige uma investigação multidimensional (ibid., p. 317).
É isso que tornará possível a compreensão do sofrimento psíquico nos contextos não europeus, e consequentemente, o que estreitará a relação de Fanon com a psicanálise, a qual ele justamente atribui à conquista de tomar o humano enquanto multidimensional. A influência da psicanálise que é bastante evidente em Pele Negra, Máscaras Brancas, revela seu gérmen em sua tese de doutorado. Além do mencionado, Fanon se apropria da psicanálise pelo fato de apresentar-se “como a ciência do coletivo por excelência” (ibid.) Ou seja, além de tomar o homem em suas múltiplas dimensões, o toma a partir do encontro com o outro. A consequência disso é que a integração do indivíduo ao socius é diretamente proporcional à sua saúde psíquica. “Em última instância, um louco é uma pessoa que não encontra mais seu lugar entre as pessoas, seja porque se sente superior a elas, seja porque se sente indigna de entrar na categoria do humano. Em todo caso, ela se sente diferente delas” (11) (ibid., p.324).
Em linhas gerais, nessa querela entre os limites do distúrbio neurológico e o distúrbio psiquiátrico, que envolve, no texto de Fanon, um apanhado entre os vários filósofos, psiquiatras e neurologistas, emerge ainda o modo de se compreender a relação de causalidade entre os distúrbios psicológicos e o esquema corporal. Dessa forma, Fanon se posiciona, ainda que não integralmente, ao lado do neurologista francês Henry Ey, para o qual “por mais que o distúrbio mental possa envolver o distúrbio neurológico, o distúrbio neurológico não é capaz de envolver o distúrbio mental” (FANON, 2020a, p. 368, n. 120). Ou seja, isso significava primar uma compreensão psicogênica dos distúrbios mentais em detrimento de uma organogênica, isto é, se afastar de uma noção meramente biologicista sob a égide de um materialismo mecanicista, no que se refere ao desenvolvimento dos processos mentais. Trata-se de inscrever o patológico no cerne do psíquico, algo propriamente lacaniano. E é justamente por esta razão que Fanon vai dedicar a última sessão de sua tese à “posição de Jacques Lacan” (FANON, 2020a, p.369). É válido ressaltar que essa chave pela qual, nesse texto, Fanon se debruça em Lacan não é contingente, mas central para o seu entendimento da relação entre alienação e liberdade, isso porque com a compreensão psicogênica, sendo a loucura uma patologia da liberdade, então decorrerá que a alienação está no coração da essência humana (FANON, 2020a, p.370, n.123).
Uma defesa obstinada dos direitos nobiliárquicos da loucura (12)
Como argumenta Sinan Richards, a crença ontológica lacaniana de que a loucura reside na razão foi fundamental para o desenvolvimento inicial de Fanon. Influência que se deu principalmente por palestras que Merleau-Ponty deu em Paris e Lyon, como apontado por Jean Khalfa. Analisar com mais cuidado a relação entre Fanon e Lacan pode ser bastante elucidativo para as teorias de ambos. Em última instância, nos deparamos com uma correspondência recíproca, que insere Fanon no centro de toda a discussão psiquiátrica francesa do século passado, não apenas como alguém que acompanhou os debates e foi influenciado, mas que possuía presença ativa.
Em relação a isso, argumento, de modo sugestivo, que Fanon também teve significativa influência em Lacan; argumento que o pressuposto lacaniano do Sintoma, a respeito do poder imoral do colonizador na linguagem, emerge de um argumento análogo de Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas, evidenciando as correspondências recíprocas entre essas duas figuras da filosofia do século XX. (RICHARDS, Sinan. 2020., p. 215. Tradução livre.)
Apesar de esta hipótese ainda não ter muita circulação, de todo modo é perigoso colocar Fanon enquanto mero aprendiz lacaniano.
O fato é que não se pode negligenciar a atenção que Fanon dirige a Lacan e dele se aproxima em sua tese de doutorado, e além disso, como em Pele Negra, Máscaras Brancas, essa relação emerge. Na esteira de Sinan Richards, assinalo duas dessas principais marcas lacanianas fundamentais no texto fanoniano, que em certo sentido, são complementares: as críticas à psicanálise ocidental, e propriamente, a compreensão da loucura.
O que tanto Fanon e Lacan se propõem a fazer, sobretudo em seus desenvolvimentos iniciais, é uma iconoclastia do discurso psiquiátrico. Para isso, foi necessário um afastamento do paradigma freudiano de compreensão da psicanálise e seus pressupostos, muito imbuída de um recorte que privilegia apenas uma noção ocidental sobre a humanidade e que deixa escapar as diferenças culturais na análise dos sofrimentos psíquicos. Lacan afirma em Outros Escritos que o homem Ocidental não tem condições de tomar a si fora de seu eurocentrismo, o que significou para a psicanálise tradicional uma contradição que, pretendendo ser universal, não conseguia enxergar sua limitação fundacional. É interessante notar como Fanon mobiliza essa contradição: se distanciava da psicanálise tradicional ao passo que se munia dela para isso. Como resultado, o que teremos em ambos é o divórcio quanto a noção freudiana acerca do Complexo de Édipo, que sendo corolário desse discurso tradicional da psicanálise e estando presente em seu pressuposto, tornaria impossível pensar a sociogenia, no caso de Fanon, se não fosse revisto. Acrescentando o supracitado no início, a rejeição de Fanon à estrutura edípica freudiana fica bem assinalada ao afirmar que “Queira-se ou não, o complexo de Édipo está longe de ser uma realidade entre os negros” (Fanon, 2020b, l. 123). Isso evidencia-se nesta passagem de Pele Negra, Máscaras Brancas em que Lacan é citado diretamente: “A psicanálise, nunca é demais enfatizar, busca compreender determinados comportamentos – no interior do grupo específico que a família representa. (…) Em todos os casos, a família deve ser considerada ‘um objeto e uma circunstâncias psíquicos (13)’” (ibid., l. 114).
Desdobrando esta noção de que primeiro é necessário se revisar os paradigmas tradicionais da psicanálise para tornar possível vislumbrá-la em outros contextos, surge outro problema sobre como compreender a normalidade e a loucura nessas outras experiências. Para ser mais claro, trata-se de como pensar o negro e a psicopatologia (14).
“Uma criança normal, que tenha nascido em uma família normal, será uma pessoa normal.
(…) Porém, e este é um ponto muito importante, vemos o oposto no caso do homem de cor. Uma criança negra normal, tendo crescido em uma família normal, passará a ser anormal ao menor contato com o mundo branco” (ibid., l.114-15)
Nesta passagem fica claro o porquê é impossível uma simples transposição do discurso psiquiátrico tradicional a outros contextos. O negro precisa ser tomado em sua subjetividade e a partir do modo como existe em sua relação com o outro. É nesse sentido que afirma que essa subjetividade é necessariamente psicótica pois inserida numa objetividade alienante. Desta forma, o que está em jogo é a reformulação do dualismo racista para que seja possível vislumbrar o fim da alienação.
Outro fator importante que fora determinante para a teoria fanoniana, e que parece estar em seu pano de fundo, é a teoria lacaniana da linguagem. Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, afirma que se apropriar de uma linguagem é suportar o peso de uma civilização, o que representa uma apropriação direta do Simbólico lacaniano. Com isso, para além de entender o sujeito a partir de sua relação com o outro, trata-se aqui de compreender a inscrição desse sujeito no mundo por meio da linguagem; em outras palavras, a imposição da linguagem colonial faz com que o sujeito negro seja “artificialmente coagido, metafisicamente atrofiado, e privado de uma consciência profunda de seu ser” (RICHARDS, Sinan. 2020, p.228. Tradução livre.). É o que está implícito na impossibilidade da verdadeira descida aos infernos mencionada por Fanon, a complexidade metafísica de existir enquanto humano em todas a suas dimensões. O grande Outro é capturado pela colonização, sendo a linguagem, numa relação com ele, uma rota pela qual os sujeitos negros são aprisionados (ibid.). Eis então o raio-x da colonização e a descrição de seu maquinário da violência.
Contudo, é válido ressaltar mais uma vez que o ponto de vista que buscamos defender aqui no que se refere a isso, é posicionar Fanon a partir de uma relação de diálogo com os autores franceses, sobretudo com Lacan por meio da hipótese de reciprocidade entre eles que endossamos, o que significa entender os afastamentos existentes, como o fato de que Lacan não tenha discutido explicitamente sobre raça e tampouco abandonado totalmente o complexo de Édipo. De toda forma, a relação de Fanon com a psicanálise é absolutamente incontornável: “De fato, acreditamos que apenas uma interpretação psicanalítica da questão negra pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pelo edifício complexual” (Fanon, 2020b, l. 16). Explorar o diálogo com Lacan é essencial nessa compreensão, e de maneira especial, o modo como Fanon chega ao Brasil, pois é justamente essa a chave, de levar à cabo ambos os autores, que Lélia Gonzalez se propõe a pensar o país e suas complexidades raciais.
O lógico da loucura (15)
Henry Ey assinala uma importante observação da qual Fanon se valerá. Durante o período em que estudou com Lacan, afirma que dentro da aventura metafísica na qual se alçou, encontrou “por trás de Heidegger e Husserl, Hegel, e, para além de Hegel, a lógica da loucura” (16). É a partir dessa lógica da loucura que, como adiantado anteriormente, a compreensão fanoniana se fundamenta, isto é, na noção da anexação da loucura pela razão, em oposição ao entendimento que a tomava por exterior ao pensamento.
Logo no início da sessão sobre a posição de Lacan, Fanon retoma uma citação de A causalidade essencial da loucura (17), que contém elementos, num certo sentido, até contraditórios, mas que nos ajudam a pensar sobre o modo no qual entendeu a loucura: “Assim, longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência. Longe de ser para a liberdade ‘um insulto’, ela é sua mais fiel companheira e acompanha seu movimento como uma sombra” (LACAN apud FANON, 2020a, p.369). Dizemos contraditório porque Fanon se vale dessa passagem para desdobrar algo que o distancia de seu autor. Bem sabemos que Lacan faz “uma defesa obstinada dos direitos nobiliárquicos da loucura” (ibid. p.371), porém há uma diferença em relação a isso tomá-la enquanto clamor pela liberdade. Não é que a loucura seja ela mesma libertadora, mas contém em si, dialeticamente, o resquício, o gérmen, de sua superação. Ou para nos valermos de sua citação, acompanha fielmente o movimento da liberdade como uma sombra. O sofrimento reside no movimento inconformado do não ser em se tornar humano, por isso a loucura é um clamor pela liberdade.
Ao referir-se a Nietzsche no prólogo de sua tese, Fanon está sintetizando todas as contingências que formaram e culminaram seu modo específico, e vale ressaltar, revolucionário de olhar para a loucura. “A objetividade científica estava proibida para mim, pois o alienado, o neurótico, era meu irmão, minha irmã, era meu pai” (Fanon, 2020b, l..173). É realização dos movimentos objetivos e subjetivos da realidade que torna possível entrever e encarar o inconsciente na História. Decorre daí a a reciprocidade entre os manicômios e as estruturas dos países nos quais estão inseridos. Aquele é corolário deste. Apesar de se ocupar em uma análise lapidar sobre os hospitais psiquiátricos em Reflexões sobre a clínica psiquiátrica (18) (FANON, 2020a, p. 61), Fanon lembrou-nos que seu problema fundamental não está em seu interior, mas na sociedade que o cria e o impõe. Dessa forma, além de elevar a loucura a um outro nível de compreensão, acrescenta elementos indispensáveis para uma perspectiva de luta antimanicomial que incorpora em seu cerne a questão racial. Algo caro, especificamente, se nos referirmos ao Brasil, país que testemunhou da pior maneira as últimas consequências que um manicômio pode chegar: um holocausto (19).
Se os sofrimentos psíquicos são entendidos enquanto estruturados na infraestrutura do sistema econômico, a superação daquele demanda necessariamente a superação deste. Portanto, o único vislumbre efetivo para a cura, é a revolução.
Notas:
(1) FANON, 2020a, p. 297. Este trecho faz parte da dedicatória de Fanon de sua tese.
(2) Ibid., p. 298. Como sublinha Jean Khalfa em nota da edição publicada pela editora Ubu em 2020, Fanon atribui essa citação à Assim falou Zaratustra, mas na verdade pertence à um manuscrito de 1884.
(3) Ibid., p.299
(4) GORDON, Lewis R. What Fanon Said: A Philosophical Introduction to His Life and Thought. Fordham University Press Publication, 2015.
(5) (Fanon, 2020b, l.14)
(6) “É semelhante a relação entre ontogênese e filogênese. A primeira pode ser vista como repetição da segunda, na medida em que esta não seja modificada por uma vivência mais recente. A disposição filogenética se faz notar por trás do evento ontogenético. No fundo porém, a disposição é justamente o precipitado de uma vivência mais antiga da espécie, vivência à qual vem se acrescentar como soma dos fatores acidentais, a mais nova vivência do indivíduo” (FREUD, 2016, p.15), presente no prefácio à terceira edição. Em outras palavras, Freud ao propor a substituição da filogenia pela ontogenia, visava primar a independência do indivíduo em detrimento do determinismo filogenético da espécie.
(7) Aqui, nos referimos ao racismo, colonialismo, neocolonialismo e capitalismo enquanto sinônimos, sendo privilegiado a utilização de um termo ou de um outro simplesmente para realçar certos elementos mobilizados pelo arcabouço conceitual de cada um. Sobre isso ver: HUDIS, Peter. Racism and the Logic of Capital: A Fanonian Reconsideration.
(8) “Seu sentido profundo de humanidade me permitiu compreender melhor O polimorfismo inerente à ciência neurospiquiátrica” (FANON, 2020a, p. 297). Essa citação refere-se a dedicatória de Fanon ao professor Jean Dechaume, presidente da banca na arguição de seu doutorado na Universidade de Lyon.
(9) Neurologista do qual surge o epônimo que intitula a tese de Fanon: “Um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão”.
(10) MOLLARET, Pierre. La Maladie de Friedreich: Étude physio-clinique. Tese. Paris, 1929, p.265.
(11) Grifos do autor.
(12) “Pessoalmente, se tivéssemos que definir a posição de Lacan, diríamos que consiste numa defesa obstinada dos direito nobiliárquicos da loucura” (FANON, 2020, p.371)
(13) J. Lacan, “Le complexe, facteur concret de la psychologie familiale”, Encyclopédie française, 8-40-45.
(14) Faço referência ao capítulo 6 de Pele Negra, Máscaras Brancas, em que de maneira extraordinária desdobra a psicanálise tomando o negro como referência.
(15) “Poderíamos dizer, parodiando a expressão, que entre os psiquiatras existem os partidários e os adversários de Lacan. Seria ainda necessário acrescentar que os adversários são, de longe, os mais numerosos… O que não parece incomodar em nada o ‘lógico da loucura’” (FANON, 2020a, p.370)
(16) L. Bonnafé et al., Le Problème de la psychogenèse des névrose er des psychoses, p.55. Trecho citado na nota 124 de Alienação e Liberdade por Jean Khalfa.
(17) No Brasil, esse texto está presente na edição de Escritos.
(18) Esse texto está publicado no Brasil como o primeiro capítulo de Alienação e Liberdade, reunido com os outros escritos psiquiátricos de Fanon dos quais também sua tese faz parte.
(19) Sobre isso ver: ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013. Dentre outras coisas, o livro também revela como a estrutura e o discurso manicomial pôde ser mobilizado como meio de se operar a lógica do sistema.
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1 comentário em “A prática psiquiátrica a partir de comunidades marginalizadas: uma abordagem fanoniana”
Incrível, parabéns pelo trabalho!!!