Por Sandino Nuñez, via La diaria, traduzido por Daniel Fabre
Ganhou Donald Trump. A frase é terrível. Em parte porque ganhou Donald Trump. Mas também, e sobretudo, porque ganhou Donald Trump.
Ganhou Donald Trump
Isso desconcerta e atormenta a velha Europa liberal e integrada. A tibieza européia quer depositar agora em Angela Merkel a liderança do mundo livre, esse que deveria passar pacificamente de Barack Obama a Hillary Clinton. Não dá pra entender que possa ter falhado: em um mundo felizmente civilizado pela globalização tecnológica e bancária, de repente, inadvertidamente, houve um retro salto ás patologias ideológicas da direita, ao fascismo, aos “populismos” e à intolerância. O mundo ocidental se desmorona. Já havia ocorrido o brexit. A França espera o golpe de Marine Le Pen. Que gloriosa estupidez. O que eu não entendo é o que não se entende. Não seria necessário ver o triunfo de Trump como a penosa aparição das Hillary Clintons diante de seu próprio mundo e do próprio aparato? Esse mundo é o da globalização branca e pós-industrial do capital financeiro e o artefato bancário transnacional; o mundo de Wall Street, dos fundos de investimento e da generalização abstrata das leis não escritas da circulação e do mercado do dinheiro; o mundo da proliferação de Tratados de Livre Comércio, da desregulamentação financeira e da escrupulosa qualificação técnica da vida, as democracias e a política; o mundo das empresas tecnológicas, dos contratantes e da terceirização privada de serviços de defesa, controle e vigilância, militares ou policialescos; o mundo da “gentrificação” e a limpeza dos bairros e cidades entregues a especulação e ao mercado imobiliário. E o aparato é o de uma casta flutuante como o próprio dinheiro: elites educadas e o “cognitariado” tecnocrático de ricos-ricos com seu cinturão de bairros privados “exurbanos” perto de Washington. Uma nebulosa inocente e anônima já desligada daquela clássica noção de classe dominante que ostentava sua hegemonia sobre as maiorias, investida com a magia da ideologia ou do símbolo, ou sustentada pelo artefato de poder das armas. Nem patrões nem senhores: acionistas, gerentes, diretores executivos, técnicos e desenvolvedores. São os donos e os herdeiros cômodos da globalização do capital, ao moderado impulso de uma religião já plenamente consagrada como pura tecnologia e pura administração. Neutros e profissionais, sem destino manifesto, sem superstição celestial ou extraterrestre, sem a cidade resplandecente na colina. Uma casta universitária e educada, rigorosamente ao dia, à altura da história, adornada ou confundida ideologicamente com o ectoplasma bem-pensante do liberalismo (no sentido estadounidense de “progressismo”) e a agenda convencional da new left: tolerância e respeito pela diversidade cultural, religiosa e sexual; combate aos essencialismos, populismos e totalitarismos; descentralização das comunicações e dos meios no blog, Twitter e na web 2.0, etc. Em suma: uma cobertura ideológica que continua e prolonga tranquilamente, como uma prótese, a lógica automática e natural do mercado e a circulação liberal de dinheiro, pessoas, informação e comunicações. De outro lado, como se sabe, lixo branco em desconformidade, incapaz de propor sua desconformidade exceto na forma infantil e hiper-realista do nacionalismo recalcitrante. Hillbillies, rednecks e trabalhadores industriais de uma era dourada “made in USA” que ficaram do lado mal da globalização, desocupados ou com trabalhos precários, pendurando hipotecas impagáveis, sem seguros de saúde, sem educação e sem fundos de pensão, iluminados pela bancarização incontinente, tão longe do sonho da poupança como o êxtase do consumo.
Então, é obvio, é necessário situar novamente o plebiscito entre a. o macho falastrão e b. a discreta delicadeza do feminino; entre a. os carrinhos de bate-bate ou o wrestling e b. as baladas indie do campus universitário; entre a. baconlandia (United States of Bacon) e b. o restaurante gourmet ou comida étnica ou macrobiótica; entre a. o fanatismo religioso sobrenatural e b. a fina espiritualidade customer service; entre a; o pastor carismático e palhaço e b. o conferencista TED; entre a. o impacto visual da postura fascistoide e b. a tranquila e insignificante coreografia ritual da democracia e da tolerância. Quem não se elegeria, sem pensar sequer, as alternativas “b” deste plebiscito? Mas o monstro ficou coberto pela própria alternativa: e o monstro não é somente a capacidade da hegemonia tecnocapitalista contemporânea de se esconder detrás de uma figura civilizada e progressista, senão a oscilação mesma entre uma e outra. É profundamente cínico o contraponto entre Trump soltando suas conhecidas idiotices sobre deportação, muro na fronteira mexicana, tolerância zero com os imigrantes e as castas educadas mostrando a boa cara civilizada da generosidade e da compreensão, vivendo os refugiados mais como um benefício (ou como um ativo, um asset) do que como uma fardo ou uma maldição que compete com a força de trabalho nativa, pois razoavelmente a imigração aporta massas de trabalhadores precários e não qualificados trabalhando no escuro, quase em condições de escravidão, sem benefícios sociais nem gastos da administração. Se o estrangeiro e a imigração supõem um assunto de mera atitude cultural, e todo é questão de tolerar e respeitar, então a exploração ficou duplamente abafada por detrás da agenda de direitos da new left. E, em geral, se sempre nos Estados unidos se termina por plebiscitar entre Homer e Lisa (para usar um lugar comum), convém ter em conta que entre eles se assistem com eficácia narrativa, que um deles está sempre profundamente endividado com o outro, e que, rigorosamente, o primeiro é o eu ideal (gordo, milionário, vulgar, tirado do imaginário mais cru), e o segundo é o ideal do eu (dietético, environment-friendly, obsessivo, correto e eficaz). E convém ter em conta que, no fundo, a massa sempre ama Homer e odeia Lisa. O eu ideal fascina as mulheres enquanto que (ou porque) o ideal do eu tranquiliza as sogras.
Ganhou Donald Trump
Se a política pode se descrever ou se entender em uma lógica de competir, ganhar ou perder, então não é surpreendente em absoluto que esse pódio chamado trono ou poltrona presidencial está destinado, desde a manhã mesma da democracia eleitoral de massas, aos Donald Trump. Eles não são somente os herdeiros desse trono: são a objetivação mesma dessa lógica. O vencedor não é aquele que foi selecionado pelo azar ou pela natureza: é o produto técnico mais perfeito da máquina técnica de competir e ganhar. E esse traço de enfermidade autoimune que tem a democracia eleitoral é algo que não costuma se levar em conta. Não se insistirá nunca o suficiente com a natureza maquinal dos traços “psico-ideológicos” dos agonistas (para o caso de Trump). Fascismo, racismo, machismo, xenofobia, etc., obedecem, em princípio, a um ideal técnico radical. Perseguem a nitidez, o pixelado, a alta definição da imagem, o hiper-realismo. Fazem máquina com a máquina de filmar, de transmitir, de histerizar. Não se abismam no dogma ou na crença da ideologia e do signo: simplesmente se estiram funcionalmente sobre a hipnose fetichista do concreto e da imagem. São um produto da economia técnica da máquina eleitoral e não significados externos da máquina. Mas, é claro, esta hipoteca econômica da ideologia não a desativa como ideologia: o perigoso do jogo, o incompreensível e o intratável do jogo, é que sempre é real. Pois ainda que saibamos que o perfil infantil, recalcitrante, reacionário, fanfarrão, provinciano e mal-educado de Trump não é aquilo que a imagem, o gesto ou a câmera capta com um signo de exclamação, senão que é parte do próprio signo de exclamação (ou é o próprio signo de exclamação), termina em ser também, com empenho, um perfil infantil, recalcitrante, reacionário e mal-educado.
Mais insuportável ainda que o circo eleitoral, se cabe, é o desdobramento do circo eleitoral em seu metadiscurso técnico, na autorreferencialidade autista de sua economia: porque se equivocaram as pesquisas, ganhará o que melhor interprete o desejo da massa de votantes, não entendemos o que aconteceu, Hillary ganhou os debates, etc. Mas massa deve se entender no sentido em que essa palavra funciona na expressão “cultura de massas” ou “democracia de massas”, na globalização abstrata das tecnologias da comunicação e da informação. A massa é o princípio do prazer: não deseja nada nem tem um sentido oculto que deve ser interpretado pelos líderes políticos: é uma neutralidade radical que ganha carga magicamente com as positividades fantásticas e todo o carnaval de selos hiper-realistas de geringonças tecnológicas e midiáticas. Uma gigantesca nuvem insubstancial que se acende por contágio, consegue montantes extraordinários de energia e se apagam tão misteriosamente como havia se acendido. Não é estranho em absoluto que o recalcitrante, o incorreto, ou inclusive o fascista, façam máquina com a massa e suas fantasias pagãs ou milenaristas de redenção, com o sonho de uma catástrofe que venha limpar o mundo de maldade e corrupção deixando em pé os melhores. Pois o capitalismo “alcança seu conceito” precisamente na globalização da tecnologia como lógica abstrata de troca, rendimento, eficácia, aperfeiçoamento e acumulação: aí a lógica capitalista parasita e coloniza todos os sistemas e todas as esferas: a vida, a política, o social, a educação, etc. Agora o capitalismo é o mundo. E por isso é que é mais simples imaginar o fim do mundo (um meteoro, a mudança climática, as explosões solares, as invasões de zumbis) do que pensar a superação de um simples modo histórico de produção. É necessário repetir, finalmente, com Walter Benjamin, que “a força do fascismo reside em que seus inimigos o enfrentam em nome do progresso como norma histórica”, como um retrocesso ou um resíduo patológico do cérebro reptiliano da sociedade internacional globalizada, que podemos curar a golpes de progresso, desenvolvimento, tecnologia democrática e convivência pacífica. Erro terrível. O fascismo (abusemos, por boas razões, dessa palavra, tal como fazia Benjamin) é a própria consagração da lógica do progresso técnico.