A ética na advocacia: uma abordagem crítica

Por Antoin Abou Khalil, via teses.usp.br

Publicamos excerto da tese de doutoramento de Antoin Abou Khalil, em que se busca construir uma reflexão crítica a respeito da ética na advocacia – levando em conta a correspondência necessária entre capitalismo e direito. Debate-se o papel ideológico não só do direito, e de seus agentes, como também da teoria filosófica que se constrói em torno de todo esse afazer.


Independência

Como já se notava desde os tempos mais antigos, tanto entre os gregos quanto entre os romanos, a ideia de justiça não pode estar vinculada àquele a quem determinada decisão possa interessar. Portanto, a autonomia do advogado é apresentada como fundamental, e os advogados se empenham em reforçar tal ideia, legitimadora que é de seu afazer profissional. Diz ALYSSON MASCARO:

A referência à justiça é a mais recorrente legitimação ideológica da atividade jurídica prática e de sua teoria. Do mesmo modo que um religioso lastreia seus mandamentos na moral, o jurista se reporta à justiça de seus atos e suas normas.[1]

Diante de dois interesses contrapostos, é melhor crer que as causas dos litigantes contaram com o endosso dos doutos da lei – que, de forma independente e com base em critérios apriorísticos de justiça, ratificaram-nas –, do que crer que os doutos se rebaixaram ao nível das pretensões egoísticas de seus clientes e, a partir daí, por critérios de ganho material, puseram a técnica jurídica a serviço das mesmas. Esse recorte ideológico é fundamental, pois na inversão de sentidos que promove, o próprio conflito entre particulares abandona a arena chã dos interesses mesquinhos e ganha ares de uma disputa por justiça.

Por esse motivo, nos tempos modernos procura-se minimizar os efeitos da mudança ocorrida entre o exercício da advocacia por pessoas realmente independentes, conforme se deu nos primórdios, e o verificado, de forma crescente, sob o capitalismo. Esse esforço dissimulatório, visando a construir a imagem de um “aristocrata” do Estado de Direito, faz-se visível na própria linguagem. Ainda hoje, basta ser bacharel em direito e integrar os quadros da Ordem para merecer, do meio social, o título de “doutor”. À parte os integrantes das demais carreiras jurídicas, distinção igual é reservada apenas aos médicos, com a diferença de que a estes profissionais cabe lidar diretamente com a vida.

No âmbito jurídico, emprega-se a expressão “verba honorária”, ou simplesmente “honorários”, para designar a remuneração paga aos advogados, termo com o qual se procura afastar a ideia de contraprestação pecuniária por um trabalho realizado.[2] Na mesma linha, a proliferação de palavras e expressões técnicas, a criação de rituais de acionamento da jurisdição, o uso da fala empolada também atuam em prol dessa distinção entre os advogados e o vulgo, sem falar nas vestes formais que são obrigados a portar, transformadas, como os códigos, em “ferramentas de trabalho”.

Contrapondo-se ao plano ideológico, a realidade social traz contundente desmentido, uma vez que as responsabilidades pelas quais os advogados são cobrados por seus clientes enfraquecem eventuais ligações de seu trabalho com o valor da justiça.[3] Além do mais, resta claro que a expressiva maioria dos advogados do mundo moderno não sobrevive de “verba honorária”, mas de salário.

A independência do advogado pode ser tomada noutra perspectiva que não a da relação estabelecida com seu cliente, mas tendo por foco as autoridades, particularmente os juízes. Diz-se não haver hierarquia entre advogados e juízes. Contudo, qualquer advogado que atua no contencioso sabe quanta falácia há nisso. A única defesa que um advogado tem contra os desmandos de um juiz são os apelos a… outro juiz! Eventuais desagravos que um ou outro advogado receba em virtude dos confrontos com magistrados não têm o condão de mudar a realidade do poder exercido por estes últimos na esfera de interesses em que orbitam os advogados.

De qualquer modo, por mais alto que o advogado afirme sua independência, seja em relação ao cliente, seja em relação ao público, seja em relação a autoridades, seu discurso terá por base, necessariamente, a defesa da lei e da legitimidade do sistema jurídico. Com o peito estufado de orgulho, dirá que sua independência “é condição necessária para o regular funcionamento do Estado de Direito”.[4] Diante destes termos, pode-se “virar e revirar como se queira”, não se conseguirá negar que a propalada independência do advogado é, em certo sentido, reflexo de sua vinculação radical (no sentido próprio, de raiz) aos interesses do capital.

Probidade

Talvez em nenhum outro campo, como na advocacia, possa haver um contraste tão grande entre a ética profissional e a dita “pessoal”. A rigor, o advogado até pode ser probo, mas a advocacia certamente não é. O pior é que isso nada tem a ver com as decisões individuais de seus agentes, pois, conforme vimos, a ausência de probidade decorre do próprio direito enquanto estrutura de organização de relações sociais injustas.

O que se vê é que, na prática, as normas éticas que regem o trabalho do advogado, quando lhe impõem o dever de lealdade, honestidade, boa-fé, altivez, etc., acabam tendo por destinatário quase exclusivamente seu cliente, o que muitas vezes se dá em detrimento da lei, do interesse público, do bem comum, também enfocados pelo Código de Ética e Disciplina (CED) como vinculadores éticos da conduta do advogado.

O trabalho do advogado é marcado pelo selo da parcialidade, não lhe cabendo, nos dizeres de renomado causídico, ser “juiz de seu cliente”.[5] Portanto, estando ele em meio a interesses contrapostos, é possível que seu cliente tenha traído a confiança de outra(s) pessoa(s) a fim de auferir para si vantagens. Embora não venha a confessá-lo em nenhuma tribuna, na prática, a preocupação do advogado será a de encontrar algum modo de fazer subsistir a posição do contratante, em favor de quem usará dos artifícios que estiverem a seu alcance: ocultação de documentos ou circunstâncias fáticas, manobras processuais procrastinatórias, atribuição de novos sentidos à lei, etc..

O profundo conhecimento da lei, em vez de levar a seu cumprimento, pode servir de esteio a formas de burlá-la, segundo procedimentos que deixam o infrator a salvo de eventuais sanções.

A probidade do advogado não constitui uma virtude a mais entre outras, mas é premissa ideológica necessária para o bom funcionamento do sistema jurídico. Uma demonstração cabal disso pode ser colhida nas próprias regras que versam sobre a admissão de novos advogados nos quadros da Ordem, e sobre sua exclusão, caso dela já façam parte. É o que se vê no art. 8o, § 4o, da Lei no 8.906/94 (Estatuto da advocacia e da OAB):

Lei no 8.906/94:

Art. 8o Para inscrição como advogado é necessário:

(…)

VI – idoneidade moral;

(…)

§ 4o Não atende ao requisito de idoneidade moral aquele que tiver sido condenado por crime infamante, salvo reabilitação judicial.

Aquele que pretender ingressar nos quadros da Ordem, tendo cometido crime infamante, simplesmente não será aceito. Faltar-lhe-á o requisito da idoneidade moral. E, caso o indivíduo já faça parte dos quadros da Ordem e venha a cometer crime infamante, ficará sujeito à exclusão, conforme prevê o art. 35, inciso II, c/c art. 34, inciso XXVIII do referido Estatuto.

Ao comentar esses dispositivos, PAULO LÔBO esclarece não ser infamante qualquer crime, mas apenas aquele que “provoca forte repúdio ético da comunidade geral”, podendo trazer “desprestígio para a advocacia se for admitido seu autor a exercê-la”.[6] Diz, ainda, não ser a gravidade do crime que o qualifica como infamante, e sim sua repercussão à dignidade da advocacia. Como exemplo, admite a recepção do homicida e rejeita a do estelionatário.[7]

Vê-se, assim, que não é a gravidade do crime que preocupa, mas sua repercussão à imagem da classe. Esse é o valor que se procura preservar. Nem é preciso dizer que, sob a ordem burguesa, mais cautela inspira a conduta daquele que representa ameaça ao patrimônio material do que à vida. Esse detalhe permite olhar para além do manto ideológico que encobre o direito e percebê-lo fundamentalmente como ferramenta de preservação da propriedade privada. A correspondência disso na ética dos advogados significa que, entre estes profissionais e seus clientes, crime maior não pode haver do que aquele que atenta contra o patrimônio. Tem o mesmo peso que o do sacerdote que atenta contra a fé no deus de sua religião. São condutas de afronta aos valores básicos e por isso não podem ser toleradas.

O advogado habilidoso tem a sua disposição um leque amplo e complexo de opções técnicas para fazer valer os interesses de seu cliente, todas elas legais, sendo poucos os que, antes de assumir uma causa, valem-se de algum filtro ético num sentido supralegal. Em menor número são aqueles que, devido ao constrangimento econômico, têm condições de abdicar do caso ou do cliente, a despeito de eventual desconforto ético. A maioria ou toma o jurídico por moral, ou, distinguindo entre estas esferas, afirma sua irreconciliável divisão.[8]

O advogado, quando procurado por um criminoso, não age de forma a definir qual pena lhe é imputável. Este papel é reservado ao juiz. O advogado procura livrar o cliente da pena, mesmo sabendo que o ordenamento jurídico lhe reserva alguma. Para lograr êxito em seu intento, não hesita em ocultar fatos do magistrado, ou mesmo em desvirtuá-los.

Como é sabido, o processo judicial está adstrito a formas pré-determinadas. Assim, em regra, ao proferir sentença o juiz apenas pode considerar como realidade os fatos provados. Vale o ditado jurídico de que o que não está nos autos não está no mundo (“quod non est in actis, non est in mundo”). Trata-se de uma verdade formal. Neste ponto, abre-se todo um universo à astúcia do advogado. Não necessariamente no momento do processo, mas no da constituição dos fatos que a ele eventualmente podem vir a ser submetidos. O cliente pode ser orientado, por exemplo, em sua conduta antijurídica, a simplesmente não deixar “rastros” dela, que possam ser explorados pela outra parte.

Logo, a questão não está em ser inocente, mas em parecer inocente, sendo o advogado o mais competente arquiteto dessa aparência. Conforme lembra HÉLCIO MADEIRA, “no caminho entre o reprovável e o repreensível, entre a sanção moral e a legal, escondem-se várias atitudes protegidas sob o nome da confiança e do sigilo profissional”.[9]

Como não poderia deixar de ser, o discurso oficial dos órgãos de classe dá-se no sentido contrário, sustentando que cabe ao advogado recusar o patrocínio de causas ilícitas ou antiéticas: “Não há justificativa ética, salvo no campo da defesa criminal, para a cegueira dos valores diante da defesa de interesses sabidamente aéticos ou de origem ilícita. A recusa, nesses casos, é um imperativo que engrandece o advogado”.[10] Como na prática isso não se dá, a defesa que o advogado faz do cliente termina por se estender para si mesmo. Ou seja, ao sustentar que justa é a pretensão de seu cliente, sustenta, de modo indireto, ser legítima a defesa que dela faz.

A regra deontológica que obriga o advogado a recusar a defesa de condutas repreensíveis encontra uma única exceção no CED: “É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado” (art. 21) (g.n.). O discurso ideológico que dá esteio a esse preceito é o de que todos têm direito à defesa a fim de evitar os arbítrios do Estado. Pode haver certa verdade nisso. No entanto, em termos práticos, isso implica a impunidade – ou a punição mitigada – de pessoas abonadas, capazes de contratar bons advogados, enquanto os criminosos “comuns” (a grande maioria) são levados a cumprir a pena que o sistema lhes reserva. Para ilustrar isso, nada melhor do que o depoimento de um magistrado, cujo relato reflete com autenticidade a práxis jurídica nessa área:

(…) quando se começa a examinar o sistema penal (…) o sistema penal dá margem a interpretações e valorações as mais diversas do magistrado: será que eu estou sendo justo? Isso aí é uma … uma dúvida que me parece não ter resposta! Não tem resposta! Então, muita vez me perguntei: “Não estou eu sendo simples instrumento da opressão do Estado?” “Eu estou sendo usado pelo Estado para oprimir”. Porque o sistema penal, ele tem destinatários específicos. Só não vê quem não quer! Determinadas camadas da sociedade são, digamos assim, predestinadas à condenação penal e outras jamais [frisou “jamais”] se sentarão à frente do magistrado. Porque o sistema está montado de maneira a evitar que isso ocorra. Há diversas maneiras, vistas e revistas, de fazer com que os grandes criminosos jamais se vejam nas barras dos tribunais. Esse é um peso muito grande que carrega o juiz criminal. A menos que ele, vamos dizer assim … se anestesie, mas eu nunca desejei ingressar na magistratura para ser um juiz anestesiado, sabe?[11]

A dinâmica que se verifica no processo criminal, em que basicamente os representantes da miséria humana são encarcerados e servem como exemplo de eficácia da repressão estatal aos violadores da ordem jurídica, é de certo modo reproduzida nos próprios tribunais de ética da Ordem. Se analisado com atenção, o expressivo número de representações feitas contra os advogados, por infração aos preceitos éticos, revelará também aí um perfil de classe. À primeira vista, o que se vê é o seguinte:

– em 2010, tomando-se por base o número de advogados inscritos em cada subsecção no Estado de São Paulo, a proporção de processos disciplinares alcançava, por ordem decrescente, as seguintes cifras: Marília => 32,29%, Bauru => 21,29%, Capital => 16,54%, Araraquara => 14,31% e Osasco => 9,79%;[12]

apenas em 2012, o tribunal de ética e disciplina da OAB/SP registrou, abrangendo todo o Estado, nada menos do que 10.389 novos processos disciplinares instaurados em face de seus membros, o que elevou para 24.182 o acervo de processos aguardando julgamento.[13] A principal causa de reclamação tem por objeto advogados que se apropriam de recursos de seus clientes.[14] No início de 2011, o presidente desse tribunal divulgava a existência de um acervo total de aproximadamente 46.000 processos, cerca de 20.000 deles por inadimplência;[15]

a segunda câmara do Conselho Federal da OAB, órgão responsável por julgar os recursos interpostos contra decisões proferidas nas esferas estaduais, divulgou, em 2006, uma estatística relativa ao triênio 2004/2006. Dos processos julgados em âmbito nacional, 71% “estavam relacionados a violações aos incisos XX e XXI do artigo 34 da lei federal nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB). São casos de advogados que teriam se locupletado à custa de clientes ou se recusado a prestar contas às partes sobre quantias recebidas em demandas judiciais. Dos processos examinados pela OAB Nacional por essa razão, 85% dos advogados (…) foram condenados.”. O segundo grupo de infrações mais frequentes dizia respeito a inadimplência, resultando na condenação de 87% dos representados.[16]

Considerando que boa parte dos processos disciplinares decorre da apropriação, pelos advogados, de dinheiro de seus clientes, e que a segunda causa de sanções advém da falta de pagamento de contribuições devidas ao próprio órgão de classe, não é difícil concluir que estamos falando de um grupo de infratores para os quais a questão financeira está em primeiro plano. Não só isso. As faltas revelam um nível muito baixo, de quase indigência profissional. Em sua maioria, são provavelmente profissionais que não lograram uma boa colocação no mercado de trabalho, e encontram na fragilidade de seus constituintes a oportunidade de auferir os ganhos necessários a seu sustento.

Não por acaso, a área em que o locupletamento indevido ocorre com maior frequência é justamente a trabalhista, na qual o contratante obreiro/empregado, por sua reconhecida hipossuficiência, normalmente tem menos condições de avaliar a conduta de seu patrono. Já houve épocas em que 40% dos processos disciplinares em São Paulo tinham por cerne créditos desviados de reclamações trabalhistas.[17] Também não por acaso, a Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho baixou o Provimento no 6/2000, por meio do qual procurou tornar inoperante, perante a Justiça do Trabalho, a cessão de créditos trabalhistas. Essa medida teve por finalidade vedar uma prática que se tornava comum entre alguns advogados, de assumirem a titularidade dos créditos de seus clientes. Estes últimos, desempregados e sem dinheiro, dispunham-se a aceitar uma pequena parcela da indenização cabível, antes de findo o processo.[18]

Em vez de proclamar que advogados não são confiáveis, como é voz corrente, mais correto seria dizer que, como quaisquer outros indivíduos, inserem-se eles num sistema repleto de contradições, cuja riqueza é produzida a partir de uma dinâmica exploratória e onde a repressão primordial se volta aos atentados contra a propriedade privada, propriedade esta mais acessível a uma minoria. O diferencial dos advogados em relação às demais pessoas não é serem eles mais desonestos; o que são é mais informados sobre as formas de burlar a repressão do sistema jurídico, evitando serem “pegos”. Tal fator pode ter, mais do que qualquer outro, peso considerável no índice e no perfil das infrações por eles cometidas.

Como muitas outras formas do capitalismo, aqui a probidade apresenta uma faceta concreta e outra ideológica. Considerada a faceta concreta, pode-se dizer que, em média, a probidade do advogado traz a mesma qualidade de sua justiça: é parcial, tendo por centro o seu cliente. Para que essa prática possa se sustentar, entra em cena, como vimos, a faceta ideológica. Sem ela, as contradições do sistema ficariam muito mais visíveis, de tal sorte que a probidade na advocacia tem praticamente o mesmo peso simbólico que a igualdade formal num mundo de profundas desigualdades. Frise-se simbólico.

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É curioso como as coisas se dão no mundo dos homens: ao mesmo tempo em que a forma-jurídica é tributária da forma-mercadoria, poucas coisas são mais aversivas à classe dos advogados do que sua associação às pessoas do comércio.[19] Neste sentido, o discurso institucional de classe, voltado a regular as formas que podem ser empregadas por seus membros para atrair clientela, tem por cerne o cuidado declarado em evitar “qualquer aspecto mercantilista”. Aliás, “atrair clientela” também é expressão maldita nos tribunais de ética da Ordem.

Sendo assim, como pode um advogado se manter? De que maneira alguém que precise de serviços jurídicos pode chegar a um advogado? Não é paradoxal que, num mundo onde o plexo de direitos é cada vez mais amplo, os profissionais responsáveis por buscar a efetividade destes direitos junto ao Estado não possam se expor? Que interesses estariam sendo velados por cuidados dessa natureza, em plena era de comunicação total?

O rigor da Ordem dos Advogados do Brasil neste quesito é causa de fortes tensões no meio profissional, havendo poucos sinais de mudança por parte da instituição. Cedo ou tarde, será ela atropelada pela marcha histórica.

Enquanto a OAB se empenha em manter o “glamour” da profissão, postura repleta de significado ideológico, como já examinado, a dinâmica social representa um desafio crescente e constante a isso. Na práxis social, os serviços jurídicos vêm sendo tratados como outros quaisquer. O enorme esforço institucional para associá-los a uma questão de justiça – e, nessa linha, a algo que requer um olhar atento e específico, possível apenas numa análise casuística –, demonstra claro desgaste.

Assim como a universalização do circuito da mercadoria levou à universalização dos direitos, a massificação dos mercados levou a direitos massificados. A consequência óbvia e direta disso haveria de ser as demandas judiciais de massa, a que correspondem serviços jurídicos de mesma envergadura. A advocacia tradicional não está preparada para isso.

No entanto, assim como na esfera da produção os capitalistas precisam inovar o tempo todo para garantirem espaço frente à concorrência – e faz tempo que esse movimento não decorre de deliberações pessoais, sendo impulsionado pelo conjunto das forças sociais de produção –, de igual modo os advogados são obrigados, por um processo de concorrência mútua, a identificar e explorar as novas oportunidades de prestação de serviços jurídicos. É questão de sobrevivência. E essa sobrevivência, num mercado saturado de profissionais e cada vez mais competitivo, força a adoção de modernas modalidades de divulgação dos serviços. Afinal, conforme lembram PHILIP KOTLER e PAUL BLOOM, “A teoria econômica nos diz que, quando a oferta excede a demanda, ocorre concorrência mais vigorosa em busca de clientes. A demanda insuficiente para seus serviços está levando muitos profissionais a intensificar seus esforços visando a atrair clientes”.[20]

O enorme empenho da OAB em vedar aos advogados a utilização de práticas mercantis vai contra essa tendência inexorável da marcha histórica, e não há aí nenhum juízo de cunho moral. Trata-se da mera constatação de uma tendência das formas sociais.

Em termos concretos, verifica-se que as posturas anacrônicas da OAB são desafiadas pela própria prática advocatícia em países da comunidade europeia e da América do Norte. Isso desloca o eixo de preocupação da Ordem para a concorrência que seus membros teriam de enfrentar junto a escritórios internacionais. Contudo, trata-se de um conflito envolvendo as grandes forças da advocacia, que têm como clientes grandes corporações empresariais. Logo, o discurso que parece ter por foco os pequenos escritórios é meramente ideológico, não refletindo a preocupação real dos representantes de classe.

Diante de tamanho rigor, cumpre lembrar que na dinâmica social muitas proibições costumam gerar formas inconfessáveis de contorná-las. Na área trabalhista, por exemplo, é comum ver intermediários oferecendo serviços advocatícios em praças públicas. São os chamados “paqueiros”, alusão aos cães adestrados para a caça de pacas, cuja atividade consiste em levar o caçador a elas. Evidentemente, não há na placa nenhum dado que permita identificar o anunciante. Os interessados são levados a ele pelo “paqueiro”. Em outras áreas, não é raro os advogados pagarem comissões pela indicação de causas. O que são essas práticas senão a incorporação de técnicas comerciais de vendas?

Por outro lado, e como não poderia deixar de ser, a proibição que vale “para todos” não surte efeitos iguais entre os advogados. Os grandes escritórios sempre disporão de uma visibilidade natural maior, em detrimento dos pequenos ou dos profissionais novatos. É notória a prática social de advogados que frequentam clubes ou eventos sociais com a preocupação de firmarem contatos com potenciais clientes. Nessa linha, tornaram-se proverbiais os que atuam em “portas de cadeia”. Primos destes costumam aparecer junto a familiares das vítimas de grandes acidentes para, sutilmente ou não, oferecerem seus serviços.[21] A diferença dos pequenos em relação aos grandes está mais no grau de sutileza do que propriamente na qualidade moral de suas condutas.

Portanto, para muitos advogados, é indisfarçável a existência de um “alto clero” e um “baixo clero” na composição da classe. Em termos institucionais, isso é confirmado por normas cuja finalidade é tão somente a de proteger os interesses dos grandes escritórios, como a reiterada recentemente pela seção paulista da OAB:

CAPTAÇÃO DE CLIENTELA E CONCORRÊNCIA DESLEAL – SOCIEDADE DE ADVOGADOS – SÓCIO QUE PRETENDE DEIXAR A SOCIEDADE – INDEPENDENTEMENTE DA FORMA PELA QUAL SE DÊ A RETIRADA DO ADVOGADO, HÁ A NECESSIDADE DE EXPRESSA LIBERAÇÃO DA SOCIEDADE PARA ATENDIMENTO DE CLIENTES DESTA, DENTRO DO PRAZO DE DOIS ANOS, SOB PENA DE OFENSA AO DISPOSTO NA RESOLUÇÃO No 16/98.[22] Caso o sócio pretenda deixar a sociedade de advogados a que pertença, só poderá atender os clientes dessa sociedade, dentro do prazo de dois anos, caso haja expressa liberação da sociedade para tanto, pouco importando se a retirada dar-se-á por ato unilateral ou se o cliente o procurar ou foi captado pelo advogado. Proc. E-3.932/2010 – v.m., em 18/11/2010, do parecer e ementa do Rel. Dr. FÁBIO PLANTULLI, com declaração de voto dos julgadores, Drs. CLÁUDIO FELIPPE ZALAF, FÁBIO DE SOUZA RAMACCIOTTI, FLÁVIO PEREIRA LIMA e LUIZ ANTONIO GAMBELLI, Rev. Dr. LUIZ FRANCISCO TORQUATO AVOLIO – Presidente Dr. CARLOS JOSÉ SANTOS DA SILVA.

Como verificamos, num mundo mercantilizado em todas as suas esferas, os advogados, como quaisquer outras categorias destituídas de capital, transformaram-se em trabalhadores assalariados. O fato de muitos o fazerem de forma autônoma, sem vínculo jurídico de subordinação à parte contratante, não muda nada. Tem mais peso a necessidade do advogado de prestar serviços para sobreviver, e a falta de opções a isso, do que a qualidade jurídica de sua contratação. Nesse ponto, o CED cria curioso paradoxo: os advogados dependem da divulgação de seus serviços para angariar nova clientela, mas não podem dispor das técnicas corriqueiras de propaganda.

Ora, se a OAB goza da prerrogativa da autorregulação, e se essas proibições emanam de seus próprios membros, numa sociedade de classes é inevitável pensar que isso se dá em benefício de alguns e em detrimento de outros. Não é possível, portanto, examinar os aspectos éticos da advocacia sem levar em conta seu entrelaçamento com as relações sociais de produção capitalista. Caso contrário, ter-se-á uma ética livresca, abstrata, sem qualquer compromisso com a realidade de vida dos homens. Existe esse tipo de “ética”? Ora, paradoxalmente, é o que mais se produz…

Como veremos a seguir, o sistema precisa de todo um aparato ideológico que lhe dê sustentação. Sem a ideologia, as contradições sociais apareceriam destituídas de qualquer disfarce, sendo convite permanente para a confrontação violenta entre exploradores e explorados. O direito ao mesmo tempo constitui e é constituído pelo aparato ideológico, alimentando e sendo alimentado por suas contradições. Trata-se, portanto, de um tema que não se pode deixar de abordar. Munidos de mais essa ferramenta conceitual, teremos melhores condições de refletir sobre eventual solução aos problemas suscitados, se é que pode haver alguma.


NOTAS

[1] Introdução ao estudo do direito, 4a edição, Editora Atlas S/A, São Paulo (SP), 2013, p. 191.

[2] LÔBO, Paulo. Comentários ao estatuto da advocacia e da OAB, 5a edição, Editora Saraiva, São Paulo (SP), 2009, p. 142.

[3]   SIMON, William H.. A Prática da Justiça, tradução de Luís Carlos Borges, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo (SP), 2001, pp. 2-3.

[4] LÔBO, Paulo. Op. cit., p. 182.

[5] Márcio Thomaz Bastos, advogado criminalista e ex-ministro da justiça dos anos de 2003 a 2007, do governo de Lula, publicou, em 14/06/2012, artigo na coluna de “Tendências/Debates”, do jornal Folha de São Paulo, intitulado “Serei eu o juiz de meu cliente?” Nesse artigo, Bastos respondia às fortes repercussões sociais de ter ele assumido a defesa criminal de Carlos Augusto Ramos (o “Carlinhos Cachoeira”), acusado de estar à frente de uma organização criminosa de enormes proporções, envolvendo a estrutura político-administrativa do Estado brasileiro, onde desenvolveu formas de sangrar os cofres públicos. À época, a mídia divulgou que Bastos teria recebido de seu cliente honorários da ordem de R$ 15 milhões, o que também gerou indignação popular, dada a suspeita da origem ilícita desse numerário. As principais entidades de representação dos advogados, como OAB/SP, IASP e AASP, manifestaram-se formalmente em defesa da posição de Bastos como profissional. O artigo citado está disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/48600-serei-eu-o-juiz-do-meu-cliente.shtml (último acesso em 07/12/2013).

[6] Op. cit., p. 96.

[7] Idem, ibidem, p. 231.

[8] Ao apontar para a disseminação do sentimento de que “existe uma irreconciliável divisão entre o legal e o moral”, RENATO NALINI diz que as carreiras jurídicas atravessam um momento trágico, com abalo na “fé pública na lei”, in Ética geral e profissional, Revista dos Tribunais, São Paulo (SP), 2013, p. 581. Tal ponderação revela, à evidência, o papel ideológico da ideia de unidade entre o legal e o moral, de modo a manter uma “fé pública” na lei.

[9] História da advocacia: origens da profissão de advogado no direito romano, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo (SP), 2002, p. 73.

[10] LÔBO, Paulo. Op. cit., p. 183.

[11] Essa fala foi proferida por magistrado do tribunal de justiça do Estado de São Paulo, em entrevista concedida a mim, no âmbito de pesquisa de campo para realização de dissertação de mestrado junto à FDUSP, sob orientação da Profa Lídia Reis de Almeida Prado. Seu inteiro teor encontra-se publicado in KHALIL, Antoin Abou. A personalidade do juiz e a condução do processo, LTr Editora Ltda., São Paulo (SP), 2012 (o trecho em questão encontra-se à p. 229).

[12] Fonte: http://www.oabsp.org.br/noticias/2011/04/27/6908 (último acesso em 29/11/2013)

[13] Dados divulgados pela corregedoria do TED da OAB/SP. Destaque-se que a publicação dessas informações passou a ocorrer tão somente a partir de 2011. Fonte: http://www.oabsp.org.br/tribunal-de-etica-e-disciplina/corregedoria/ (último acesso em 29/11/2013)

[14] Fonte: http://www.conjur.com.br/2012-jun-24/suspensoes-advogados-sao-paulo-dobra-expulsoes-diminuem (último acesso em 05/12/2013) Nesse mesma linha, registra-se que ao longo de 2007, 90% dos processos que tramitaram perante o tribunal de ética e disciplina da OAB do Pará (PA) corresponderam a “representações de clientes lesados por seus advogados, ora por apropriação indébita, ora por conduta incompatível ou por outras infrações, como a falta de prestação de contas e cobrança abusiva de honorários” – Fonte: http://www.orm.com.br/amazoniajornal/interna/default.asp?modulo=222&codigo=339756 (último acesso em 29/11/2013)

[15] Fonte: http://www.oabsp.org.br/noticias/2011/04/27/6908 (último acesso em 05/12/2013)

[16] Fonte: http://www.oab.org.br/util/print/8652?print=Noticia (último acesso em 29/11/2013)

[17] Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/_2001/2005/br2005_1.htm (último acesso em 29/11/2013)

[18] Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/_2001/2005/br2005_1.htm (último acesso em 29/11/2013)

[19] O esforço para distinguir o advogado do mercador chega ao ponto de se impedir o advogado de cobrar, atuando em causa própria, seus honorários do cliente inadimplente. O código de ética obriga-o a constituir um colega que lhe faça as vezes (CED, Art. 43).

[20] Marketing para serviços profissionais, tradução de Auriphebo Berrance Simões, Editora Atlas S/A, São Paulo (SP), 1988, p. 22.

[21] HAZARD Jr., Geoffrey C.; DONDI, Angelo. Ética jurídica: um estudo comparativo, tradução de Luiz Gonzaga de Carvalho Neto, Editora WMF Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo (SP), 2011, p. 190. Os mesmos autores mencionam, ainda, que “Outra artimanha diz respeito a advogados que vão a asilos de aposentados procurando idosos com bens; em seguida, esses advogados se autodesignam como testamenteiros (inventariantes) dos bens ou até beneficiários do testamento. Essas condutas reprováveis são proibidas em todo o mundo, mas as violações podem passar despercebidas. Praticamente nenhum advogado competente pratica esse tipo apelativo de conduta para angariar clientes. Os profissionais competentes preferem as formas clássicas, como ir jogar golfe com potenciais clientes, por exemplo.” Op. cit., p. 191.

[22] A resolução 16/98, referida nesta ementa, dispõe: “Advogado desligado de escritório de advocacia ou de sociedade de advogados, de que tenha participado como empregado, associado, sócio ou estagiário, deve abster-se de patrocinar causas de clientes ou ex-clientes desses escritórios, pelo prazo de dois anos, salvo mediante liberação formal pelo escritório de origem, por caracterizar concorrência desleal, captação indevida de clientela e de influência alheia, em benefício próprio.”

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1 comentário em “A ética na advocacia: uma abordagem crítica”

  1. Excelente texto,as nuances da investigação de cunho marxista no campo do direito ainda são bastante amplas para serem exploradas, ainda não tinha pensado nisso,apesar de parecer bem concreto para quem está inserido na prática jurídica ou convive nesses ambientes.A propósito, de quem é essa obra de arte acima do texto?

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