Por Amanda Mazza
Este artigo intenciona observar a representação da mulher pertencente à classe trabalhadora na obra “Parque Industrial”, de Patrícia Galvão, bem como a representação das violências sofridas por elas. Sendo o primeiro romance proletário brasileiro, inserido na segunda fase do Modernismo, foi adotado pela possibilidade de elucidar ou, em primeira instância, exemplificar algumas das questões de classe e gênero, postas pela autora em 1933, que chegam aos dias atuais. Para este objetivo, a análise centrou-se nas personagens femininas com base em um suporte teórico classista, feito a partir das contribuições de Karl Marx e Friedrich Engels nas questões que tangem capitalismo, ideologia e família; em Marshall Berman, Perry Anderson, Peter Burger, Georg Lukács e Antonio Cândido nos pontos que tangem modernismo e vanguarda literária; e, por fim, Wendy Goldman, Alexandra Kollontai, Clara Zetkin e Heleieth Saffioti ao tratar de gênero e classe. A análise das representações reforçou a especificidade das mulheres da classe trabalhadora – que, além da opressão na luta de classes, enfrentam uma série de assédios, violências e desumanizações na apropriação do patriarcado pelo capitalismo.
Introdução
O Modernismo, enquanto movimento artístico, tem origem em comum com várias das questões abordadas por Patrícia Galvão, sob o pseudônimo de Mara Lobo, em sua obra “Parque Industrial” – isto é, o capitalismo. É forçoso crer, portanto, que uma compreensão mais apurada do texto exigiria uma passagem – ainda que rápida, dadas as limitações estruturais do modelo deste trabalho – pelo modo de produção capitalista e suas implicações sociais. Tocando em questões fundamentais do patriarcado, e, mais especificamente, em sua apropriação pelo capitalismo para manutenção de seu modelo produtivo, fez-se necessário tangenciar também algumas das problemáticas de gênero nas quais a obra de 1933 de Pagu esbarra.
O artigo pretende construir uma análise da obra em uma perspectiva classista de gênero – indubitavelmente, a perspectiva adotada por Patrícia Galvão ao produzi-la, diga-se de passagem –, que considere as especificidades da força de trabalho feminina dentro do capitalismo e as violências às quais são sujeitas as mulheres nesse sistema. A necessidade de produzir esse tipo de trabalho é dada materialmente: o momento histórico no qual nos inserimos é ainda marcado pela luta de classes e pelas mobilizações femininas por reivindicações de direitos – um exemplo claro é o conjunto de lutas que a mídia convencionou chamar de “Primavera das Mulheres” em 2015 –, o que demanda uma compreensão de certas estruturas. Sendo a literatura uma manifestação ideológica dialética – tanto influencia quanto é influenciada pelos contextos sociais –, não é surpreendente que essa análise tenha optado por se pautar nela.
Este artigo estrutura-se da seguinte forma: na primeira parte, há uma sucinta abordagem teórica centrada primeiramente nas questões que concernem ao capitalismo e ao modernismo, posteriormente uma rápida passagem por literatura, ideologia e vanguarda e, por fim, um resumo da especificidade na mulher trabalhadora. A segunda parte aporta a observação das personagens da obra “Parque Industrial” de forma propriamente dita, seguida pela última parte, na qual são feitas as considerações finais.
1. Abordagem teórica
1.1 A luta de classes
Firmada no século XIX, a sociedade burguesa substitui as relações de produção feudais, cujo objetivo primeiro era a satisfação qualitativa das necessidades humanas, por uma modelo de produção focado em obter um valor quantitativo abstrato – deixa-se de produzir pelo “conteúdo material da riqueza” (MARX, 2013: 158), o valor de uso, que dá base material ao valor de troca da mercadoria, para buscar a obtenção do valor de troca em si.
É inerente à existência da burguesia a revolução dos instrumentos de produção, o que torna forçoso dizer que “a história do capitalismo é toda ela a história de um prodigioso desenvolvimento da produtividade por meio do desenvolvimento da tecnologia” (ALTHUSSER, 2013 apud MARX, 2013: 68). Esta revolução, no entanto, carrega uma contradição fundamental: a classe proletária, que produz e investe sua vida, é expropriada dos bens produzidos – pertencentes à classe burguesa, que não produz e detém os meios de produção. Trata-se, portanto, de um modo de produção no qual é reservado ao trabalhador somente o suficiente para existir enquanto trabalhador que reproduzirá “a classe de escravos que é a dos trabalhadores” (MARX, 2008: 28); e que, ao ser estranhado da riqueza que produz, experimenta a abstração das instâncias da vida social.
A sociedade burguesa, portanto, conserva em seu interior a “luta de classes” – que Karl Marx (2007: 38) afirma permear todas as sociedades existentes ao longo da história – atrelada a essa revolução nos meios de produção que implica no que Marshall Berman (1986 apud ANDERSON, 1986: 3) chama de modernização sócio-econômica – um montante de processos sociais, como expansão urbana ou transformações demográficas –, cuja existência criou um conjunto de ideias e concepções, visões e valores, que recebem o nome de modernismo. A mediação entre a modernização e o modernismo é realizada pela modernidade, a experiência histórica, através da intersecção entre as transformações sociais objetivas e as subjetivas que ocorrem desencadeadas pelo mercado capitalista. Dessa forma, o capitalismo remove as limitações e a imobilidade do feudalismo, porém
Como salientou Marx, este mesmo avanço do desenvolvimento econômico capitalista também gera uma sociedade brutalmente alienada e atomizada, dilacerada por uma empedernida exploração econômica e uma fria indiferença social, capaz de destruir cada valor cultural ou político cujo potencial ela mesma despertou (ANDERSON, 1986: 3).
1.2 Literatura e Ideologia
Em Marx e Engels (2016: 31), “os homens condicionados pelo modo de produção da sua vida material”, pela relação com a materialidade e o seu “desenvolvimento posterior na estrutura social e política” é que produzem suas representações e ideias. De forma que, como sintetizam os autores mais adiante, “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência.” Tal método, proposto para compreensão da realidade, é capaz de aportar teoricamente as transformações ocorridas na literatura ocidental ao longo das transformações econômicas, políticas e sociais experimentadas na transição do feudalismo para o capitalismo. Lukács (1968: 9), inclusive, estende a linha de raciocínio dos autores para as questões ligadas à literatura e arte ao apontar que, na visão deles, ‘os setores ideológicos singulares não possuem desenvolvimento autônomo, mas são consequência e manifestações do desenvolvimento das forças materiais de produção e da luta de classes.’
Em contraposição a um modelo analítico idealista precedente, que pressuponha autonomia absoluta da arte, Marx e Engels, de acordo com a interpretação de Lukács (1968: 9), partem de uma concepção dialética que culmina em interpretar a arte como “uma forma peculiar de reflexo da sociedade objetiva”, reconhecendo “a ação extraordinariamente intensa e profunda exercida pela literatura sobre a consciência dos homens”.
Através do materialismo histórico-dialético, Marx e Engels direcionam sua crítica literária para a luta contra o aburguesamento da consciência proletária de classe, entendendo que:
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante (…) As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes concebidas como ideias… (MARX & ENGELS, 2016: 67)
O modo de produção que se inaugura no capitalismo é responsável, em um primeiro momento, por promover os suportes ideológicos que acarretariam o realismo europeu e, em um segundo momento, nas chamadas vanguardas europeias, no modernismo. Para Lukács (1973), defensor do realismo crítico, os movimentos vanguardistas sintetizariam a decadência da sociedade burguesa. Sobre esse ponto, a contribuição de Peter Burger parece divergir da posição adotada pelo crítico húngaro:
Quando se toma a sério a ideia de uma relativa independência do subsistema social em relação ao desenvolvimento da sociedade na sua totalidade, não pode aceitar-se por provado que os fenômenos de crise patentes no resto da sociedade possam traduzir-se também numa crise dos subsistemas, e inversamente. (BURGER, 1993: 53)
Para Burger (1993: 57), as vanguardas têm o mérito de consolidar uma autocrítica à sociedade burguesa. Para o autor, há uma diferença fundamental na crítica imanente ao sistema e na autocrítica – conceitos trazidos também da teoria marxista – no que concerne ao âmbito artístico. A crítica imanente seria uma crítica focalizada em parte da instituição em detrimento de outra parte, ao passo que a autocrítica atingiria a instituição em sua totalidade. A importância da autocrítica artística, de se criticar a arte em sua totalidade, é por possibilitar “a compreensão objetiva de épocas anteriores ao desenvolvimento artístico”, exemplificando com o Dadaísmo, “o mais radical dos movimentos de vanguarda europeia”, que “já não critica as tendências artísticas precedentes, mas a instituição arte tal como se formou na sociedade burguesa” (Ibid: 51).
As vanguardas literárias europeias inspiraram preponderantemente o movimento modernista no Brasil, porém com um caráter diferente do que foram as outras inspirações que o país buscou na Europa ao longo de nossa literatura. Para Antonio Cândido (2006: 126), sobretudo em sua fase histórica, o Modernismo brasileiro liberta-se “de uma série de recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos triunfalmente a tona da consciência literária”, demarcando o fim da “posição de inferioridade secular com Portugal”. Uma outra questão é que:
Estímulos da vanguarda artística europeia agiam também sobre nós: a velocidade, a mecanização crescente da vida (…) As agitações sociais, trazendo ao nível da consciência literária inspirações populares comprimidas (…) No campo operário, com as grandes greves de 1917, 1918, 1919 e 1920, em São Paulo e no Rio, a fundação do Partido Comunista em 1922 (CÂNDIDO, 2006: 127)
Sendo o que Cândido (2006: 131) chama de “tendência mais autêntica da arte e do pensamento brasileiro”, o Modernismo no país expande-se “com a radicalização posterior à crise de 1929, que marcou em todo o mundo civilizado uma fase nova de inquietação social e ideológica”.
1.3 A Mulher Operária e a Sociedade de Classes
Ao se debruçar sobre os estudos do antropólogo Lewis H. Morgan (2004), Friedrich Engels (1984) constata a existência de um período histórico no qual as relações tribais eram pautadas em liberdade sexual, matriarcalismo e lar comunal. Com o advento da agricultura, a produção de excedentes e posse masculina dos meios produtivos – isto é, com o surgimento de um modelo de propriedade privada -, a situação da mulher sofre alterações: o homem assume controle da casa, garante paternidade através da imposição da monogamia e as mulheres enfrentam a servidão. Wendy Goldman (2016), ao analisar a obra de Engels, afirma que, para o teórico revolucionário, “o capitalismo criou a primeira possibilidade real de libertação das mulheres, desde a ruína do direito materno, ao envolver a mulher novamente na produção social”. Basicamente, o capitalismo, através da evolução das relações de produção, faz emergir uma nova mulher: a mulher moderna. “As máquinas, o modo moderno de produção, lentamente acabaram com a produção doméstica (…) Milhões estavam agora forçadas a encontrar seu meio e sentido de vida fora de suas famílias, na sociedade como um todo” (ZETKIN, 1984). Esta nova mulher é forjada no maquinário das fábricas.
As relações de produção, que durante tantos séculos mantiveram a mulher trancada em casa e submetida ao marido, que a sustentava, são as mesmas que ao arrancar as correntes enferrujadas que a aprisionavam, impelem a mulher frágil e inapta à luta do cotidiano e a submetem à dependência econômica do capital (KOLLONTAI, 2011: 16).
O capitalismo, que promete libertação feminina através de supostas possibilidades econômicas, gera contradições entre a mulher moderna e a organização familiar que pré-existia à modernização. Tais contradições apontam para especificidades nas pautas que se inauguram para as mulheres proletárias em comparação às dos operários. Engels (1984 apud GOLDMAN, 2016) aponta para uma contratação da força de trabalho feminina por uma fração salarial da masculina – tema sobre o qual Clara Zetkin (1984) se debruçou, ao dizer que, por constituir ‘uma força de trabalho barata e, acima de tudo, submissa’, as mulheres foram amplamente contratadas, alcançando independência a um ‘preço muito alto’. Um exemplo é o fato de que “os bebês adoeciam e passavam fome em casa enquanto os seios inchados de suas mães pingavam leite sobre as máquinas” (ENGELS, 1984 apud GOLDMAN, 2016). Em linhas gerais, “a ideologia do patriarcalismo, presente em todas as fases da gestação da formação social e econômica capitalista (…) atinge, no modo de produção capitalista, sua expressão mais requintada” (SAFFIOTI, 1976: 9).
Além da discriminação salarial baseada em gênero, e da complexidade da condição da proletária ao ser impelida às funções produtivas do capitalismo sem abrir mão das incubências reprodutivas, no Brasil são somadas à questão algumas especificidades causadas pelos processos históricos do país, sintetizados nas conclusões que Saffioti (1985: 137) faz sobre a força de trabalho feminina no país:
Se a este cruzamento das contradições de sexo e de classes se somar o fato de o Brasil ter sido penetrado de fora pelo capitalismo, só podendo desenvolver o “capitalismo associado”, dependente do centro hegemônico do sistema capitalista internacional, a situação da mulher se agrava ainda mais. O empobrecimento profundo da maioria esmagadora da população brasileira, fruto da pilhagem imperialista e das alianças que sempre existiram entre a burguesia nacional e a burguesia internacional, pode ser verificado pelo aceleramento do ritmo de concentração da renda nacional. Neste contexto, cresce o grau de exploração de todos os trabalhadores, especialmente das mulheres mais pobres, que enfrentam duas jornadas de trabalho, por serem obrigadas a complementar o orçamento doméstico.
(…)
Dada a simbiose patriarcado-capitalismo, entretanto, a meta da maximização do lucro é mediada pela supremacia masculina. E é desta forma que, pela via da subordinação da mulher ao homem e pela alocação prioritária da mulher aos aparelhos de reprodução, o patriarcado-capitalismo garante, simultaneamente, a reprodução da família trabalhadora e explora em grau mais intenso a força de trabalho feminina, quando dela necessita e nas proporções em que dela precisa.
Para que se perpetue os valores morais burgueses e se faça manutenção dos serviços domésticos ou a defesa da socialização dos gêneros como é dada no capitalismo, é imposta uma ideologia que se baseia em falsos princípios biológicos – “debilidade física, instabilidade emocional e a pequena inteligência femininas”, como aponta Saffioti (1976: 237) – para marginalizar a mulher nas etapas produtivas do sistema. Fator que, ocasionalmente, é revertido conforme as necessidades vigentes nas épocas da sociedade de classes – a necessidade de reduzir custos de produção, por exemplo, acarreta emprego massivo de força feminina de trabalho; bem como a necessidade de regular salários da mão de obra empregada, por outro lado, gera um contingente de força reserva feminina. Quando tal demanda surge, o mesmo conjunto de ideias é aplicado para perpetuar e naturalizar uma possível passividade feminina diante da exploração.
A prova de que tais oscilações existem diante dos diferentes cenários econômicos é de que, no Brasil, conforme dados trazidos por Saffioti (1976: 238), em 1872, as mulheres representavam 45,5% da força de trabalho efetiva no país. “Das mulheres ocupadas, 35% estavam empregadas na agricultura, 33% nos serviços domésticos, 20% como costureiras, 5,3% nas indústrias de tecidos e 6,7% em outras atividades”. Em 1920, após o primeiro surto industrial no país, resultado na Primeira Guerra Mundial, a participação feminina cai para 15,3% – embora a população operária tenha aumentado, utilizou-se amplamente de mão de obra masculina. Nesta mesma década, as mulheres das camadas baixas encontravam trabalho em funções como emprego doméstico; ao passo, como aponta Saffioti (1985: 115), as mulheres do estrato médio podiam ser professoras, enfermeiras ou parteiras.
A concessão que a sociedade fazia resumia-se, portanto, em permitir que a mulher praticasse fora do lar funções que já desempenhava no interior da própria família, de maneira empírica. Um pouco de qualificação profissional permitiria prestar a outros seres humanos serviços que a mulher, em certa medida, devia oferecer aos membros da família. (SAFFIOTI, 1985: 115)
Mesmo o desenvolvimento industrial de 1930, que posteriormente experimentaria a crise do capitalismo, não representou aumento na utilização de força de trabalho feminina. O que cresceu, em verdade, foi o “padrão doméstico de mulher” (Ibid: 240).
2. Parque Industrial: as Personagens e as Problemáticas
“Parque Industrial” é iniciado justamente na indústria textil, partindo posteriormente para o ateliê de costura – setores que, tanto pela conjuntura econômica quanto pela posição profissional vigente da mulher, abarcavam contingentes de força feminina de trabalho. Tanto nos “teares” quanto nas “agulhas”, os primeiros casos de assédio moral são registrados no livro. Abordada durante um diálogo com uma companheira, uma trabalhadora da indústria, cujo nome não é registrado, é chamada de “vagabunda” pelo “chefe da oficina”, também sem nome. Essa falta de alcunha que vá além da demarcação social é usada como forma de generalizar o problema; em que pese o fato de que no ateliê de costura – quando acontece assédio moral pela imposição da “madame” para que a “proletária” faça serão, sob pena de demissão – há também falta de atribuição de nome. O trabalho, análogo à escravidão, é marcado ainda por horários rígidos para necessidades fisiológicas – “Chi! Já está acabando o tempo e eu ainda não mijei!”, diz uma das operárias –, o que é importante de se demarcar quando há de se considerar que a obra trata, em primeira instância, de uma força de trabalho que menstrua.
A luta feminina por emancipação, a inserção da mulher nos cenários de resistência na luta de classes, é registrada na composição dos caracteres de Rosinha Lituana e Otávia. Ambas lutam em seu sindicato e espaços de atuação priorizando a coletividade em detrimento dos próprios anseios pessoais – Rosinha perde o emprego na fábrica ao delatar um operário em vias de furar greve, e Otávia abre mão de realizar-se no amor ao identificar no namorado um traidor do partido. Rosinha é pedagógica, ensina o conceito marxista de “mais valia” aos operários – “o dono da fábrica rouba de cada operário o maior pedaço do dia de trabalho. É assim que enriquece às nossas custas! (p. 21) – e é capaz, mesmo que jovem, de insuflar as massas na luta operária, o que a leva à prisão, como a própria autora do livro. Otávia é sororária, entende as contradições da mulheridade em uma sociedade permeada por exploração e moral burguesa, oferecendo suporte a uma companheira expulsa de casa por conta de uma gravidez, a Corina. A composição psicológica das duas personagens que integram as fileiras do partido comunista é bastante perspicaz: ambas possuem características pessoais de dada elevação humana que servem aos interesses da luta proletária.
Em Corina, o texto sintetiza o acúmulo das opressões de gênero, classe e etnia. A personagem é construída como um registro preciso da socialização à qual são sujeitas as mulheres da classe trabalhadora, por meio de características como resignação, servidão, cuidado, afetuosidade e passividade. A personagem está acostumada à violência doméstica praticada pelo padrasto alcoólatra, tanto contra ela quanto contra sua mãe, além de ser assediada na rua pelos “rapazes da esquina”, revelando o patriarcado como uma estrutura que usufrui de alguma autonomia, em dada medida, dentro do capitalismo – ela é explorada e desumanizada até por homens que pertencem à sua classe. Essa personagem, incubida de representar tantas cargas e contradições de gênero, leva a cabo a missão de expor a dor da objetificação, da maternidade, da prostituição, da criminalização da pobreza, além de colocar à prova a ideologia burguesa que gira em torno da ideia de meritocracia.
Corina, iludida e usada sexualmente por um burguês que a abandona grávida, é expulsa de casa e demitida do trabalho ao se recusar a fazer um aborto, tendo como alternativa apenas a comercialização do próprio corpo – “Corina abre a porta, fatigada. Mais outro e terá dinheiro para comprar o berço do filhinho” (p. 60). Na chamada “casa de parir”, enfrenta novamente o peso de pertencer à classe explorada. “Não percebe que a distinção se faz nas próprias casas de parir. As criancinhas da classe que paga ficam perto das mães. As indigentes preparam os filhos para a separação futura que o trabalho exige. As crianças burguesas se amparam desde cedo, ligadas pelo cordão umbilical econômico” (p. 63). Seu filho nasce com problemas provavelmente acarretados por pobreza e subnutrição, chegando a morrer. A personagem é ofendida através de léxicos preponderantemente ligados ao seu gênero e ao repúdio à sua sexualidade – “Estúpida! Só pra não ter o trabalho de criar! Vagabunda! Devia morrer na cadeia” –, sendo culpada pela morte do bebê e presa. Inclusive, Corina chega à cadeia convencida do discurso de que matou o próprio filho, como mais uma forma de construir o caráter da personagem expondo a socialização, ao mesmo tempo em que revela a culpabilização materna que ainda persiste em nossa sociedade – à mulher é atribuída toda a culpa da má sorte no processo, ao passo que o pai que não se fez presente é completamente exonerado. No berçário, através do destoamento das realidades de classe, a obra transmite claramente o recado de que o destino da classe trabalhadora é selado, na luta de classes, já no nascimento. Após o período na cadeia, Corina volta para a prostituição e enfrenta os impasses da “crise dos sexos que invade todo o bairro operário” (p. 120), encarando a fome.
O assédio e as investidas sexuais de burgueses contra mulheres da classe trabalhadora não são restritos a casos pontuais ao longo da obra, embora o caso de Corina seja capaz de esmiuçar as implicações dessa animalização de forma mais profunda. No carnaval, quando a burguesia vai se divertir no Brás, as mulheres do bairro são abusadas, assediadas e ridicularizadas pelos homens dessa classe.
Nesta mesma festa, o carnaval, “Parque Industrial” retrata de forma bastante sutil a banalização de outras formas de violência contra mulheres e meninas, como se a sutileza tivesse sido escolhida justamente por ser o recurso que mais daria conta de apresentar a desimportância desses temas na sociedade em si: a pedofilia – “comem doce. Marmanjos pagam. – Eu tenho peitinho! – Eu tenho pelos!” – e o feminicídio. Por ciúme de um burguês, um operário esfaqueia a companheira na festa, que é removida por ambulância – embora não existam informações na obra sobre a morte em si, o pouco que aparece concretamente no texto sintetiza que a supremacia masculina, as necessidades do homem de perpetuar domínio sobre a mulher e demarcar posse diante de outros homens, é superior até à vida da mulher. Depois da violência, “o carnaval continua. Abafa e engana a revolta dos explorados. Dos miseráveis” (p. 45).
Todavia, as violências praticadas contra a mulher trabalhadora não se restringem ao carnaval ou aos locais de trabalho. Em meio à crise que assolava o Brasil após o segundo surto industrial, grupos de burgueses se reúnem em um “club da alta” no qual tratam com bastante naturalidade de um caso de estupro cometido por dois deles depois de invasão domiciliar. Perguntado sobre o comportamento da polícia e da mídia diante do caso, o homem diz: “Quando é que a polícia perseguiu filho de político?” (p. 74), e aos jornais forneceu o título de “camaradas”. Também nesse ambiente, duras e irônicas críticas são tecidas pelo narrador de Patrícia Galvão ao feminismo burguês, através de conversas de mulheres ricas que comemoravam o direito ao voto excluindo a classe de “analfabetas” que são as operárias, bem como usando seus serviços domésticos – uma das moças relata um atraso, atribuindo a culpa à empregada que teve “desculpas de gravidez” (p. 77).
As condições de transporte e moradia são extremamente precarizadas. No cortiço, mulheres compartilham as mazelas do trabalho do lar e da servidão doméstica – lavam as roupas de seus maridos e lamentam-se de terem parido filhos que “morrerão de fome”. Didi, que aparece para lavar roupas no espaço comum carregando uma “criança mirrada” para a qual não consegue produzir leite, é empregada doméstica. Ela lamenta a jornada dupla de trabalho, a falta de recursos para sustentar o filho e a grande contradição: “Tenho que largar dele pra tomar conta dos filhos dos outro! Vou nanar os filhos dos rico e o meu fica aí num sei como” (p. 82). Este pesar por não conseguir orientar a própria prole, lamentado por Didi, bem como a falta de privacidade gerada pelo excesso de pessoas vivendo no mesmo espaço, acaba empurrando, conforme relatado no capítulo “Habitação Coletiva”, as crianças a uma experimentação precoce de sua própria sexualidade.
Por fim, sobre as personagens femininas, Eleonora e Matilde representam a princípio a pequena burguesia. Ambas estudavam na Escola Normal do Brás, para que se tornassem professoras. Posteriormente, as jovens, que nutrem paixão uma pela outra, mudam sua posição econômica: Eleonora, através do casamento com um burguês, ascende socialmente; ao passo que a crise acomete a família de Matilde, fazendo com que vá morar no cortiço. Em Matilde é depositada a esperança do ganho de consciência de classe. A personagem, que foi bastante resistente à compreensão das contradições sociais, por fim escolhe instrumentalizar-se para a luta proletária. Já Eleonora, por outro lado, representa a decadência da burguesia, já que seus valores descendem ao longo do texto – a princípio, a moça é mera vítima da moral, inclusive da moral sexual, burguesa; mas, posteriormente, o seu deslumbramento a distancia em absoluto das questões sociais, sendo inclusive a personagem adotada para produzir alguns contrastes de classe – Otávia, explorada nas agulhas, é quem leva os tantos vestidos que Eleonora encomenda. Mesmo a relação de Matilde e Eleonora é abalada pela questão da classe: além de enfrentar as implicações da pobreza, Matilde eventualmente lida com a rejeição e falta de conexão afetiva de Eleonora após relacionar-se sexualmente com ela, traindo o marido burguês.
Considerações finais
O objetivo deste artigo era observar a representação da mulher trabalhadora na obra “Parque Industrial”, de Patrícia Galvão, e as violências por ela sofrida sob uma perspectiva em que fossem consideradas as questões de classe e gênero. Esta observação tornou possível verificar que o texto de Pagu, para além do valor literário, é de grande valor histórico para o feminismo e para a luta proletária de maneira geral. Através de uma minuciosa composição das personagens, ao longo de seus capítulos curtos e sua escrita despretensiosa, a autora elencou as violências, explorações e desumanizações às quais estão sujeitas as mulheres, sobretudo as proletárias. A obra de Pagu expõe ou tangencia assédio moral, assédio sexual, estupro, violência doméstica, dupla jornada de trabalho, feminicídio, criminalização, culpabilização de mães, aborto inseguro, repressão sexual, fome, prostituição; mas, para além disso, ela indica um caminho: a luta. A luta travada pelas mulheres representadas nas personagens Rosinha, Otávia, Corina, Matilde, Didi e tantas outras, algumas sem nome, e que ainda se faz necessária nos tempos atuais.
Considerando um dos papéis da literatura, o de elucidar questões sociais – as posições ocupadas pela mulher no trabalho, reveladas com as estatíticas de Heleieth Saffioti, são também fielmente representadas na ficção de Pagu, por exemplo -, recomendo que mais trabalhos sobre essa e outras obras sejam feitos sob perspectivas classistas, para que as transformações sociais continuem ganhando forma e estrutura teórica, que se aliará à prática de luta.
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