Por Alvaro Guzmán Bastida, via CTXT, traduzido por Felipe Kantor
Nancy Fraser (Baltimore, 1947) tem estado na linha de frente da luta feminista e da teoria crítica desde o final dos anos 1960. Crítica do que chama de “feminismo neoliberal”, suas teorias em reconhecimento e redistribuição como termos para se entender desigualdades sociais se tornaram altamente influentes. Ela encontrou com o CTXT em seu escritório no departamento de Filosofia da New School for Social Research, em Manhattan, para discutir a preeminência da política de identidade em nosso tempo, a importância de Bernie Sanders, Donald Trump e Hillary Clinton, e porque se sentiu compelida a introduzir um terceiro conceito – o de “representação”, em sua última obra (Fortunes of Feminism), de forma a explicar o que aflige a sociedade contemporânea, e onde a luta para consertá-la deve ser focada.
Alvaro Guzmán Bastida: Quinze anos atrás você escreveu sobre um termo que emprestou de Hegel, “reconhecimento”, dizendo que era a palavra-chave do momento para se entender questões de diferença e identidade. Como Hegel a entendeu e por que ela é candente?
Nancy Fraser: Em Hegel você tem essencialmente dois atores encontrando-se e cada um é um sujeito, mas para que seja um sujeito completo, um precisa ser reconhecido pelo outro. Cada um afirma o outro como um sujeito em seu próprio direito, que é simultaneamente igual e diferente de mim. Se ambas pessoas podem afirmar isso, então você possui um processo de reconhecimento simétrico, recíproco e igualitário. Porém, conhecidamente na dialética senhor-escravo, eles se encontram em termos altamente desiguais, assimétricos; termos de dominação ou subordinação. Então você tem reconhecimento não-recíproco.
Alvaro Guzmán Bastida: Por que isto tem estado tão em voga desde o início dos anos 2000?
Nancy Fraser: Isso tem a ver com o que na época eu estava chamando de condição pós-socialista. Este era um momento na história das sociedades do pós-guerra, nas quais a problemática da justiça distributiva perdera sua capacidade hegemônica de organizar a esmagadora maior parte da luta e do conflito social. Até aquele ponto, no período pós-guerra, este paradigma de redistribuição era hegemônico, e quase todo discurso e conflito social estava organizado nestes termos. Isto significa que diversas questões tiveram bastante dificuldade em serem ouvidas. Muitas reivindicações foram banidas à margem porque não encaixavam na gramática distributiva. Basicamente, o que podemos ver agora em retrospecto é que a ascensão das políticas de reconhecimento coincidem com a ascensão do neoliberalismo. Neoliberalismo está, em efeito, deslocando o imaginário social-democrata e, em seu ataque à justiça distributiva igualitária, todo aquele modelo social-democrata está, se não ruindo totalmente, ao menos esgarçando, perdendo seu apoio, perdendo sua habilidade de organizar espaço e discurso político, e de uma forma que abre espaço para as várias reivindicações e lutas por reconhecimento.
Alvaro Guzmán Bastida: Quais são alguns exemplos?
Nancy Fraser: Após 1989, com o colapso do comunismo e de todo Bloco Soviético, o que temos? Rapidamente, a ascensão de um antagonismo religioso, de um antagonismo nacional – agora estamos no terreno do reconhecimento. Anteriormente, estas reivindicações eram reprimidas – elas eram excluídas. Então, havia uma versão comunista do discurso distributivo. Isso foi destruído. No Oeste, é a perda da hegemonia social democrática. Além da ascensão do neoliberalismo, parte disso tem relação com o que está acontecendo com os novos movimentos sociais que saíram dos anos 1960. A Nova Esquerda tinha um etos radical, pode-se até dizer anti-capitalista, e então estava focada tanto em redistribuição quanto em reconhecimento de formas bem radicais, eu diria. Todavia, conforme as décadas passaram, e o tipo de espírito radical anti-capitalista da Nova Esquerda desapareceu, o que sobrou, os movimentos sucessores – um novo tipo de feminismo, um novo tipo de anti-racismo, a sexualidade política do movimento LGBT – tenderam a ignorar o lado político-econômico das coisas e focar em questões que analisaria em termos de condição ou reconhecimento.
Alvaro Guzmán Bastida: Você conecta tais questões à política identitária. Até que ponto isto é um termo pejorativo?
Nancy Fraser: Parte do que tentei fazer em minha análise foi separar uma identificação muito rápida entre política de identidade e política de reconhecimento. Tentei dizer que a política de reconhecimento é uma dimensão legítima da justiça, e as reivindicações para se superar as injustiças de reconhecimento são importantes; elas não podem simplesmente ser reduzidas à reivindicações de distribuição como um marxismo vulgar teria feito. Quis defender a importância, a legitimidade, a relativa autonomia das reivindicações por reconhecimento. Entretanto, quis sugerir que há mais do que uma forma de entendê-las – não é necessário levar em consideração a forma de política identitária. De fato, frequentemente, reivindicações de reconhecimentos tomam forma de política identitária. Isto é infeliz, em meu ponto de vista. Cria todos os tipos de problemas e é frequentemente melhor se você consegue encontrar um entendimento não-identitário do que significa lutar por reconhecimento.
Alvaro Guzmán Bastida: O que deveria significar?
Nancy Fraser: O que um movimento como o feminismo deveria lutar por não é a ideia de que há alguma identidade ou etos distinto da feminilidade que precisa de reconhecimento afirmativo, para que seja igual a masculinidade. Não, eu diria que a política de reconhecimento em um movimento feminista deve ser uma luta contra as formas de desigualdade de condição que estão ligadas aos termos de gênero. E isso deixa bastante aberto se deveria estar se reavaliando o que quer que seja “o feminino”. Portanto, estou tentando desprender a política de reconhecimento da política de identidade.
Alvaro Guzmán Bastida: Relembrando, tenho a sensação de que – me corrija se esta for uma análise errônea – tem havido um grande progresso nas questões de reconhecimento nos EUA, igualdade matrimonial e daí por diante, e mesmo nas questões de visibilidade, com coisas como ter um presidente negro. Tem havido muito disso e pouca ênfase na redistribuição? Vivemos em tempos bastante desiguais, e isto não parece que vai melhorar.
Nancy Fraser: Não é uma questão de muito ou pouco, mas não tem havido um equilíbrio. Há um desequilíbrio e uma uniteralidade. Por exemplo, o movimento homossexual, o movimento LGBT, foca no direito ao matrimônio e no acesso ao serviço militar. Agora, estas não seriam minhas primeiras escolhas para se lutar. Todavia, ambos, curiosamente, possuem de fato um elemento distributivo. O serviço militar é uma das poucas rotas que pagam por uma educação no ensino superior, por exemplo; então há benefícios econômicos nisso. E possuir o direito ao casamento carrega direitos econômicos e sociais tanto quanto simbólicos de reconhecimento.
Alvaro Guzmán Bastida: Qual teriam sido as rotas alternativas de sua preferência?
Nancy Fraser: Bem, teria preferido uma luta por fazer direitos sociais básicos simplesmente os direitos sociais de indivíduos, independente de seu estado civil, teria preferido uma sociedade que tira a ênfase de quem é ou não casado. Ao invés de dizer “queremos nos casar também!”, por que não dizer “tenha seu acesso à saúde, imposto e todos os outros tipos de benefícios só por ser uma pessoa, um cidadão, um residente, vivendo no país”?
Alvaro Guzmán Bastida: Porque estes estão em pé de igualdade em termos de elementos redistributivos, mas enfatizam a condição. É por isso?
Nancy Fraser: Sim. E a questão do matrimônio introduz sua própria comparação de condição desagradável, entre aqueles que são casados e os que não são e assim por diante. Não precisamos reforçar isso.
Alvaro Guzmán Bastida: No começo dos anos 2000, você estava escrevendo sobre um problema de “deslocamento”, no qual “questões de reconhecimento estavam servindo para marginalizar e tornar exclusivas as lutas redistributivas”. Novamente, se passaram quase duas décadas – Qual o balanço que faz deste período?
Nancy Fraser: A paisagem do conflito social e da realização das reivindicações, ao menos nos Estados Unidos, está bem diferente de quando estava escrevendo. A ilustração mais dramática é a atual campanha da primária presidencial, onde temos Bernie Sanders de um lado, que afirma ser um “socialista democrático” e está essencialmente lançando um forte discurso de classe que é esmagadoramente focado em redistribuição. Também apoia todas as boas lutas progressivas de reconhecimento, mas proeminentemente, o peso real está sobre a questão da classe bilionária, do um por cento, e daí por diante.
Alvaro Guzmán Bastida: Te surpreende o fato de que ele poderia ter chegado tão longe nas primárias ao enfatizar as classes?
Nancy Fraser: Sim! É fantasticamente surpreendente. Estou muito feliz em relação a isso, e nunca poderia ter previsto. E me mostra, primeiramente, o quão longe chegamos desde o final da Guerra Fria. O fato de que você consegue usar o termo “socialismo” e ele não carrega toda aquela bagagem ou inspira o mesmo tipo de estigmatização do vermelho e a loucura, isto é interessante. Por outro lado, o lado de Donald Trump, lá definitivamente temos um certo de tipo de populismo nacionalista autoritário de direita que também de certa forma evoca o tipo de problemática de classe, mas o faz de forma excludente, semi-racista e certamente nacionalista. Então, é como se estas duas figuras divergissem consideravelmente na política de reconhecimento – tanto quanto suas propostas programáticas – mas ambos expressam uma nova importância da distribuição. Isto é novo. Quando estava escrevendo em meados dos anos 90 sobre isso, distribuição estava nas margens, e tudo era reconhecimento, reconhecimento, reconhecimento. Não é mais o caso. Reconhecimento não desaparece e não deveria, mas creio que estão em um diferente tipo de equilíbrio.
Alvaro Guzmán Bastida: Já que mencionou as eleições – e o que acha da outra candidata do lado democrata, Hillary Clinton? Várias feministas da segunda onda, tais como Gloria Steinem, declararam que as mulheres deveriam apoiá-la porque ela é mulher e é a candidata feminista. Ela é mesmo?
Nancy Fraser: Bem, não diria que ela é. Mas há algo bastante interessante acontecendo. Clinton tem sido uma porta-voz do feminismo por décadas. Começou sua carreira advogando por crianças e mulheres, é famosa por seu discurso na ONU sobre os direitos das mulheres serem direitos humanos, tem sido confiantemente a favor do aborto e assim por diante. Então se tudo isso se encaixa no lado do reconhecimento, ela tem estado lá, e de uma forma mais explícita e proeminente do que Sanders. Porém, por outro lado, que tipo de feminismo é este? Clinton encarna um certo tipo de feminismo neoliberal que é focado em romper o teto de vidro, ir adiante. Isso significa remover barreiras que impedem mulheres mais privilegiadas, com um nível de instrução mais alto já possuidoras de uma boa quantidade de capital, cultural e outras formas, de ascender nas hierarquias do governo e de negócios. Isto é um feminismo cujos principais beneficiários são mulheres mais privilegiadas, cuja habilidade de ascensão reside de certa maneira nesta grande porção de precariamente mal-pagos, frequentemente racializado e precário serviço doméstico, que também é bastante feminizado, e que fornece este cuidado familiar. E ao mesmo tempo, Hillary Clinton, como seu marido, está bastante envolvida com Wall Street, com desregulamentação financeira, e com toda neoliberalização da economia. Então o tipo de feminismo que Sanders representa possui uma chance melhor de ser um para todas as mulheres, para as pobres, as negras, da classe trabalhadora e assim por diante, e isto é mais perto do meu tipo de feminismo.
Alvaro Guzmán Bastida: Você introduz um terceiro termo em seu livro, onde não fala apenas sobre reconhecimento e redistribuição, mas oferece também a representação. Por que sentiu necessidade de fazer isso?
Nancy Fraser: Porque isso tematiza a ideia de uma forma explícita, que diferente das questões de distribuição econômica de um lado e das questões de condição e reconhecimento do outro, há todo um outro grupo de questões que tem relação com a própria política como uma dimensão fundamental da sociedade. E penso que em nosso tempo, toda a questão de quem possui posição política, em um mundo de refugiados, solicitantes de asilo, pessoas sem documentos – se torna uma questão muito importante. Isto não é especificamente sobre reconhecimento ou redistribuição, apesar de definitivamente atravessá-los. É também sobre ter voz política.
Alvaro Guzmán Bastida: Até que ponto transcendem fronteiras?
Nancy Fraser: Quando penso sobre voz política e quem a possui e quem não, creio que não se deveria pensar sobre a comunidade política limitada por um dado estado-nação, como os EUA ou qualquer outro, mas também no grande contexto internacional, transnacional, global. Há também a questão de um mundo no qual os estados são muito desigualmente empoderados. Então, imaginemos que é um cidadão de, vamos dizer, Somália, e possui, se não um estado falho, um estado muito fraco o qual está profundamente debaixo das garras de grandes poderes globais ou instituições financeiras, como o FMI, entre outros – há enormes questões sobre a voz política que condizem com este nível maior, e não apenas dentro de seu estado, mas também no sistema mundial como tal. E penso que a única forma de chegar nelas é através deste conceito de representação. Então a ideia seria agora de pensar sobre três dimensões de justiça – três formas diferentes de injustiça se preferir: má distribuição, reconhecimento errôneo e representação errada-ou-inexistente, ou o a má formação de questões da política.
Alvaro Guzmán Bastida: Então como você articula isso em termos de movimentos sociais ou políticos? Penso na Europa, por exemplo – há um debate sobre como articular subjetividades políticas, se isto pode acontecer sem a política identitária tomar posse, ou mesmo tomando controle. Porque você introduz o conceito de representação ou transnacionalidade, pode alguém construir poder coletivo em um mundo globalizado sem enfatizar identidade, e colocar a ênfase em, por exemplo, representação? Como propõe que isso poderia acontecer?
Nancy Fraser: Bem, creio, por exemplo, que toda a estrutura e problema da União Europeia é em parte uma questão sobre representação. Apenas simplesmente pela virtude do fato de que o Banco Central Europeu e instituições financeiras globais agora, em conexão com a chamada Troika, possuem uma enorme quantidade de poder, tanto que são capazes, através da imposição de medidas de austeridade e assim por diante, de invalidar eleições. Eles podem dizer aos gregos “Não nos importamos para quem votaram! Não podem ter estas políticas!”. Então, há apenas a questão básica sobre onde o poder e a voz política residem, de maneira que estejam na estrutura da União Europeia quando esta cruza com a ordem financeira global. Isto está acima e além ou, vamos dizer, se liga com os problemas de reconhecimento e distribuição. Porque você pode ter um tipo de política de reconhecimento na Europa onde os países mais ricos do norte olhem para os chamados PIGS – os países mais ao sul – como sendo preguiçosos, sonegadores, etc. Isto é uma velha e familiar história de reconhecimento. Mas onde isto se torna realmente letal é onde cruza com este problema estrutural de forma – e é claro que possui relação com a criação do próprio Euro – que lhe é forçado medidas de austeridade contra a voz democrática.
1 comentário em “Entrevista com Nancy Fraser”