Marx e Lacan: Quando a mais-valia encontra o mais-gozar

Por Alenka Zupancic, traduzido por João Matheus Cassarott; Daniel Alves Teixeira (membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia); e José Mauro Garboza Junior (membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia)

Esta é a tradução parcial de um texto de Alenka Zupancic chamado “Quando a mais-valia encontra o mais-gozar”. Publicamos parcialmente o texto para que os leitores possam conhecer melhor esta importante filosofa da escola lacaniana de Liubliana, que possui como outros expoentes Slavoj Zizek e Mladen Dolar. A integra da tradução será futuramente publicada através de revistas oficiais.


A teoria dos discursos (ou dos laços sociais) de Lacan é, entre outras coisas, uma monumental e, em muitos aspectos, revolucionária resposta à questão da relação entre significante e gozo. Esta pontuação já foi feita por Jacques-Alain Miller: antes de O Avesso da Psicanálise, as elaborações conceituais de Lacan foram baseadas na fundamental antinomia entre significante e gozo[1]. Esses dois termos foram radicalmente opostos (como em The Ethics of Psychoanalysis Ética do Psicanalista) ou então apresentados como dois elementos heterogêneos qualificados por uma certa homologia estrutural (como em The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis, onde Lacan afirma, a propósito da pulsão, que “algo no aparato do corpo é estruturado da mesma maneira como o inconsciente” – e nós sabemos que “o inconsciente é estruturado como linguagem”. Nós, então, temos uma analogia estrutural entre gozo e significante: os dois elementos são heterogêneos e permanecem separados, porém eles estão relacionados por essa analogia estrutural).

A teoria dos discursos é algo diferente: ela articula o gozo junto com o significante e coloca isso como um elemento essencial de qualquer discursividade. Além disso, esse reconhecimento da dimensão discursiva do gozo traz à tona a dimensão política da psicanálise: “Esses lembretes são absolutamente essenciais para serem feitos em um tempo quando, falando do outro lado da psicanálise, surge a questão sobre o lugar da psicanálise na política. A intrusão na política só pode ser feita reconhecendo que o único discurso que há, e não apenas o discurso analítico, é o discurso da jouissance, ao menos quando se espera o trabalho da verdade a partir dele.”[2]

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A questão de como o gozo se articula com o significante, e o fato de ele que faz isso, é o exato ponto onde a psicanálise intervém, “intromete-se”, no político. Lacan aponta o fato de que o gozo é (ou se tornou) um fator político, seja na forma de promessa (“faça outro esforço, trabalhe um pouco mais duro, mostre mais paciência, e você finalmente conseguirá!”), ou na forma do imperativo “Goze!” que geralmente dificulta nossa existência contemporânea de uma maneira um tanto quanto sufocante.

Mas primeiro – como Lacan, no Seminar XVII, teve êxito em relacionar conceitualmente gozo com o significante? Através da seguinte sugestão a qual ele repete, em diferentes formas, durante todo o seminário: a perda [loss] do objeto, a perda da satisfação e a emergência de uma satisfação excedente ou mais-gozar são situadas, topologicamente falando, em um único e mesmo ponto: na intervenção do significante. Lacan desenvolve isso em referência à noção que Freud introduz em seu ensaio Psicologia das Massas [Group Psychology], quer dizer, no trabalho que constitui precisamente uma tentativa inaugural da psicanálise Freudiana de pensar alguns aspectos essenciais do social (e do político). A noção em questão é a de “traço unário” (einziger Zug), com a qual Freud aponta características peculiares da identificação (simbólica). As últimas são muito diferentes da imitação imaginária de diferentes aspectos da pessoa com o qual alguém se identifica: nessa, o traço unário em si mesmo domina a inteira dimensão da identificação. Por exemplo, a pessoa com quem nos identificamos tem uma forma peculiar de pronunciar a letra r, e passamos a pronunciar da mesma maneira. Isto é tudo: não são necessárias outras tentativas de se comportar, vestir-se como essa outra pessoa, fazer o que ela faz. O próprio Freud fornece inúmeros exemplos interessantes deste tipo de identificação – por exemplo, assimilando a tosse característica de outra pessoa. Há também o famoso exemplo do internato feminino: uma das garotas recebe uma carta do seu amante secreto que a deixa chateada e a enche de ciúme, o que então assume a forma de um ataque histérico. Em seguida, várias outras garotas no colégio interno sucumbem ao mesmo ataque de histeria: elas tinham conhecimento de sua ligação secreta, invejavam dela seu amor, e queriam ser como ela. Todavia, a identificação com ela tomou esta forma extraordinária de se identificar com o traço em que emergiu, na garota em questão, no momento de crise em seu relacionamento.

Esse exemplo é na verdade ainda mais instrutivo. Ele circunscreve dois pontos essenciais que Lacan assimila em relação a essa noção Freudiana. Primeiro, apesar do traço unário poder ser absolutamente arbitrário, sua significância para o sujeito que “se apropria” como um ponto de identificação é, obviamente, nem um pouco arbitrário. A singularidade do traço deriva do fato de que ele marca a relação do sujeito com satisfação ou gozo, isto é, marca o ponto (ou o traço) da conjunção deles. Isso é um tanto aparente no exemplo do internato. Outra coisa também é óbvia nesse exemplo: o ataque histérico da primeira garota é o traço (neste caso, já um sintoma) que comemora seu caso amoroso no ponto preciso onde há um perigo iminente da garota perder o (amado) objeto; e, portanto, seu ciúme. Esse é o segundo importante ponto de ênfase que Lacan assimila de Freud, e que concerne à ligação entre perda, o traço unário, e uma satisfação suplementar. De acordo com Freud, no evento da perda do objeto o investimento é transferido para o traço unário que marca essa perda; a identificação com o traço unário ocupa então o lugar (estrutural) do objetivo perdido [lost object]. Todavia, ao mesmo tempo, essa identificação (e com ela a repetição e reencenação daquele traço) torna-se em si a fonte de uma satisfação suplementar.

Lacan transpõe isso ao seu enquadramento conceitual interpretando o traço unário como “a forma mais simples de marca, a qual, falando propriamente, é a origem do significante” (página 52 do seminário xvii). Ele liga o traço unário Freudiano ao que ele escreve como. Ainda mais, ele delineia e condensa os momentos de perda e satisfação suplementar ou gozo em um único momento, afastando-se da noção de uma perda original (de um objeto), para uma noção da perda que é mais próxima da noção de desperdício, de um excedente inútil ou restante, que é inerente e essencial à jouissance como tal. Esse pensamento de perda nos termos de “desperdício” também é o que o leva a introduzir a referência ao conceito termodinâmico de entropia, ao qual nós retornaremos abaixo. Então, jouissance é desperdício (ou perda); ela encarna a própria entropia produzida pelo funcionamento do aparato dos significantes. Não obstante, precisamente como desperdício, essa perda não é simplesmente uma lacuna, uma ausência, algo faltando [missing]. Ela absolutamente está lá (como o desperdício sempre está), algo a ser adicionado às operações e às equações significantes, para ser reconhecida como tal. NoSeminário, Lacan irá resumir esse status de gozo como perda-desperdício pela seguinte definição canônica: “a jouissance, o que não serve a nada [La jouissance, c’est ce qui ne sert a rien].”[3] Isso é precisamente o que distingue o desperdício da falta: algo está lá, porém não serve a propósito algum. O que ele faz, por outro lado, é exigir repetição, a repetição do próprio significante ao qual esse desperdício está ligado na forma de um subproduto essencial. “Jouissance é o que exige repetição”, diz Lacan, e ele continua para mostrar como é precisamente em função disso que a jouissance vai contra a vida, além do princípio do prazer, e toma a forma do que Freud chamou de pulsão de morte.

Isso é realmente uma mudança significativa na conceitualização de Lacan de jouissance. Há uma ligação imediata entre significante e jouissance: é por meio da repetição de um certo significante que nós temos acesso à jouissance, e não através de ir além do significante e do simbólico, transgredindo as leis e os limites do significante. Lacan pontua enfatizando repetidas vezes que “nós não estamos tratando com uma transgressão”. Deixe-me citar a passagem mais significativa:

[Gozo] somente entra em cena por acaso, uma contingência inicial, um acidente. O ser vivo que normalmente se vira e sai ronronando por aí com prazer. Se a jouissance não é incomum, e se isso é ratificado através da sanção do traço unário e da repetição, que portanto a institui como uma marca – se isso acontece, só pode se originar em uma variação muito menor, variação no sentido de jouissance. Essas variações, depois de tudo, nunca serão extremas, nem mesmo nas práticas que eu mencionei anteriormente [masoquismo e sadismo].

Então, o que temos aqui? Primeiro, um acidente, uma contingência inicial na qual o sujeito encontra um prazer excedente, isto é jouissance; esse encontro pode ser incomum a respeito do princípio do prazer como norma, ainda assim isso não quer dizer que de modo algum é espetacular ou colossal. Ela é incomum, desde que representa uma espécie de desvio do caminho comum do prazer em direção a jouissance, embora esse desvio ou divergência nunca seja extremo, nem mesmo no que parece ser a prática mais extravagante de jouissance. Ela está fadada à repetição do significante que a instituiu como uma marca, e nesse sentido ela sempre permanece dentro da esfera do significante. O status da jouissance (e da pulsão de morte) é então essencialmente de algo intersignificante, por assim dizer: ele toma tem lugar, ou dá corpo, a, uma lacuna ou desvio que é interno ao campo dos significantes.

Alguém poderia dizer que para o Lacan do Seminário XVII jouissance não é nada além da inadequação do significante a si mesmo, sua inabilidade de funcionar “puramente”, sem produzir um excedente inútil. Mais precisamente, essa inadequação do significante a si mesmo tem dois nomes, aparece em duas entidades diferentes, por assim dizer, as quais são precisamente os dois elementos não-significantes nos esquemas dos discursos de Lacan: o sujeito e o objeto a. Para colocar de maneira simples: o sujeito é a lacuna como magnitude negativa ou número negativo, no sentido preciso que a definição Lacaniana de significante o coloca. Ao invés de ser algo que representa um objeto para o sujeito, um significante é o que representa o sujeito para outro significante. Isso quer dizer que sujeito é a lacuna interna do significante, a qual sustenta seu movimento referencial. O objeto a, por outro lado, é um desperdício positivo que é produzido nesse movimento e que Lacan chama de mais-gozar, deixando claro que não há outro gozo além do mais-gozar, isto é que o gozo enquanto tal aparece essencialmente como entropia.

Vamos agora primeiro dar uma olhada em como tudo isso pode ser visto no funcionamento do discurso do mestre como uma forma fundamental de discursividade.

   

___________________

[1] Cf. Jacques-Alain Miller, “Paradigms of Jouissance,” Lacanian Ink 17 (2000): 10-47.

[2] Jacques Lacan, Le séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse, ed. J.-A. Miller (Paris: Seuil, 1991), 90. Citações em parentêses no texto listam o número das páginas na edição francesa.

[3] Lacan, The Seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore or On Feminine Sexuality, the Limits of Love and Knowledge, ed. J.-A. Miller, trans. B. Fink (New York: Norton, 1998), 10.

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