Por Daniel Fabre
A crítica da ideologia jurídica é um elemento central do marxismo. O direito tem sua fundamentação e prática vinculadas à ideia da vontade, que é estendida a todos os homens como condição de sua capacidade jurídica, para a prática dos atos ordinários da vida. Todos, sem exceção, são interpelados como sujeitos de direito, todos, sem exceção, são exortados a manifestar sua Vontade, esse elemento essencial do processo de trocas generalizadas, que caracteriza o capitalismo.
Segundo a célebre passagem de Freud, a revolução copernicana foi a primeira das ondas científicas, que desde a antiguidade, abalaram a imagem egocêntrica e vaidosa do homem. Nessa o astrônomo, através de seu instrumento técnico, pôde nos demonstrar como os astros não giram em torno de nós, mas nós em torno deles. Charles Darwin por sua vez, rompeu com a imagem do homem como um animal divino, separado dos demais e criado especialmente por deus, e impôs à vaidade humana a condição de animal inserido em um largo processo de evolução genética, cujas leis não se diferem das que regem todos os outros seres vivos. A ele mesmo, Freud se reservara um lugar na esteira histórica das revoluções cientificas, com a ruptura da ideia de que o que dizemos é produto de nossa vontade consciente, descobrindo nas profundezas das mentes histéricas o continente inconsciente, que atua na obscuridade e que comanda toda a abrangência de nossas vidas, diuturnamente.
E porque não inserir neste rol Karl Marx? Suas descobertas não vão de encontro à imagem egocêntrica e vaidosa do homem? Foi Karl Marx quem rompeu com a ideia de que os homens fazem a história, para dizer que se a fazem, é somente através de condições as quais não podem escolher. Dito de outra maneira foi ele quem rompeu com a veleidade de dizer que o homem faz a História, para dizer que as massas a fazem, através da luta de classes, que é seu motor e fundamento. É também, o que, de certa forma, tentou dizer Althusser com a ideia de anti-humanismo teórico em Marx.[1] Ou seja, do caráter estrutural da análise marxista e de seu descompromisso com uma imagem natural de humanidade a ser defendida. Pois a descoberta revolucionária de Marx ia para além de um humanismo, característico, por exemplo, do socialismo francês. A teoria marxista é cientifica e descobriu algo difícil de ser digerido, sobretudo pelo humanismo europeu de origem teológica-cristã: a ciência das formações sociais na História.
Não seria impróprio dizer que em toda a obra cientifica de Marx, especialmente em O Capital, todo o combate teórico se dá contra o direito e sua correspondente ideologia jurídica[2]. A crítica das representações ideológicas do direito, baseada na compreensão científica de suas funções essenciais à consecução do processo do capital e da luta de classes, é elemento central da ciência das formações sociais de Marx. O Direito tradicional, fundado na subjetividade jurídica, na liberdade e igualdade dos sujeitos, que é sua origem e destino, de forma alguma rompe com essa imagem clássica do homem egocêntrico, vaidoso[3], amplamente baseada na ideia de vontade consciente racional. Muito pelo contrário, tem toda sua fundamentação e prática vinculadas à ideia da vontade, estendida a todos os homens, desde o nascituro, até ao defunto, como condição de sua capacidade jurídica de fato. Todos, sem exceção, são interpelados como sujeitos de direito, todos, sem exceção, são exortados a manifestar sua Vontade, elemento essencial para um processo de trocas generalizadas.[4] Em outras palavras: Seja feita vossa Vontade, assim na terra da mercadoria, como no céu da ideologia.
A forma sujeito de direito é de fato o objeto determinante para a correta compreensão das imbricadas relações de produção capitalistas. É precisamente no âmbito do sujeito de direito – o anverso da mercadoria – que se torna possível a forma específica do modo de produção contemporâneo.
Evgeni Pachukanis, que foi o primeiro jurista (dentre poucos) a traduzir a descoberta econômica e filosófica de Marx para a especificidade do direito, aponta acertadamente a correlação entre a forma mercadoria e a forma jurídica. As descobertas marxistas a respeito da lei do valor e de suas consequências para o mundo capitalista deram ensejo a uma revolução teórica no direito, gerando as bases para uma teoria materialista do direito e do Estado.
Ao revelar que a forma jurídica é uma forma derivada da mercadoria, Pachukanis pode expor toda a essência do direito: intimamente ligado à circulação das mercadorias, através da manifestação do sujeito de direito, o universo jurídico garante a reprodução da sociedade capitalista. O sujeito de direito, ou o sujeito do direito, consciente, racional, é o “portador de mercadorias”, o suporte para que a circulação destas se dê de forma generalizada. É aquele que tudo mantém ai, em troca, cuja existência está profundamente relacionada com a reprodução das coisas como são, para que o enredo do capital possa fluir desimpedido, na eterna permuta do dinheiro.
O sujeito de direito, ao contrário do que vulgarmente poderíamos compreender, não é mera consequência da estrutura capitalista. Ele é precisamente o núcleo da reprodução desta estrutura. A despeito do que quer o juspositivismo, o sujeito de direito não é uma característica natural do homem, valida desde sempre e para sempre. O sujeito de direito é um produto especifico de nossa formação social, sendo núcleo duro da reprodução desta mesma sociedade.
É necessário também compreender as consequências “psíquicas” do sujeito de direito, sua influência na ordem simbólica dos indivíduos, em sua consciência. A obra de Louis Althusser apresenta as bases de uma Teoria da Ideologia, em intima relação com o inconsciente. A ideologia, em seu aspecto superestrutural e eterno, tem seu funcionamento vinculado a interpelação e constituição dos indivíduos enquanto sujeitos, sujeitos submetidos à lei ideológica própria de seu tempo, dando ao indivíduo um lugar simbólico para ser, um nome, um destino para cumprir. A complexidade mecânica das formações sociais não pode ser vista sem levar em conta o “lubrificante” ideológico que lhe permite se reproduzir. Pois é no nível dos sujeitos, no nível ideológico, em que se passa tudo. É nos eventos cotidianos de suas vidas, em suas práticas e rituais, que tudo se reproduz e se mantém como esta.
Não se quer demonstrar que a análise do direito tradicional (juspositivista) é equivocada porque se baseia em fundamentos pré-científicos, mas demonstrar, justamente, como esses fundamentos pré-científicos atuam precisamente nas implicações ideológicas do sujeito de direito, no funcionamento da reprodução da produção e de suas relações. A vontade consciente é tanto o núcleo duro da ideologia jurídica, quanto elemento real e indispensável à circulação de mercadorias no capitalismo, esse é o ponto. Dessa forma, a análise da categoria de sujeito de direito – simples e abstrata – leva a uma análise complexa e concreta da realidade social, conforme os mandamentos do método materialista.
A análise da prática forense, essa incrível “prática em abstrato”[5], possibilita avançar com segurança sobre a revolução teórica que Pachukanis realiza no direito. Revolução esta, que por sua vez, auxilia na compreensão dos avanços propostos por Althusser, sobretudo acerca das consequências ideológicas do sujeito de direito, assim como de suas relações no âmbito da superestrutura.
Se o comunismo pleiteia um novo tipo de relações humanas, há, por certo, a necessidade de uma transformação radical da sociabilidade que atinja a base material e econômica da sociedade, reestruturando toda a formação social capitalista, que está lastreada na lei do valor. É nesse sentido que uma compreensão correta da forma jurídica e de suas consequências ideológicas pode contribuir com a luta das classes oprimidas em busca de uma nova sociabilidade sem classes. Essa é, pelo menos, a nossa hipótese comunista, ou, porque não dizer, nossa aposta comunista.
Não se deve acreditar em nenhuma solução que não atinja o nível cotidiano da vida dos indivíduos, que não lhes modifique a vida. Pois é precisamente nesse nível em que as coisas são reproduzidas e ganham vida. É preciso então, atingir os sujeitos e sua constelação ideológica, é preciso atingir sua intimidade, suas ideias. Pois, de certo, não há coletivo, não há ontologicamente um ser social, o que há são indivíduos e o Real contingente que surge de suas relações. Real que lhes interpela constitutivamente, e que edifica o todo estruturado social.
[1]Frisa-se especialmente o adjetivo, pois é justamente a negligência de suas consequências em que reside, infelizmente, as inúmeras más interpretações que se fazem deste importante ensinamento.
[2] NAVES. Márcio Bilharinho. A Questão do direito em Marx. São Paulo, Outras Expressões, 2014. p. 9.
[3] Para não adiantarmos seu caráter tipicamente ideológico.
[4] PACHUKANIS, Evgeni. Teoria Geral do Estado e Marxismo. São Paulo, Editora Academica, 1988. p. 43.
[5] EDELMAN, Bernard. O Direito captado pela Fotografia. Coimbra, Centelho, 1976. p. 26.
3 comentários em “Seja feita vossa Vontade!”
Prezado Editor do LavraPalavra,
Parabéns pelos vossos posts! Espero que a qualidade permaneça alta, com assuntos que abordam os mais variados temas sob a perspectiva marxista. Tenho usado os textos – respeitando o sistema de citação, claro – em minhas aulas e reflexões sobre a literatura a sociedade. Dessa forma, meus alunos também têm se beneficiado do vosso trabalho.
Vida longa ao blog!
Prof. dr. Anderson F. Brandão.
Muito obrigado pelas palavras Prof. Anderson! É uma honra para nós do LavraPalavra poder contribuir suas aulas e reflexões, sentimos que assim, o blog cumpre seu papel!
Vida longa!
Aproveito para dizer que estamos abertos a contribuições, fique a vontade para nos enviar algo.
Atenciosamente, saudações.