Por Alex Barbosa Paula, membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia
O livro “Fundação”, de Isaac Asimov, um famoso escritor de ficção cientifica da década de 50, conta a historia de uma humanidade que há muito saiu da Terra e através de milhões de anos se espalhou por toda galáxia, se unificando em um único império composto de um quintilhãode indivíduos. O livro conta a história da queda deste império e a ressurreição de um novo, começando pela descoberta da queda feita pelo matemático Hari Seldon, que desenvolveu uma forma de matemática estatística que consegue prever e calcular os movimentos de grandes massas de indivíduos durante grandes períodos de tempo chamada psicohistória.
“- Qual é o significado exato de sua resposta, Dr. Seldon?
– A explicação é banal: a remota destruição da [capital] não é em si um acontecimento único no esquema do desenvolvimento da humanidade. Será antes o clímax de um complicado drama que teve início há séculos e que se acelera continuamente. Refiro-me, nobres senhores, ao declínio atual e consequente destruição do Império Galáctico.
[…]
– O senhor compreende, Dr. Seldon, que fala de um Império que se mantém há doze mil anos, através de todas as vicissitudes e que tem atrás dele a devoção e o amor de um quintilhão de seres humanos?
– Estou bastante certo do estado atual do Império e da história que o precede. Com todo o respeito pela assistência reclamo um conhecimento muito mais vasto dessa história do que qualquer dos presentes.
– E mesmo assim continua prevendo a ruína?
– É uma previsão matemática, sem qualquer juízo moral. Pessoalmente lamento até o que está por vir. Mesmo que se admitisse que o Império fosse uma coisa má (e eu não o admito) o estado de anarquia que se seguiria à sua queda seria mil vezes pior. É contra esse estado de anarquia que eu pretendo lutar. A queda do Império é, meus senhores, um movimento contra o qual não será fácil lutar. É ditado por uma burocracia crescente, falta de iniciativa, congelamento de castas, excomunhão de curiosidade – centenas de outros fatores. Tem continuamente progredido de séculos para cá, e apoderou-se demais da “massa humana” para poder parar.” Asimov, I. Trilogia da Fundação. 1. ed. [s.l.] ALEPH, 2015.
A solução de Seldon para a queda não foi salvar o império, o que ele mesmo afirmou ser impossível, mas estabelecer os meios para a ascensão do próximo império. A organização criada por Seldon para este fim foi chamada de Fundação. A Fundação é uma organização gigantesca formada por milhares de indivíduos, membros de todas as especialidades. Inicialmente, o objetivo da Fundação foi compilar uma enciclopédia com todo o conhecimento cientifico da humanidade, para que esta não se perca durante os desmanches do império. Entretanto, este objetivo era apenas uma farsa para que a Fundação, que havia sido exilada em um planeta distante do centro do império chamado Terminus, pudesse crescer e se consolidar. 50 anos depois do inicio da Fundação e da morte de Seldon uma mensagem que tinha sido deixada pelos primeiros fundadores revela o seu verdadeiro objetivo:
“Há 50 anos que esta Fundação foi estabelecida, 50 anos em que todos da Fundação ignoraram o fim para o qual trabalhavam,[…] A Fundação Enciclopédica, para começar, é, e sempre foi, uma fraude![…] Daqui por diante, através dos séculos o caminho que seguirão é inevitável. Serão postos à prova por uma série de crises, do mesmo modo que agora encaram a primeira delas, e de cada vez a liberdade será tão restrita como agora[…] – Depois da queda surgirá inevitavelmente o barbarismo, um período que, segundo os nossos psicohistoriadores, sob circunstâncias vulgares durará trinta mil anos. Não podemos suster a Queda e não desejamos fazê-lo. A cultura do Império perdeu todo o valor e virilidade que já teve. Mas podemos, sem dúvida, encurtar o período de barbarismo que se lhes seguirá – encurtá-lo para mil anos.” Asimov, I. Trilogia da Fundação. 1. ed. [s.l.] ALEPH, 2015.
A trilogia original da Fundação é a historia desses mil anos entre a queda do antigo e a ascensão novo império. Cada umas das crises à que Seldon se refere tem sua própria Geração de protagonistas e problemas, enquanto crises passadas se tornaram parte da historia da Fundação. Esse pra mim é um dos pontos mais interessante desta obra, a sua relação complexa com o tempo e a historia, cada capitulo narra a crise criada pelas consequências da solução da crise anterior. Essa gigantesca perspectiva de tempo é algo cada vez mais raro na ficção e literatura de nosso tempo. Mas o que estaria substituindo-a?
O filme “Jogos Vorazes” é uma distopia pós-apocalíptica sobre um país chamado Panem que é liderado por um governo ditatorial. Panem é dividido entre a Capital, ou Capitol, onde fica o centro administrativo e onde os ricos vivem, e os 12 distritos, cada um responsável por um tipo de produção, como agricultura, mineração e produção de mercadorias. O mais interessante sobre a nação de Panem é a sua perfeita divisão entre os proletários e burgueses. Nos distritos 3 ao 12 estão os operários e lavradores, bem como a classe média ou reacionária, no distrito 1 estão os responsáveis pela produção de mercadorias de luxo, no distrito 2 aqueles que tem como tarefa a produção e treinamento militar, e por fim, a burguesia, os que vivem na capital que passam seus dias gastando suas riquezas, em especial o líder autoritário, o Presidente de Panem, Snow. Toda essa estrutura parece algum tipo de mundo perfeito da esquerda, todas as condições para a revolução estão organizadas, e o que dá início a revolta e consequente queda do governo é a base do edifício ideológico em qual vou focar.
Os “Jogos Vorazes”, ou “Hunger Games”, é uma competição imposta pelo Capital onde 24 jovens, um homem e uma mulher de cada distrito, são obrigados a lutar até a morte em territórios selvagens como florestas e desertos. O último a sobreviver recebe riquezas para a vida toda. Os jogos foram criados como uma punição aos distritos que se rebelaram contra a capital 73 anos antes dos eventos do primeiro filme, os jogos são transmitidos para toda Panem e tem o formato de um reality show. Katniss Everdeen (encenada por Jennifer Lawrence) é uma jovem do distrito 12 que entra nos jogos para proteger a irmã que havia sido escolhida por sorteio. O filme foca nas diversas demonstrações de amor e desacato feitos por Jennifer durante os jogos, em especial como ela e seu “suposto” amante ameaçam cometer suicídio ao invés de matar um ao outro, o que, por diferentes motivos, começa a causar agitação e revolta em outros distritos. Nos filmes seguintes essas revoltas se tornam a revolução que derruba o governo de Panem.
Um dos principais problemas que gostaria de trazer com este texto é a diferença de escala entre o livro de Asimov e o filme “Jogos Vorazes”. Jogos Vorazes está no fim de uma série de narrativas de distopias, governos autoritários, violentos e extremamente corruptos e eventos apocalípticos que começaram a algumas décadas antes do filme. E Fredric Jameson aponta no Utopia Americana uma ligação entre o fim do pensamento utópico e a fonte destas distopias.
“Nós temos visto uma marcante diminuição na produção de novas utopias durante as últimas décadas (acompanhado de um incrível aumento em todas as formas de distopias concebíveis, muitas das quais aparentam ser monotonamente iguais. […]De fato, as possibilidades de pensamento utópico foram sempre ligadas com a fortuna de uma preocupação mais geral, para não falar obsessão, com o poder.
[…]
A especulação sobre o poder adquire suas fundações ideológicas no trabalho de Michel Foucault e outros, reforçado por “revelações” sobre o Gulag, e se torna uma obsessão distópica, um medo pseudo-paranóico de qualquer forma de organização política ou social––seja na formação de partidos políticos de um tipo ou de outro ou na especulação sobre a construção de sociedade futuras radicalmente diferentes desta[…]esse desenrolar no campo das utopias aparenta ir de mãos dadas com a virtual dissolução de todos os tipos de pratica política na esquerda.” Jameson, F e Žižek, S. – An American utopia. Tradução livre . [s.l: s.n.].
Acredito que “Jogos Vorazes” seja um ótimo exemplo deste medo, uma representação do fantasma que assombra e da fantasia que dá suporte a esquerda hoje. A forma em que, no filme, as revoltas que eventualmente derrubam o governo são colocadas como consequências diretas dos atos supostamente “subversivos” da protagonista no programa de televisão, feito por este próprio governo para punir os distritos por revoltas passadas, não seria um excelente paralelo com a atual predominância das cada vez mais frequentes formas de protesto que muita vezes dependem da chamada mídia dominante para passar a sua mensagem supostamente subversiva que tem o objetivo de causar descontentamento na população? E o mesmo não se dá quando nada acontece (e não estamos culpando a mídia por nada estar acontecendo) na constante procura por aquele agente revolucionário, nossa Jennifer Lawrence, que finalmente passaria a mensagem? Zizek no seu filme “Guia Perverso da Ideologia” fala como “o momento em que acreditamos ter escapado para fora da ideologia é quando estamos realmente dentro da ideologia”. Isso que dizer que a ideologia não funciona por um não saber algo, mas por acreditamos que tem um outro que não sabe, que não é livre como nós e que tem de ser libertado. A ideologia vem de um ideal de liberdade que depende de um suposto outro que não permite que sejamos livres. Porém, o que essa ideal estaria encobrindo?
A Fundação de Asimov não é exatamente um exemplo de utopia a que Fredric Jameson se refere, mas demonstra uma ideia bastante diferente de quais seriam os limites da liberdade e dos indivíduos. Mesmo com um plano do que fazer, são necessárias ações de diversas gerações para que o objetivo final da Fundação se conclua. Hegel deixa de maneira bem clara (algo raro para ele) no fim do Prefácio da Fenomenologia do Espírito essa mesma ideia.
“Vivemos aliás numa época em que a universalidade do espírito está fortemente consolidada, e a singularidade, como convém, tornou-se tanto mais insignificante; em que a universalidade se aferra a toda a sua extensão e riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe à atividade do indivíduo na obra total do espírito só pode ser mínima. Assim ele deve esquecer-se, como já o implica a natureza da ciência. Na verdade, o indivíduo deve vir-a-ser, e também deve fazer, o que lhe for possível, mas não se deve exigir muito dele, já que muito pouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo.” Hegel, G.W.F, Fenomenologia do Espírito. Tradução . Petrópolis: Vozes, 2008
No CEII, nos temos uma pequena frase, “Seje menas”, que é uma brincadeira com a frase de Lenin “Melhor menos, mais melhor”. Nós acreditamos que esta lição de Lenin seja mais importante do que nunca por levar em conta estes mesmo limites a que aponta Hegel. Nós vivemos em um constante estado de emergência e culpa, agimos como se tivéssemos perdido o direito de errar, o tempo de pensar, e toda e qualquer ação perde qualquer valor diante da grandeza do Estado ou do Capital. A lição de “Melhor menos, mais melhor”, que viria de Hegel, é que o próprio limite que nos impede de chegar no absoluto é um caminho para o absoluto, ou seja, é o caminho de algo que, como o gigante império galáctico de Asimov, é muito maior que nós, existe muito antes de nós, vai continuar existindo depois de nós e a coragem necessária para carregar algo assim é muito grande, mas talvez essa coragem seja o primeiro passo para um futuro diferente.
* Texto apresentado no colóquio “Futuro e a Hipótese Comunista” na UFABC em 09/2016
1 comentário em “O futuro em dois tempos”
Boa tarde, repostei esse artigo em meu site. Parabéns pelo trabalho
http://www.chicpop.com.br/single-post/2016/10/26/O-futuro-em-dois-tempos-Funda%C3%A7%C3%A3o-de-Isaac-Asimov-e-Jogos-Vorazes-o-filme