A revolução científica de Judith Butler: fundamentos para um Marxismo Transexual

Por Rosa Lee, via Transgender Marxism, traduzido por Bérnie Dias

Este texto traz para o campo do Marxismo uma briga que muitos marxistas se recusam a comprar. Essa briga, como estou chamando, é a validação de linhas teóricas advindas do pós-estruturalismo. Apesar de não ser perfeito, esse texto traz à tona a primeira dessas brigas que tentam ocultar: a importância do pensamento de Judith Butler para os Estudos de Gênero. 

A Revolução Científica de Judith Butler: Fundamentos para um Marxismo Transexual

Sub-intitulei minha parte [do livro Marxismo Transgênero] de “Fundamentos para um Marxismo Transexual”, uma escolha de palavras que sei que pode causar agitação para muitos leitores que abriram esta coleção. Muitos veem “transexual” como um termo que é melhor deixar no século XX (um ponto de vista ao qual voltarei). E muitos marxistas veem o marxismo como uma ciência universalmente aplicável, que deve ser mantida livre da contaminação da “política de identidade”. Mas quero voltar a esse termo, agora fora de moda, porque acho que acrescentar “transexual” ao “marxismo” nos permite pensar o marxismo de maneira diferente, reorientar o marxismo de uma forma que o “transgênero”, como um guarda-chuva muito mais amplo, não permite com tanta precisão. O Marxismo Transexual não implica simplesmente “pessoas trans fazendo marxismo” ou “análise marxista da vida das pessoas trans”. Em vez disso, o “Marxismo Transexual” sugere um marxismo transformado, um marxismo que foi de alguma forma transexualizado. Um marxismo que passou ou está embarcando em um processo de transição, se preferir. 

Em suma, minha sugestão é que, se o feminismo marxista é uma análise marxista refratada através da análise de gênero, o Marxismo Transexual é uma análise marxista, mas refratada através da análise da transição de gênero e sexo.

Para empreender essa transformação, para tornar o marxismo como um campo da teoria científica adequado à prática da luta de classes, devemos transexualizar nosso marxismo, tornando-o metodologicamente responsável pela luta trans e pela experiência da transição de gênero/sexo. E para preencher a lacuna, por assim dizer, entre a transição de gênero/sexo e a transição para o comunismo, teremos que começar nosso estudo científico com a mudança de paradigma na análise feminista inaugurada pela teoria da performatividade de gênero de Judith Butler. 

O termo “mudança de paradigma”, embora hoje em dia seja invocado de forma bastante coloquial, foi introduzido pela primeira vez como um termo técnico pelo historiador da ciência Thomas Kuhn em seu livro, de 1962, The Structure of Scientific Revolutions [A Estrutura das Revoluções Científicas]. De acordo com Kuhn, a atividade cotidiana da pesquisa científica é sempre estruturada por um paradigma institucional e metodológico mais amplo e compartilhado. Quando o estudo científico simplesmente testa e explora esse paradigma, ele é chamado de “ciência normal”. No entanto, de vez em quando, as circunstâncias fazem com que essa ciência normal empurre as bordas do paradigma, para romper as suposições tácitas de que o modelo depende para coerência teórica e prática. Nesse relato, uma mudança de paradigma, ou revolução científica, pode ocorrer quando um novo paradigma é gerado, o que pode explicar melhor os resultados anômalos gerados pela prática da ciência normal. 

Então, o que é um paradigma científico? Donna Haraway, em seu livro de 1976 Crystals, Fabrics, and Fields, argumenta que a característica central de um paradigma é a confiança em uma metáfora compartilhada. De acordo com Haraway, o que ela chama de “paradigma como matriz disciplinar” envolve “generalizações simbólicas compartilhadas que dão pontos de ligação para (…) técnicas lógicas e matemáticas”, “crença compartilhada na adequação de modelos específicos” e “exemplares compartilhados ou soluções típicas concretas”. Nesse sentido, podemos falar sobre a revolução copernicana como a mudança da metáfora de um modelo geocêntrico do sistema solar para um heliocêntrico, abrindo novas possibilidades do estudo científico dos céus. Da mesma forma, podemos falar sobre o marxismo como um paradigma científico estruturado pelo modo de produção como uma metáfora central, com base na qual toda uma série de análises e investigações são pensadas. São essas análises e investigações que são frequentemente referidas como o campo do materialismo histórico. 

Agora, o que quero argumentar é que, com seu livro de 1990, Problemas de Gênero, Judith Butler inaugurou, ou pelo menos consolidou e propôs, uma mudança de paradigma científico na análise de gênero, uma mudança análoga às mudanças inauguradas por Copérnico e Marx. Isso se abrirá para explorar os limites da formulação de Butler e as maneiras pelas quais ela ainda pode ser útil para o projeto de um Marxismo Transexual.

Quando Butler escreveu Problemas de Gênero, eles estavam principalmente confrontando o que poderíamos chamar de paradigma feminista radical. Este é um paradigma que, hoje, está vivo e bem – não apenas nas formas de feminismo radical contemporâneo que existem em grande parte como base teórica para a prática política anti-trans (ou seja, terfismo), mas também no mainstream do feminismo liberal contemporâneo. Esse paradigma, que hoje poderíamos chamar de “feminismo como política de identidade”, é o que Butler chama de “construção da categoria das mulheres como sujeito coerente e estável”. Este “sujeito coerente e estável” forma a base teórica para um amplo conjunto de práticas políticas – sejam elas a “conscientização” feminista da década de 70, o apoio a políticas femininas convocadas pelo feminismo liberal contemporâneo ou os ataques a mulheres trans engajadas por TERFs contemporâneos. 

A intervenção central de Butler é a consolidação de uma reconceituação do gênero longe desse “sujeito coerente e estável”, com base no que elu chama de “metafísica da substância”. Em sua análise, a visão feminista radical da feminilidade segue de uma metáfora ontológica na qual o gênero é tomado como algo que simplesmente se é. Butler procura substituir essa visão por uma que trate o gênero não como uma substância monolítica, mas como algo processual e relacional, como o que eles chamam de “temporalidade social constituída”. Em vez de descrever o gênero através da metáfora do ser, eles sugerem que ele seja entendido através da metáfora da performatividade linguística, o que eles chamam de “repetição estilizada de atos”, que, ao citar uma identidade supostamente autoritária, na verdade, passa a constituir essa identidade como tal.

O gênero se apresenta como óbvio, inevitável. O argumento de Butler é que, para criticar essa noção, é preciso perceber que é exatamente esse conceito que deixa o gênero constantemente contestado, em constante mudança. 

Cinzia Arruzza argumentou, de forma bastante persuasiva, pelas ressonâncias marxistas desse enquadramento de gênero como “temporalidade social constituída”. Como ela aponta, essa formulação descreve perfeitamente a análise de Marx do capital como algo sempre em movimento e sempre contingente, que vem a aparecer como seu próprio sujeito substantivo, original e autoritário. Como Arruzza cita Marx:

O capital, como valor de autovalorização, não compreende apenas as relações de classe, um caráter social definido que depende da existência do trabalho como trabalho assalariado. É um movimento, um processo circulatório através de diferentes etapas, que por sua vez inclui três formas diferentes do processo circulatório. Portanto, só pode ser entendido como um movimento, e não como uma coisa estática.

Em outras palavras, o que os regimes de gênero compartilham com o capitalismo é que eles são naturalizados: os regimes de gênero aparecem como “sempre assim”, da mesma forma que a especificidade do capitalismo como sistema é obscurecida por histórias que anacronicamente estendem práticas e instituições distintamente modernas ao passado pré-capitalista. De fato, Butler aponta para essa analogia, escrevendo que compartilha com Marx o objetivo de expor “os atos contingentes que criam a aparência de necessidade natural”. 

Pode-se notar que Butler não foi a primeira pessoa a falar sobre gênero sendo construído. De fato, elu cita a bastante famosa afirmação de Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher, torna-se”. No entanto, ao passar da metafísica da substância para a temporalidade social constituída, Butler vai além de simplesmente afirmar que o gênero é socialmente construído. Para muitos de seus contemporâneos, seguindo a afirmação de Beauvoir, o sexo biológico foi considerado a matéria-prima que a sociedade moldou em gênero; assim, as mulheres não nasceram mulheres, mas foram transformadas nelas. Para Butler, no entanto, isso era insuficiente. Seu argumento, em Problemas de Gênero e especialmente em seu seguimento Corpos que Importam, era precisamente que a assunção do corpo sexuado como substrato material imutável limitava a análise da construção de gênero ao restabelecer uma metafísica da substância. Assim, Butler escreve: 

O gênero não deve ser concebido meramente como a inscrição cultural de significado em um sexo pré-determinado (uma concepção jurídica); o gênero também deve designar o próprio aparelho de produção pelo qual os próprios sexos são estabelecidos. Como resultado, o gênero não está apenas para a cultura como o sexo está para a natureza. O gênero também é o meio discursivo/cultural pelo qual a “natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, antes da cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age.

E é por isso que, para um projeto de um Marxismo Transexual, Butler é tão central. Porque é sua a afirmação materialista de que não apenas o gênero, mas o próprio corpo sexuado é social e não natural, que gênero e sexo, como temporalidade social constituída, não são permanentes, mas mutáveis, mutáveis e impermanentes. Isso abre a possibilidade de pensarmos seriamente na transição de gênero e sexo em um nível pessoal – e na possibilidade de transição coletiva para o comunismo como um processo de desfazer, refazer ou mesmo abolir substancialmente o gênero. 

Agora, um dos principais obstáculos para a adoção desse novo paradigma pelos marxistas foi que ele coincidiu com um período de recuo da ciência na teoria crítica. Outros, particularmente Rosemary Hennessy, escreveram de forma eloquente e incisiva sobre o recuo do imaginário político radical dos anos 1960, que coincidiu com a ofensiva neoliberal da classe dominante  dos anos 80 e 90. Como Hennessy argumenta, esse foi um contexto fácil para Butler se envolver seletivamente com o materialismo histórico, extraindo uma visão saborosa de Marx, sem envolvimento total ou extensão do materialismo histórico em geral. Esta era viu a desradicalização da teoria marxista, feminista e antirracista que havia sido forjada no calor de um ciclo anterior de luta. A “crítica” tornou-se cada vez mais academizada e distanciada da luta da classe trabalhadora. De sua própria maneira, Butler procurou resistir a essas circunstâncias. Mas seu trabalho não foi capaz, na época, de escapar de seu contexto. 

E assim, o avanço científico de Butler coincidiu com o que é frequentemente chamado de “virada linguística” – a ontologização da linguagem e a evacuação de outras considerações da análise social. Esse momento definiu seu próprio trabalho, bem como em sua recepção. De fato, parte do que isso significava era que a performatividade linguística no trabalho de Butler não era entendida simplesmente como uma metáfora, mas como uma descrição direta. O processo de gendering [generificação] que Butler descreveu foi entendido como um processo linguístico. Na pior das hipóteses, essa trajetória reduziu o gênero a um processo de pura significação no qual as questões de divisão do trabalho, reprodução social e dominação e luta de classes foram obscurecidas. Isso não era simplesmente um mal-entendido do próprio trabalho de Butler por outros, embora certamente isso estivesse muito em jogo. Na contra mão, a própria Butler chega a afirmar em Problemas de Gênero que “as estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo do poder”. Em grande parte, essa virada em Butler é legitimada por uma leitura errônea caracteristicamente anglófona de Foucault. Isso desfigura Foucault (especialmente dessecado em termos de sua política de classe) contrastando flagrantemente com os relatos mais recentes oferecidos por teóricos marxistas queer, como Chris Chitty

No entanto, minha alegação é que, lembrando o caráter metafórico de qualquer modelo científico, podemos extrair os insights [clarões] da teoria da performatividade enquanto a colocamos em conversa com nossas outras metáforas marxistas. E a performatividade é especialmente útil para aquelas teorias que animaram os avanços empolgantes do feminismo marxista nos últimos anos, tanto as análises contemporâneas do terreno da reprodução social quanto da separação estrutural das esferas, conforme apresentadas por Maya Gonzalez e Jeanne Neton em The Logic of Gender

Para retornar ao nosso ponto de partida, então, voltemos à questão do Marxismo Transexual. Agora, como apontei, o termo “transexual” aqui parece um pouco arcaico; hoje em dia, “transgênero”, ou simplesmente “trans”, com ou sem asterisco, tornou-se muito mais popular. No entanto, acho o termo útil porque acho que nomeia algo específico, algo crucial, que muitas vezes se perde no uso desses termos. De um modo geral, “transgênero” e “trans” circulam como termos abrangentes, indicando algum tipo de desvio, na apresentação, estilo de vida ou identidade pessoal, das pessoas do sexo que foram atribuídas normativamente no nascimento. No entanto, ao evocar um enquadramento anterior, medicalizado e às vezes patologizado, o “transexual”, por outro lado, destaca a centralidade para muitas pessoas trans de um processo de transição. 

Muitas vezes, as transições são enquadradas em termos biológicos ou médicos – reposição hormonal, cirurgias, etc. –, mas em sua transição central, nesse sentido, refere-se a um processo de refazer o eu, de autotransformação voluntária. Para as pessoas trans, a transição denota um conjunto de práticas de auto-modelamento que são cruciais para a maneira como muites de nós vivemos, práticas que ocorrem em nossas experiências como parte de um processo. Longe de ser a resolução solitária de uma patologia através do tratamento clínico, a transição como processo pode ser considerada um vislumbre do forjamento de novas formas de solidariedade que possam romper um novo modo de produção. Para esse fim, acho que a teoria de Butler, que destaca a construção e a maleabilidade do sexo, é um ponto de partida crucial para es transmarxistas. Devemos trazer à vista a natureza social e temporal não apenas do gênero, mas também do corpo sexuado. Devemos incorporar nossos entendimentos íntimos desse tipo de autotransformação, esse trabalho do eu, em nossa teoria. A teoria social não pode existir segregada das lutas práticas, círculos de afinidade e alianças improváveis em que tantas vezes confiamos. Em uma época diferente, os marxistas falavam da construção de um “novo homem socialista” como uma tarefa crucial no processo mais amplo de construção socialista. Hoje, em uma época de fascismo crescente e de um movimento socialista emergente, nosso desafio é transexualizar nosso marxismo. Devemos pensar no projeto de transição para o comunismo em nosso tempo – a comunização – como incluindo a transição para novos eus comunistas, novas maneiras de ser e de se relacionar uns com os outros.

 

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