Por Vincent Emanuele, via Counter Punch, traduzida por Ramon Frias
Vincent Emanuele, jornalista da TeleSur, entrevista o famoso geografo David Harvey sobre seu novo livro e temas como urbanismo, marxismo e os recentes desdobramentos do capitalismo global.
Emanuele: Você começa seu livro Cidades Rebeldes: Do Direito à Cidade à Revolução Urbana, descrevendo sua experiência em Paris durante os anos 70: “Prédios gigantes, estradas, habitações públicas apáticas e mercantilização monopolizada nas ruas ameaçando engolir a Paris-antiga…Paris dos anos 60 em diante estava claramente no meio de uma crise existencial”. Em 1967, Henry Lefebvre escreveu seu notório ensaio: “Sobre o Direito à Cidade” (“On the Right to the City.”). Você poderia falar sobre esse período e o ímpeto para escrever Cidades Rebeldes?
Harvey: No mundo inteiro, os anos 60 são frequentemente vistos, historicamente, como um período de crise urbana. Nos Estados unidos, por exemplo, a década de 60 foi uma época em que muitas cidades centrais caíram em chamas. Houve revoltas e movimentos revolucionários em cidades como Los Angeles, Detroit e, logicamente, após o assassinato do Dr. Martin Luther King em 1968 – por volta de 120 cidades americanas foram infligidas por agitações e revoltas de menores em enormes proporções. Eu digo nos Estados Unidos, pois o que de fato estava acontecendo era que a cidade estava sendo modernizada. Estava sendo modernizada ao redor do automóvel; estava sendo modernizada ao redor dos subúrbios. Agora, a Cidade Antiga ou o que havia sido o centro político, econômico e cultural da cidade pelos anos 40 e 50, estava então sendo posto de lado. Lembre-se, estas tendências foram acontecendo por todo o mundo capitalista avançado. Logo, não apenas nos Estados Unidos. Houve sérios problemas na Inglaterra e na França, onde um velho estilo de vida estava sendo desmantelado – um estilo de vida do qual não creio que ninguém deva ser nostálgico, mas este velho estilo de vida estava sendo empurrado e substituído por um novo baseado na comercialização, propriedade, especulação imobiliária, construção de rodovias, no automóvel, na suburbanização, e com todas essas mudanças vimos o aumento da desigualdade e mal-estar social.
Dependendo de onde se estivesse no momento, estas eram estritamente desigualdades de classe ou eram desigualdades de classe focados em grupos minoritários específicos. Por exemplo, obviamente, nos Estados Unidos, foi a comunidade afro-americana instalada nos centros das cidades que tiveram muito pouco em termos de oportunidades de emprego e recursos. Então, os anos 60 foram vistos como uma crise urbana. Se você voltar e olhar à todos os comitês dos anos 60 que estavam às voltas com o que fazer quanto a crise urbana, houveram programas governamentais sendo implementados, da Inglaterra à França, e também nos Estados Unidos. Similarmente, todos estavam tentando endereçar essa “crise urbana”.
Eu achei esse tópico fascinante para estudar e uma experiência traumática para vivenciar. Você sabe, estes países que foram tornando-se mais e mais prósperos foram deixando pessoas para trás, as quais estavam sendo isoladas em guetos urbanizados e tratadas como seres humanos não existentes. A crise dos anos 60 foi crucial, e Lefebvre a entendeu muito bem. Ele acreditava que o povo em áreas urbanas deveria ter voz para decidir com o que essas áreas deveriam se parecer, e que tipo de processo de urbanização deveria ocorrer. Ao mesmo tempo, aqueles que resistiram desejaram reverter a onda de especulação imobiliária que estava começando a engolir áreas urbanas por todos os países de capitalismo industrializado.
Emanuele: Você escreve, “a pergunta sobre que tipo de cidade nós queremos não pode ser divorciada da pergunta sobre que tipo de pessoas nós queremos ser, que tipos de relações sociais nós procuramos, que relações com a natureza nós apreciamos, que estilo de vida desejamos, ou que valores estéticos nós mantemos”. Você também menciona a Comuna de Paris como um evento histórico para analisar e possivelmente nos ajudar a conceitualizar o que o “direito à cidade” pode ser. Teriam outros exemplos históricos que deveríamos refletir sobre?
Harvey: O tipo de cidade que nós desejamos construir deveria refletir nossos desejos e necessidades pessoais. Nosso ambiente social, cultural, econômico, político e urbano é muito importante. Como nós desenvolvemos essas atitudes e tendências? Isso é importante. Então, morando em uma cidade como Nova York, você tem que viajar pela cidade, transportar-se, e lidar com outras pessoas de uma maneira bem peculiar. Como todos sabem, nova-iorquinos tendem a ser frios e abruptos uns com os outros. Isso não quer dizer que eles não se ajudem, mas para lidar com a correria diária e a quantidade brutal de pessoas nas ruas e nos metrôs, você deve negociar a cidade de uma certa maneira. Pela mesma razão, viver em um condomínio fechado no subúrbio leva a determinadas maneiras de pensar sobre no que a vida diária deva consistir. E essas coisas evoluem para diferentes atitudes políticas, o que frequentemente inclui manter certas comunidades fechadas e exclusivas, ao preço do que acontece na periferia. Nós criamos essas atitudes políticas e ambientais.
Respostas revolucionárias ao ambiente urbano têm vários precedentes históricos. Por exemplo, em Paris em 1871, havia um tipo de atitude onde as pessoas queriam um novo tipo de urbanização; queriam tipos diferentes de pessoas morando lá; era uma reação à classe de cima, o desenvolvimento consumidor-especulativo que ocorria no momento. Então, houve uma insurreição que demandava tipos diferentes de relações; relações sociais, relações de gênero e relações de classe. Assim, se você quiser construir uma cidade onde mulheres se sintam confortáveis, por exemplo, você construiria uma cidade muito diferente das que nós tipicamente temos. Todas essas questões estão amarradas na questão de que tipo de cidade nós queremos morar. Não podemos divorciar isso do tipo de pessoas que queremos ser; que tipo de relações de gênero, que tipo de relações de classe e similares. A mim, o projeto de construir a cidade de um jeito diferente, com uma filosofia diferente, com intuitos diferentes, é uma ideia muito importante. Ocasionalmente, essa ideia foi retomada em movimentos revolucionários como a Comuna de Paris. E tem muito mais exemplos que poderíamos citar, como a Greve Geral em Seattle por volta de 1919. A cidade inteira foi tomada pelas pessoas, e eles começaram a montar estruturas comunais.
Em Buenos Aires, essas mesmas coisas estiveram acontecendo em 2001. Em El Alto, 2003, houve outro tipo de erupção. Na França, temos visto as áreas suburbanas dissolvendo-se em revoltas e movimentos revolucionários pelos últimos 20-30 anos. Na Inglaterra, temos visto esses tipos de revoltas e insurreições agora mais uma vez, que são, na verdade, um protesto contra a maneira como a vida diária está sendo vivida. Para ser claro, movimentos revolucionários em áreas urbanas desenvolvem-se um tanto devagar. Não se muda a cidade inteira da noite pro dia. O que vemos, no entanto, é uma transformação no estilo de urbanização no período neoliberal. Antes, digamos meados dos anos 70, a urbanização era caracterizada por protestos; houve muita segregação; e a resposta a muitos desses protestos foi, com efeito, re-projetar a cidade de acordo com esses princípios neoliberais de autossuficiência, responsabilidade pessoal, competição, a fragmentação da cidade em condomínios fechados e espaços privilegiados.
Então, para mim, o reprojetamento da cidade é algo à longo prazo. Felizmente, as pessoas são forçadas a pensar sobre alguma forma de transformação revolucionária, que ocorre durante um determinado ponto no tempo, como em Buenos Aires em 2001 onde houve movimentos que levaram a aquisições de fábricas e mantiveram assembleias. Eles foram capazes de ditar, em muitas formas, como a cidade iria ser organizada e começaram a fazer sérias perguntas: Quem queremos ser? Como nos devemos nos relacionar com a natureza? Que tipo de urbanização nós queremos?
Emanuele: Você poderia nos falar sobre alguns desses termos? Por exemplo, você poderia discutir a suburbanização como um resultado de “uma maneira de absorver produto excedente e assim resolver o problema de absorção do capital excedente?” Em outras palavras, por que nossas cidades têm sido esvaziadas dessa determinada maneira? A questão é particularmente presciente para os nossos ouvintes locais na “região do cinturão de ferrugem”, que foi completamente devastada pelos últimos 30-40 anos.
Harvey: Novamente, isso é um processo longo. Deixe-me retornar aos anos 30 e a Grande Depressão. Vamos fazer a pergunta: Como saímos da Grande Depressão? E qual foi o problema durante a Grande Depressão? Um dos grandes problemas durante a Grande Depressão foi um mercado fraco. Capacidade produtiva estava lá. Mas não havia os fluxos de entrada para varrer tudo, se você preferir. Então, havia um excedente de capital por lá sem nenhum lugar para ir. Agora, exatamente por todo os anos 30 houve tentativas frenéticas de testar e encontrar um meio de gastar esse capital excedente. Você tinha coisas como os programas de trabalho de Roosevelt. Você sabe, construção de estradas e coisas do tipo. Nomeadamente, para varrer o capital excedente e trabalho excedente que havia por lá no momento.
Nenhuma solução real foi encontrada nos anos 30 até a Segunda Guerra aparecer. Aí, todo excedente foi imediatamente absorvido nos esforços de guerra – produção de munições e assim por diante. Muitas pessoas se alistaram; muita mão-de-obra foi absorvida dessa maneira. Logo, a Segunda Guerra Mundial, superficialmente, resolveu o problema da Grande Depressão. Aí você tinha a questão para depois de 1945: O que aconteceria depois de terminada a guerra? O que aconteceria a todo esse capital extra? Bem, aí você tem a suburbanização dos estados Unidos. Na verdade, a construção de subúrbios, nesse momento era a construção de subúrbios afluentes, tornou-se o meio no qual o capital excedente foi varrido. Primeiro construíram o sistema de estradas; aí todos tinham que ter um automóvel; aí, a casa suburbana se tornou uma espécie de “castelo” para a população da classe trabalhadora. Tudo isso aconteceu ao deixar para trás as comunidades empobrecidas dos centros das cidades. Esse foi o padrão de urbanização que ocorreu nos anos 50 e 60.
Os excedentes, que o capital sempre produz, funcionam assim: no início do dia, capitalistas começam com uma certa quantia de dinheiro. No fim do dia, eles acabam com mais dinheiro. Surge a questão: o que capitalistas fazem com o seu dinheiro no fim do dia? Bem, eles têm de encontrar um lugar para investi-lo – expansão. Capitalistas sempre têm esse problema: Onde está a expansão e as oportunidades para fazer mais dinheiro? Uma das grandes oportunidades de expansão depois da Segunda Guerra foi a urbanização. Houve, outras oportunidades como o Complexo Industrial Militar, e assim por diante. Mas foi principalmente através da suburbanização que os excedentes foram absorvidos. Agora, isso criou muitos problemas, como a crise urbana do fim dos 60. Ai você tem uma situação onde o capital na verdade volta às cidades centrais e subsequentemente reocupa os centros das cidades. Isso reverte o padrão. Logo, mais e mais, as comunidades empobrecidas são expulsas às periferias enquanto populações abastadas voltam aos centros das cidades.
Por exemplo, em Nova York, por volta de 1970, você poderia conseguir um lugar no meio de Manhattan por quase nada porque havia um tremendo excedente de propriedade; ninguém queria viver na cidade. Mas tudo isso mudou: a cidade se tornou o centro do consumismo e finanças. Como você mencionou, custa tanto para abrigar seu carro quanto uma pessoa. Essa é a transformação que ocorreu. Em suma, esse processo de urbanização acontece por todo os anos 40, alongando-se pelos 60. Aí, você tem uma reurbanização acontecendo no período que segue os anos 70. Depois dos anos 70, os contros das cidades tornam-se extremamente prósperos. De fato, Manhatan passou de um lugar acessível nos anos 70 a um vasto condomínio fechado nos anos 2000 para os extremamente ricos e poderosos. Nesse meio tempo, os empobrecidos, frequentemente comunidades de minorias, são expulsas à periferia da cidade. Ou, no caso, de Nova Iorque, pessoas fugiram para pequenas cidades mais ao norte de Nova Iorque, ou Pensilvânia.
Esse padrão geral de urbanização tem a ver com a questão de onde você encontra oportunidades de lucro para investir capital. Como vimos pelos anos, têm faltado oportunidades de lucro nos últimos 15 anos ou mais. Por esse tempo, uma enorme quantidade de dinheiro foi regada no mercado imobiliária, construção imobiliária e todo o resto. Aí, vimos o que aconteceu no Outono de 2008, quando a bolha imobiliária estorou. Então, você olha a urbanização como um produto da procura por meios de absorver a produtividade crescente e saída de uma sociedade capitalista bastante dinâmica que precisa crescer à taxa de 3% de crescimento composto se ela for sobreviver. Essa é a questão para mim: como iremos absorver esse 3% de crescimento composto pelos anos que vem para evitar os dilemas da urbanização/suburbanização do passado? É interessante conceitualizar como isso seria.
Emanuele: Você fala sobre a distribuição geográfica de crises econômicas. Nomeadamente, como crises econômicas se espalham de um lado ao outro do globo. Você também menciona que as pessoas não deveriam se surpreender pelo colapso econômico de 2008. Por exemplo, agora mesmo, temos crises econômicas na União Européia e América do Norte, ainda assim você menciona a explosão do crescimento de GDP na Turquia, e várias partes da Ásia, particularmente a China. Mas você também menciona um grande paradoxo: Na China, enquanto eles têm passado por um tremendo processo de urbanização pelos últimos vinte anos, os mesmos projetos industriais que renderam lucros em massa também desalojaram milhões de chineses e destruíram o meio ambiente. Enquanto isso, cidades inteiras ficam completamente vazias, bem como apenas uma porcentagem muito pequena da população chinesa pode arcar com tais luxos e acomodações.
Harvey: Bem, a China está replicando como os Estados Unidos saiu da Grande Depressão: pela suburbanização depois da Segunda Guerra. Eu penso que os Chineses, em face à questão do que eles vão fazer, particularmente numa recessão econômica global, e à luz de ganhos econômicos vagarosos à cerca de 2007-2008, decidiram que iriam sair de suas dificuldades econômicas pela urbanização e programas de infraestrutura: ferrovias de alta velocidade, estradas, arranha-céus e assim por diante. Estes se tornaram os meios pelos quais o capital excedente foi absorvido. Claro, todos que estavam suprindo a China com matéria-prima foram muito bem. Porque a demanda chinesa era muito alta.
A China absorve metade do suprimento de aço do mundo. Logo, se você está produzindo minério de ferro ou outros metais como a Austrália produz, aí, claro, a Austrália vai muito bem; tanto que eles não têm experienciado exatamente uma crise pelos últimos anos. Os chineses, de fato, tiraram uma folha do livro da história econômica dos Estados Unidos repetindo o programa de desenvolvimento econômico pós-1945 americano. Em suma, a China achou que poderia se salvar com o mesmo tipo de estratégia e evitar qualquer estagnação ou declínio econômico. Você sabe, os estados Unidos e a Europa estão ambos atolados em baixo crescimento, em oposição aos chineses que desfrutaram taxas de crescimento bem rápidas. Porém, mais uma vez, o negócio é absorver o capital excedente de maneiras que sejam produtivas. Eis a questão: Eu digo esperançosamente, porque não sabemos se o boom chinês irá falir. Se o boom chinês falir, como aconteceu com o mercado imobiliário e o mercado financeiro nos E.U.A em 2008, aí o capitalismo global terá sérios problemas. Agora mesmo, os chineses estão tentando limitar sua taxa de crescimento. Então, ao invés de almejar uma taxa de crescimento GDP de 10%, eles tentam um crescimento de 7-8% nos anos que seguem. Eles vão tentar acalmar. Eu digo, vamos, os chineses têm por volta de quatro cidades vazias. Você acredita nisso? Completamente vazias. O que virá nos próximos anos? Essas cidades viraram áreas urbanas produtivas? Elas vão ficar lá e apodrecer? Nesse caso, muito dinheiro seria perdido e uma grande depressão atingiria a China também. Nesse caso, algumas decisões políticas bem desconfortáveis seriam feitas, e certamente poderíamos esperar um severo mal-estar social entre as classes trabalhadoras chinesas e os pobres.
O mundo parece bem diferente dependendo da parte do mundo em que você está. Por exemplo, estava eu em Istambul na Turquia; tem guindaste por todo lugar. A Turquia está crescendo a 7% ao ano, logo, é um lugar muito dinâmico hoje (2013). Quando você está na Turquia, você não consegue mesmo imaginar o resto do mundo em uma crise. Aí, voei duas horas e meia para Atenas na Grécia; não preciso dizer o que está acontecendo lá. A Grécia está como que indo a uma zona de desastre onde tudo parou. Todas as lojas estão fechadas e não há construções acontecendo em nenhum lugar nas cidades. Aqui, temos duas cidades que estão 600 milhas uma da outra, e ainda sim, são lugares completamente diferentes. É o que você deveria esperar ver na economia global: alguns lugares disparam, outros falem. Há sempre um desenvolvimento geográfico desigual da crise econômica. A mim, é uma história fascinante a ser contada.
Emanuele: No segundo capítulo, “As Raízes Urbanas da Crise” você discute a ligação entre crise econômica nos Estados Unidos, acesso à casa própria e direitos de propriedade individual, que são ambos importantes componentes ideológicos do Sonho Americano, mas também, você rapidamente aponta que tais valores culturais se tornam bem proeminentes quando subsidiados por políticas de Estado. Você poderia explicar essas políticas?
Harvey: Bem, se você voltar aos anos 30, verá que menos de 40% dos americanos tinham casa própria. Logo, por volta de 60% da população nos Estados Unidos alugava. Esse era particularmente o caso com as populações de classe baixa ou média. Eles tipicamente alugavam. Agora, essas populações eram um tanto inquietas. Então, nos últimos 40-50 anos cresceu a idéia de que era possível estabilizar populações relativamente inquietas e fazê-las pró-capitalistas e pró-sistema encaixando-os em possibilidades de acesso à casa própria. Então, havia bastante suporte do Estado ao que se chama de instituições de poupança e empréstimo, que eram separadas dos bancos. Esses eram lugares onde as pessoas punham suas economias, e estas economias eram usadas para promover o acesso à casa própria para populações de baixa renda. A mesma coisa era verdade na britânica “Sociedade de Construção”. Na década de 1890 essa tendência começa com a classe executiva imaginando em como estabilizar e deixar as populações de baixa renda menos inquietas. Havia uma frase maravilhosa que a classe executiva dizia: “quem tem casa própria estabelecida não entra em greve!”
Lembre-se, as pessoas tinham que pegar emprestado para tornarem-se proprietários. Aí está o seu mecanismo de controle. No geral, esse sistema era bem fraco por todo os anos 20, até os anos 30 quando o governo e as classes executivas decidiram reforçá-lo. Para começar, quando você tirava uma hipoteca nos anos 20, você normalmente só poderia tê-la por aproximadamente três anos, daí você tinha que renovar ou renegociar a hipoteca. Aí, nos anos 30, os bancos criaram a hipoteca de 30 anos. Mas para essa hipoteca de 30 anos funcionar, isso havia de ser garantido de alguma forma. Logo, isso levou ao estabelecimento de instituições estatais que garantiriam as hipotecas. Isso levou à Administração Imobiliária Federal. Ao mesmo tempo, os bancos precisavam de uma maneira de passar as hipotecas para outrem, então eles criaram essa organização chamada Fannie May.
Por todo esse espaço de tempo, organizações estatais foram usadas para garantir o acesso à casa própria, particularmente, das classes médias às mais baixas, o que obviamente desencorajou estas pessoas de entrar em greve ou sair da linha. Agora estão endividados. Essas instituições deslancharam, de fato, depois da segunda Guerra. Durante esse período, houve bastante propaganda sobre o “sonho Americano” e o que significava ser americano. A dedução de taxas da hipoteca entrou em cena, o que permitia você deduzir os juros na sua hipoteca. Lembre-se, isso é um subsídio enorme à obtenção da casa própria. Houve subsídio do Estado; houve instituições do Estado promovendo acesso à casa própria. Então, tudo isso torna-se crucial quando conectado com o Projeto de Lei dos Soldados, que deu direitos e incentivos privilegiados de acesso à casa própria aos soldados que retornaram da Segunda Guerra. Houve um empurrão incrível do aparato estatal para encorajar e garantir o acesso à casa própria.
Lembre-se, isto estava acontecendo dentro do contexto de suburbanização. Essas instituições tornam-se cruciais ao mercado imobiliário, e ainda existem, naturalmente. Todo mundo comentava como Fannie May e o novo, Freddie Mac, era administrado pelo governo e ainda era, parcialmente, propriedade privada. Com o tempo, na essência, eles tornaram-se nacionalizados. Assim, por todo o tempo, o governo promoveu acesso à casa própria e exerceu um tremendo papel na criação dessas hipotecas sub-prime. Isso foi feito, durante a administração Clinton, tendo início em 1995, enquanto eles estiveram tentando promover o acesso à casa própria entre as populações minoritárias nos Estados Unidos. O desenvolvimento da crise “sub-prime” estava bastante conectado tanto ao que o setor privado estava fazendo, mas também ao que as políticas governamentais estavam garantindo.
Para mim, esse é um aspecto crucial da “American Life”, onde pessoas passam de 60% da população pagando aluguel, ao ponto alto em 2007/2008 onde por volta de 70% da população obtém casa própria. Isso, é claro cria um tipo diferente de atmosfera política – uma atmosfera em que a defesa de diretos e valores de propriedade torna-se muito importante. Então você tem movimentos de bairro onde pessoas tentam manter certas pessoas fora dos bairros porque eles percebem essas pessoas como desestimuladoras dos valores de propriedade. Você obtém um tipo diferente de política porque o imóvel torna-se uma forma de poupança para famílias de classe média e da classe trabalhadora. Claro, as pessoas usam essas economias refinanciando suas casas.
Houve muito refinanciamento acontecendo durante o boom da propriedade nos EUA. Muitas pessoas lucraram com altos preços imobiliários. A promoção do acesso à casa própria é agora tratada como se fosse um sonho de longa data daqueles que vivem nos Estados Unidos. Todavia, para ser exato, sempre houve esse tipo de ideia nos Estados Unidos com populações trabalhadoras imigrantes, de que se você arranjar um pequeno pedaço de terra, cultivar um pouco nela e assim por diante, você poderia acabar tendo uma boa vida. Sim, isso era parte do sonho imigrante. Mas isso foi transformado no acesso à casa própria, o que não tem a ver com ter vacas e galinhas no seu quintal; é sobre ter símbolos do consumismo em torno de você.
Emanuele: Vamos falar sobre essas tendências por um viés ideológico. Você menciona que devemos ir além de Marx. Ainda sim, você insiste que deveríamos utilizar seus insights mais prescientes. Como poderíamos ir além de Marx? O que exatamente você quer dizer?
Harvey: Agora, a razão pela qual Marx é importante no meio disso tudo, é porque Marx teve um entendimento agudo de como a acumulação do capital funciona. Ele entendeu que essa máquina de crescimento perpétuo contém muitas contradições internas. Por exemplo, uma das contradições fundamentais de que Marx fala é entre valor de uso e valor de troca. Você pode ver isso funcionando na situação imobiliária muito claramente. Qual é o valor de uso de uma casa? Bem, é uma forma de abrigo, um lugar de privacidade, onde alguém pode criar uma vida em família. Podemos listar alguns outros valores de uso da casa, mas a casa também tem um valor de troca. Lembre-se quando você aluga uma casa, você simplesmente está alugando pelo que ela vale. Mas quando você compra a casa, você agora vê essa casa como uma forma de poupança e, um pouco depois, você usa a casa como uma forma de especulação.
Como resultado, os preços imobiliários começam a disparar. Então, nesse contexto, o valor de troca começa a dominar o valor de uso da casa. A relação entre valor de uso e de troca começa a sair de controle. Assim, quando o mercado imobiliário quebra, subitamente, cinco milhões de pessoas perdem seus lares e o valor de uso desaparece. Marx fala sobre essa contradição e isso é algo importante. Precisamos fazer a questão: o que devemos fazer com a habitação? O que devemos fazer com a saúde? O que estamos fazendo com a educação? Devemos promover o valor de uso da educação? Ou deveríamos promover o valor de troca dessas coisas? Porque as necessidades da vida deveriam ser distribuídas pelo sistema de valor de troca? Obviamente, deveríamos rejeitar o sistema do valor de troca, que acaba preso na atividade especulativa, lucratividade, e atualmente interrompe os meios pelos quais podemos adquirir produtos e serviços necessários. Esses são os tipos de contradições de que Marx estava bem ciente.
Emanuele: No terceiro capítulo, “A Criação dos Comuns Urbanos”, você reconceitualiza o que ”comuns” podem ser no século que chega. Você segue fazendo referência ao trabalho de Tony Negri e Michael Hardt por todo o livro. Eu entrevistei Michael Hardt no passado e achei seu trabalho bem perspicaz e bem interessante. Como todos vocês mencionam em seu trabalho: devemos começar conceitualizando como iremos transferir, promover, desenvolver e utilizar os comuns. Isso também inclui afetos culturais – imagens, sentidos, símbolos, etc. Você continua mencionando o trabalho de Murray Bookchin: idéia de ordem social, processo, hierarquia e assim por diante, se tornam muito importantes ao se tentar imaginar alternativas. Christian Parenti, recentemente, também escreveu um ótimo trabalho sobre o Estado e o meio-ambiente. Quais são algumas de suas idéias quanto a como podemos re-conceitualizar os comuns?
Harvey: Bem, a conceitualização dos comuns, pelo que vi e li, é um tanto pequena em escala. Logo, muito do que foi escrito sobre os comuns tem lidado com os comuns em um nível micro. Não estou dizendo que tenha algo errado com isso – ter um jardim comunal em seu bairro, isso é ótimo. No entanto, parece-me que devemos começar a tratar e falar de questões de larga escala com os comuns, como o habitat de uma bio-região inteira. Por exemplo, como começamos a conceitualizar como a sustentabilidade poderia ser vista para todo o Nordeste americano? Como gerenciamos coisas como recursos hídricos num nível nacional? E que tal globalmente? Os recursos hídricos deveriam ser considerados recursos de propriedade comum, mas frequentemente há demandas conflituosas por água limpa: urbanização, agricultura industrial e todo tipo de outras preservações de habitat natural e similares.
Fico feliz de você ter mencionado o ensaio de Christian Parenti porque as mudanças climáticas nos fazem reconceitualizar os comuns globais. Como lidar com esse problema? E como lidar com essas questões no futuro? Sem dúvida, necessitamos de mecanismos de reforço entre estados-nação para combater essas tendências e evitar futuras ameaças. O que acontece com tratados internacionais se governos estão em pedaços? Quem vai impedir outros Estados de despejar carbono na atmosfera? Não se consegue isso dando encontros coletivos ou pequenas confraternizações. Conversas sobre se transformamos um pedaço de área num jardim comunitário não vão combater as questões que enfrentamos como espécie. Temos que pensar nos comuns como existindo em escalas diferentes.
Estou interessado na escala regional metropolitana. Como você organiza, nessas regiões, pessoas para defender propriedades comuns em várias escalas? Bem, esse nível de capacidade organizativa não irá acontecer através de assembleias ou outras formas de organização que as pessoas estão utilizando hoje. O problema está aparecendo com uma maneira democrática de responder às opiniões de vastas populações de pessoas por todo o globo para lidar com direitos de recursos de propriedade comum. Isso incluiria coisas como a qualidade da água e do ar por toda a região. Incluiria também a sustentabilidade da bioregião.
Essas coisas não acontecem por assembleias, e só porque as pessoas criam ótimos planos num nível local, não quer dizer que estes planos funcionem num nível regional ou em escala global. Então, eu gostaria de injetar a noção de “escalas” diferentes de organização em nossa conversa coletiva sobre desenvolvimento, sustentabilidade e urbanização. Temos que desenvolver organizações, mecanismos, discursos e aparatos capazes de lidar com esses problemas num nível global. Não acho que nos traga nenhum benefício discutir “os comuns” se não formos específicos quanto à escala em que estamos discutindo. Estamos falando sobre o mundo? Assim sendo, devemos falar sobre o aparato estatal e suas funções, particularmente nos níveis bio regional e global.
Emanuele: Parece que os únicos que pretendem olhar a essas questões numa escala global são cientistas de clima, oceanógrafos, biólogos, ecologistas – com muito poucos intelectuais ativistas solitários, ou a grande população em geral discutindo o ambiente natural global. Alguns cientistas sugerem que por 2048 quase todos os peixes grandes vão estar extintos. No mínimo, cientistas nos dizem para esperar um aumento de dois graus Celsius na temperatura do globo ao fim do século. Essas previsões são perturbadoras, no mínimo. Mesmo se pudermos nos organizarmos efetivamente, digamos, no nível bio regional, o que acontece se outras regiões recusarem? Não vamos precisar de um aparato global para responsabilizar as nações? A mim, parece-me uma das maiores questões do nosso tempo.
Harvey: Bem, há poucos meios pelos quais uma prática pode tornar-se hegemônica: uma é por coerção, o que nenhum de nós quer, mas que pode muito bem ser uma necessidade. Então tem o consenso, que é o que vemos nessas conferências sobre mudanças de clima, mas como vemos, também não está funcionando. O terceiro, é o que você poderia chama de “por exemplo”. É por isso que eu acho uma região como Cascardia tão interessante, dentre as razões que você mencionou, porque Cascadia pôs em curso algumas políticas bastante progressistas. Por exemplo, a Califórnia também o fez com muitos aspectos da legislação ambiental. Numa escala local, a Califórnia começou a impôr coisas como quilometragem obrigatória do carro ou capacidade de combustível, e esse é um pequeno exemplo.
Interessantemente, também pode ser demonstrado que você não vai cair aos pedaços, economicamente, se o estado promulgar essas medidas. Hoje mesmo, nada disso acontece. Penso que agir por exemplos pode ser muito significante. É mais fácil atingir consenso quando você pode prover exemplos às pessoas de como isso funcionaria. Por exemplo, vimos isso no nível urbano com cidades como Curitiba, Brasil, que é relativamente bem conhecida pelo seu projeto ambiental. Em outras palavras, muitas das coisas que estão fazendo em Curitiba estão hoje sendo levadas por todo mundo em ambientes urbanos variados. Penso que teremos uma combinação de trabalho por exemplos (consenso e coerção). Minha esperança seria que pudêssemos primordialmente usar exemplos do mundo real; aí, é mais fácil chegar ao consenso; e, ao contrário, é bem difícil ir na direção da coerção. No entanto, é apenas minha esperança. Não acontece necessariamente dessa maneira.
Emanuele: No Capítulo Quatro, “A Arte da Renda” você menciona que certa vez, “as universidades de arte eram ninhos de discussão política, mas suas subsequentes pacificações e profissionalizações diminuíram seriamente políticas de agitação”. Você poderia falar do caráter especial da produção e reprodução cultural? Ainda, você poderia traçar esse conceito de “renda de monopólio”? Como esse processo foi adicionado pelo que você chama de “empreendedorismo urbano”? Você chama esses processos de “Disneyficação” da sociedade e cultura. O que é capitalismo-simbólico-coletivo?
Harvey: Meu interesse nisso deriva de uma contradição muito simples: nós deveríamos supostamente viver sob o capitalismo, e o capitalismo deveria, supostamente, ser competitivo, então você esperaria que capitalistas e empreendedores gostassem de competição. Bem, acontece que os capitalistas fazem tudo que podem para evitar competição. Eles amam monopólios. Logo, sempre que podem, eles tentam criar um produto monopolizável, que, em outras palavras, seja “único”. Por exemplo, pegue o logo da Nike, que é um exemplo perfeito de capitalistas extraindo um preço de monopólio num logo particular porque há toda essa bagagem atrelada ao que esse logo significa, o que representa, e como as pessoas deveriam interagir com ele. Um sapato idêntico, que custa muito menos dinheiro, pode ser vendido por bem menos, simplesmente porque não tem o tal logo nele. Então, o emprego de preços de monopólio é terrivelmente importante. Você irá encontrar muitos lugares onde esse é um componente crucial de como mercados funcionam.
No mesmo capítulo, eu menciono o comércio de vinho, o que me intriga muito. Pessoas tentam e extraem renda de monopólio porque essa vinícola tem solos especiais, ou essa vinícola tem uma localização geográfica especial. Portanto, isso cria um vinho único – “vintage”, que tem um gosto melhor do que qualquer coisa no mundo – exceto que não. Há um grande interesse de adquirir renda de monopólio através da garantia de que seu produto é comercializado como único e muito, muito especial. Aí, no nível local, cidades tentam promover-se como “marcas”. Há toda uma história agora, particularmente por volta dos últimos 30-40 anos, onde cidades promovem-se como marcas e tentam vender um pedaço de sua história. Qual é a imagem de uma cidade? É atrativa a turistas? Está em alta? As cidades irão se comercializar.
Você encontrará cidades que têm altas reputações como Barcelona, na Espanha, ou Nova Iorque. Uma das maneiras de torná-la mais única é mercantilizar algo sobre a história da cidade, o que é muito específico, porque não dá para usufruir de um paralelo histórico em lugar nenhum. Logo, por exemplo, você vai à Atenas, por causa da Acrópole, ou vai à Roma por causa das Ruínas. Então você começa a mercantilizar a história de uma cidade como sendo única e lucrável. Por outro lado, se você não tem uma história em particular, você inventa algumas histórias. Têm muitas cidades que inventaram histórias no mundo de hoje. Aí você diz às pessoas que a cultura do lugar é muito especial. Você sabe, coisas como estilos de comida únicos, ou danças tornam-se muito importantes. Você tem de promover a vida e costumes populares como sendo únicos – não existe nenhum lugar assim, e todo esse tipo de coisa.
A mercantilização de aspectos culturais e históricos da cidade é hoje um componente crucial no processo econômico. Algumas cidades simplesmente inventam sua cultura única. Por exemplo, algumas cidades vão usar arquitetura “signature”. Por exemplos, poucas pessoas sabiam sobre a cidade de Bilbao na Espanha, até o Museu de Guggenheim se tornar o point de uma marca em particular de arquitetura. Continuando, Podemos ver Sydney, Austrália, e sua Opera House, que é a primeira coisa que as pessoas reconhecem quando vêem uma foto da cidade, e podemos ver o quão importante isso tornou-se. Então, a arquitetura em si mesma é capturada na mercantilização e produção de marcas de uma cidade. Você sabe, até a cena musical e de pintura se tornam aspectos significantes da cultura para aí comercializá-los e vendê-los – cidades como Austin, no Texas tornam-se grandes “cenas musicais”. Adicionalmente, você tem cidades como Nashville e assim por diante. Assim, cidades começam a usar produção cultural como uma maneira de mercantilizar sua cidade como única e especial. Claro, o problema disso é que muito da cultura é muito fácil de replicar. O aspecto único começa a desaparecer. Aí, temos o que eu chamo de “disneyficação” da sociedade.
Na Europa, por exemplo, enquanto muitas cidades têm consideráveis histórias histórico-culturais, tudo torna-se “disneyficado”. Algumas pessoas, como eu, por exemplo, ficam extremamente desanimados com isso. É ainda outra “disneyficação” da história da Europa e eu simplesmente não quero mais ser chateado com isso. Essa é a contradição: você comercializa uma cidade como única, no entanto através desse marketing a cidade torna-se replicável. De fato, o simulacro da história se torna tão importante quanto a história em si. Há uma tensão em torno da procura da renda de monopólio, ganhando-o por um tempo e então ele é perdido para o simulacro. Isso torna-se significante. Agora, isso também cria uma situação na qual produtores culturais tornam-se terrivelmente importantes. Eu fui morar em Baltimore em 1969, e tinham por volta de três museus lá. Agora, tem por volta de 30 museus em Baltimore! Esse se torna o meio pelo qual se mercantiliza a cidade. Contudo, se toda cidade tiver trinta museus, aí você pode esquecer em ter uma vantagem de monopólio. Então em nada importa se estou em Baltimore, Pittsburgh ou Detroit: tudo se torna uma experiência replicável. Eles começam a perder seu poder monopolístico.
Emanuele: No capítulo cinco, “Reivindicando a cidade para a luta anticapitalista”, você escreve, “duas questões derivam de movimentos políticos baseados na cidade: 1) Seria a cidade, ou sistema de cidades, meramente um lugar passivo, ou rede preexistente? 2) Protestos políticos frequentemente galgam seu sucesso em termos de sua habilidade de perturbar economias urbanas”. Você poderia explicar essas perturbações? Como você acha que os manifestantes na sociedade de hoje podem mais efetivamente perturbar economias urbanas?
Harvey: O Furacão Sandy realmente perturbou a vida daqueles que vivem em Nova Iorque. Logo, não vejo por que movimentos sociais organizados não poderiam perturbar a vida, como de costume, nas grandes cidades e, dessa forma, causar dano aos interesses das classes dominantes. Temos visto muitos exemplos históricos disso. Por exemplo, nos anos 60, as perturbações que ocorreram em várias cidades dos Estados Unidos causaram perturbações maciças aos negócios. As classes política e empresarial foram rápidas em responder por causa do nível de perturbação e destruição. Eu menciono no livro as demonstrações dos trabalhadores imigrantes na primavera de 2006. As demonstrações foram resposta à tentativa do congresso de criminalizar imigrantes ilegais. Subsequentemente, pessoas se mobilizaram em lugares como Los Angeles e Chicago, e perturbaram significantemente os negócios da cidade.
Você poderia pegar a ideia de uma greve, geralmente direcionada a uma firma ou organização em particular, e verter essas táticas e estratégias aos centros das cidades. Então, ao invés de focar suas ações a um negócio ou firma em particular, as pessoas mirariam suas ações a áreas urbanas inteiras. Aí, há eventos como a Comuna de Paris, ou a greve Geral de Seattle em 1919, ou a Insurgência Corbazo na Argentina por volta de 1969. Não precisa ser um movimento revolucionário da noite pro dia. Essas coisas podem acontecer bem gradualmente por reformas.
O Orçamento Participativo está atualmente ocorrendo em Porto alegre, Brasil, onde o Partido dos Trabalhadores desenvolveu um sistema através do qual as populações e assembleias locais decidem no que o dinheiro dos seus impostos deve ser gasto. Dessa forma, eles fazem assembleias populares e assim por diante, que decidem como utilizar fundos públicos ou serviços. Novamente, aqui está uma reforma democrática que inicialmente aconteceu em Porto alegre, mas que desde então foi passada a cidades europeias. É uma grande ideia. Envolve o público e deixa as pessoas envolvidas no processo. Isso democratiza as tomadas de decisão por toda a sociedade. Essas decisões não são mais feitas por câmaras municipais, burocratas ou às portas fechadas. Agora, esses debates estão aí para o consumo público. De um lado, você tem intervenções bem rápidas na forma de greves e perturbações. Do outro, temos um processo lento de reforma acontecendo através de assembleias democráticas e assim por diante.
Emanuele: Através dos anos, trabalhei com pessoas que operam dentro do setor de sindicatos, pessoas que estão desempregadas e operando dentro do que comumente se chama de “economia negra”. Com maior importância, estou interessado em organizar aqueles que trabalham nas indústrias de setor de serviço, ou lojas “big-box” como Applebees’s ou Best Buy. No capítulo Cinco, você escreve, “Na tradição marxista, lutas urbanas são frequentemente ignoradas ou dispensadas como sendo desprovidas de potencial ou significância revolucionária.
Quando uma luta que abrange toda a cidade adquire status revolucionário icônico, como houve durante a Comuna de Paris de 1871, esta é chamada, primeiro por Marx, e ainda mais enfaticamente por Lenin, como sendo uma insurreição proletária, ao invés de um movimento revolucionário muito mais complicado animado tanto pelo desejo de reivindicar a cidade em si da apropriação burguesa, quanto pela desejada liberação dos trabalhadores dos ardis da opressão de classe no local de trabalho. Eu tomo como de simbólica importância que os dois primeiros atos da Comuna de Paris foram para abolir o trabalho noturno nas padarias, uma questão trabalhista, e para impor uma moratória no aluguel, uma questão urbana. Você poderia falar da predileção aos trabalhadores industriais na ideologia marxista?
Harvey: Há uma longa história disso. A tendência nos círculos marxistas, mas geralmente na esquerda, é privilegiar o trabalhador industrial. Essa ideia de uma luta de vanguarda levando a uma nova sociedade está aí há algum tempo. No entanto, o que é fascinante é a falta de alternativas a essa visão ou, ao menos, variantes de sua intenção e propósito. Claro, muito disso vem de O capital vol. I de Marx – a ênfase no trabalhador fabril. Essa ideia de que o partido dos trabalhadores de vanguarda nos levará à nova terra prometida dos anti-capitalistas, chamemos de sociedade “comunista”, tem sido persistente por volta de cem anos. Sempre senti muito limitada a concepção de quem é o proletariado e de quem está na “vanguarda”.
Também, sempre estive interessado em dinâmicas de luta de classe e suas relações com movimentos sociais urbanos. Claramente, para mim movimentos sociais urbanos são bem mais complicados. Eles percorrem todo o caminho das organizações de bairro burguesas, que engajam-se em políticas excludentes, a uma luta contra seus senhorios por causa de práticas exploratórias. Quando você vê o espectro maior dos movimentos sociais urbanos, você verá que alguns são anti-capitalistas e outros são o oposto. Mas eu faria a mesma ressalva quanto algumas formas da organização sindical tradicional. Por exemplo, há sindicatos que vêem a organização como uma maneira de privilegiar os trabalhadores privilegiados da sociedade. Claro que não gosto dessa ideia. Todavia, existem outros que estão criando um mundo mais justo e igualitário.
Creio haver uma amplitude igual de distinção dentro das formas de organização do trabalhador industrial. De fato, as formas de organização do trabalhador industrial, às vezes, por estarem lidando com grupos especiais e interesses especiais, são mais reacionários a políticas generalistas do que se imagina. É referente a isso que tomo as formas de organização de Antonio Gramsci. Ele estava muito interessado em conselhos de fábrica. Ele seguiu a linha marxista de que as organizações de fábrica são cruciais na luta. Mas então ele incentivou as pessoas a também se organizar ao longo dos bairros. Dessa maneira, no pensamento de Gramsci, elas poderiam ter uma ideia melhor de como era toda a classe trabalhadora, não só aqueles organizados em fábricas e assim por adiante. Incluindo pessoas como os desempregados, trabalhadores temporários e todas as pessoas que você mencionou previamente que não estavam nos trabalhos do setor industrial tradicional. Assim, Gramsci propôs que esses dois tipos de métodos de organização política deveriam ser interligados com o objetivo de verdadeiramente representar o proletariado. Em essência, meu pensamento reflete o de Gramsci quanto a isso. Quando começaremos a nos interessar por todos os trabalhadores dentro de uma cidade? Quem faz isso? Os sindicatos tradicionais tendem a não fazer isso.
Ao mesmo tempo, há movimentos dentro do movimento sindical que estão conduzindo tais práticas organizativas. Por exemplo, os Conselhos do Sindicato do Comércio na Grã-Bretânia ou os Conselhos Trabalhistas nos Estados Unidos, ambos tentam organizar algo fora do escopo da organização sindical tradicional. Agora, esses lados do movimento sindical não têm sido empoderados. Nós temos de chegar a novas formas de organização que capturem o lado progressivo do que ocorre dentro dos movimentos sociais urbanos, e reúnam isso com o que remanesce do modelo sindical tradicional do setor industrial. Temos de reconhecer que muitos trabalhadores operando na economia americana não poderiam organizar-se oficialmente sob um sindicato com as leis trabalhistas atuais. Logo, precisamos uma forma diferente de organização, fora do modelo sindical tradicional.
Tem uma organização em Nova Iorque, que é na verdade nacional, porém muito forte em Nova Iorque, que se chama a Organização dos Trabalhadores Domésticos. É muito difícil organizar trabalhadores domésticos. Mas eles têm uma organização baseada em direitos e eles continuam a se organizar e lutar. Sejamos honestos, se você é um imigrante ilegal nos Estados Unidos, você está sendo tratado de maneira desprezível. Logo, a organização de grupos como taxistas ou trabalhadores de restaurante levam ao que se chama de um Congresso de Trabalhadores. Eles estão tentando juntar todas essas formas de organização. Você sabe, até Richard Trumka apareceu a uma dessas conferências nacionais e disse aos trabalhadores que o movimento sindical tradicional iria ao menos gostar de ter um relacionamento com eles.
Em suma, creio que há um movimento crescendo agora, que reconhece a importância de todos os tipos de trabalho que ocorrem no ambiente urbano. Eu tomei a questão posta a mim por muitos sindicalistas: “por que não organizamos toda a droga da cidade?”. Já existem movimentos ocorrendo para organizar taxistas, mas por que não os trabalhadores de entrega? Essa é uma força de trabalho incrível e a cidade depende absolutamente desses setores de trabalhadores para manter os negócios funcionando como sempre. E se esses grupos se juntassem e começassem a demandar um tipo diferente de política nas cidades? E se tivessem um dizer quanto a maneira que os fundos e recursos foram usados? Existem maneiras de ir contra a desigualdade incrível que existe na cidade de Nova Iorque?
Quero dizer que, as declarações fiscais do último ano relataram que os 1% do topo das pessoas de Nova Iorque ganham $3.57 milhões cada, comparados aos 50% da população que tenta se virar com menos de $30,000. É uma das cidades mais desiguais do mundo. Assim sendo, o que podemos fazer quanto a isso? Como podemos nos organizar para mudar essa desigualdade? Para mim, devemos deslocar essa noção de que o trabalhador fabril será a vanguarda do proletariado, e começar a vislumbrar aqueles que se engajam com a produção e a reprodução da vida urbana como a nova vanguarda. Isso incluiria trabalhadores domésticos, taxistas, trabalhadores de entrega e muito mais das classes trabalhadoras e pobres. Penso que podemos construir movimentos políticos que operam de maneiras completamente diferentes que no passado. Podemos ver isso em cidades ao redor do globo, esticando de cidades bolivianas a Buenos Aires. Combinando o trabalho de ativistas urbanos com aqueles das fábricas, começamos a desenvolver um elemento completamente diferente de agitação política.
Emanuele: Você poderia falar sobre algumas dessas cidades, como Al Alto, Bolívia? Também, eu estava em Madison, Wisconsin, em 2011 durante os protestos trabalhistas; e devo dizer, está sendo interessante e completamente frustrante experienciar a dinâmica interna do movimento trabalhista, e como ele interage com trabalhadores não sindicalizados e cidadãos. Infelizmente, o movimento sindical sufoca as verdadeiras dissidências e resistências.
Enquanto muitos trabalhadores em Madison são sindicalizados, aqueles que fisicamente ocuparam o capitólio e iniciaram a ocupação não eram trabalhadores sindicalizados. Daí, os grandes sindicatos entraram e imediatamente redirecionaram a conversação à eleição do recall do gov. Scott Walker. Sem dúvida, em retrospectiva, a votação do recall do gov. Walker foi um desastre político. O que você pensa?
Harvey: Os sindicatos passaram por um mal momento. Eles não são muito progressistas, especialmente nos Estados Unidos. No geral, concordo de onde você está partindo. A razão pela qual mencionei Trumka foi porque penso que Trumka e muitos daqueles dentro do movimento sindical organizado entendem que eles não podem mais prosseguir sozinhos; eles demandam a ajuda de todas as forças de trabalho, sindicalizadas ou não. É sempre esse o desafio da organização: Quanto apoio queremos dessas grandes entidades? E quanto do que eles estão fazendo está fora de um verdadeiro senso de solidariedade? Quanto disso é para ganho pessoal? Minha própria experiência em Baltimore, entorno de vívidas campanhas por salários, espelha sua experiência em alguma extensão. Os sindicatos foram geralmente hostis a essas campanhas e não ajudaram, de modo geral. No entanto, nós recebemos muita ajuda de sindicatos locais.
Assim, novamente, devemos separar essas duas entidades. Indivíduos locais não ajudaram campanhas locais. Sem dúvida, o movimento sindical tem sido muito, muito conservador nos Estados Unidos – de várias formas, particularmente por volta dos últimos cinquenta anos – estamos em falta de um movimento sério de trabalho organizado. E existem problemas similares nos sindicatos trabalhistas britânicos. Para ser justo, a impressão que eu tenho de algumas lideranças locais em Nova Iorque é que eles entendem que não podem mais dar as ordens. Duvido que esteja dizendo que não devamos nos organizar com sindicatos, e devemos ser precavidos com qualquer um que diga isso, mas acredite em mim, estou bem a par das limitações dos sindicatos modernos.
De fato, escutei muito do que você falou de amigos que participaram dos eventos de Madison, Wisconsin. Você sabe, tenho lido o quanto pude sobre Al Alto, Bolívia, e o que é realmente fascinante para mim são as formas de organização acontecendo lá. Tem um componente sindical, com um sindicato de professores forte liderando o caminho. Mas também há muitos ex-sindicalistas que já estiveram nas minas de latão, mas que ficaram desempregados pela reestruturação neoliberal dos anos 80. Esse pessoal acabou morando nessa cidade de Al Alto e ali há uma tradição de ativismo político socialista. No movimento sindical, eles eram em maioria trotskistas, o que é significante. No entanto, as organizações mais importantes eram as organizações de bairro. Mais ainda, houve um amplo agrupamento de organizações de bairro chamada de Federação das Organizações de Bairro.
Por exemplo, houve organizações de vendedores de rua, o que temos também em Nova Iorque, em adição ao pessoal do transporte. Esses diferentes grupos encontravam-se bem regularmente. A dinâmica interessante dessas organizações é que eles absolutamente não vêem cada e toda questão como um olho-por-olho. Digo, qual é a razão de ir a uma reunião aonde todos concordam? Eles tinham que ir às reuniões para certificar que seus interesses não estavam sendo desrespeitados. É isso que acontece quando se tem debate e discursos político vívidos: progresso. Assim, o ativismo das federações de bairro resultou de métodos de organização bem competitivos. Daí, quando a polícia e os exércitos começaram a assassinar pessoas nas ruas, houve uma demonstração imediata de solidariedade entre os grupos que estavam se organizando na cidade. Eles fecharam a cidade e bloquearam as estradas.
Como resultado, as pessoas de La Paz, Bolívia, ficaram incapazes de receber bens e serviços porque três das principais rotas passavam diretamente por Al Alto, que foi fechada por essas organizações. Eles o fizeram de novo em 2003, e o resultado foi que o presidente foi expulso. Depois, em 2005, o próximo presidente foi expulso. Finalmente, eles conseguiram Evo Morales. Todos esses elementos encontraram-se e efetivamente organizaram as pessoas pobres e da classe trabalhadora na Bolívia. É de onde tirei o título do meu livro Cidades Rebeldes. Quase literalmente, Al Alto, tornou-se uma cidade revolucionária em questão de poucos anos. As formas de organização na Bolívia são fascinantes de se observar e estudar. Não estou dizendo que este é “o modelo” que todos deveriam copiar, mas é um bom exemplo para observar e estudar.
Emanuele: Chegando ao fim do seu livro, você menciona um filme que me é muito querido, Sal da Terra (Salt of the Earth), um filme que vi pela primeira vez quando calouro na universidade. Minha professora, Dra. Kim Scipes, deu uma aula de diversidade étnica e racial na Universidade Purdue North Central onde nós vimos o filme. Foi solicitado ver material para o curso. Referenciando esse filme no seu livro, você menciona: “Somente quando a unidade e a paridade forem construídas com todas as forças do trabalho nós seremos capazes de vencer. O perigo que essa mensagem representou para o capitalismo é medida pelo fato de que esse é o único filme americano a ser sistematicamente banido por razões políticas de ser exibido em qualquer local comercial por vários anos”. Você poderia falar por que esse filme é importante? O que ele pode nos ensinar sobre luta?
Harvey: Bem, eu vi o filme há algum tempo. Foi um bom tempo atrás e não lembro exatamente quando. Mas, como você, sempre guardei com carinho sua memória. Então quando eu estava me preparando para escrever esse livro, eu voltei e o vi novamente. Naturalmente, eu o assisti mais algumas vezes. Acho que é uma história bem humana. Mas é uma história maravilhosa sobre uma mina de zinco, que é baseada numa situação real, escrita por pessoas banidas de Hollywood por suas inclinações comunistas. È um grande filme onde classe, raça e gênero juntam-se para formar uma grande história e narrativa.
Tem um momento no filme um tanto engraçado: os caras não podem mais piquetar por causa da legislação Taft-Hartley, então as mulheres assumem os piquetes porque não há nada banindo elas de participar dos protestos. Então, os homens têm que assumir os trabalhos domésticos. Interessantemente, os homens rapidamente começam a entender porque as mulheres pediam por água corrente, e outras coisas de seus empregadores que fariam a vida diária muito mais fácil. Rapidamente, claro, os homens descobrem o quão difícil é estar em casa o dia todo. Isso reúne o tipo de questões de gênero que são importantes hoje. Isso trata de solidariedade entre linhas étnicas, o que é crucial. O filme presta um grande serviço em ressaltar isto de uma forma bem não-didática. Sempre gostei muito desse filme, então achei que seria apropriado que eu o trouxesse de volta no contexto de Cidades Rebeldes.
Emanuele: Alguns conselhos de despedida àqueles escutando ou lendo essa entrevista?
Harvey: Infelizmente, eu sou não um organizador; sou um comentador dos limites do capital e de como poderíamos prosseguir na conceitualização de visões alternativas para a sociedade. Eu retirei uma grande quantidade de força, motivação e idéias intelectuais daqueles que de fato engajam-se todos os dias na luta. Eu participo e ajudo, quando posso. Então, meu conselho todos seria sair o quanto possível e lidar com a desigualdade e a degradação ambiental pois essas questões são cada vez mais prescientes.
As pessoas devem ser mais ativas; ir às ruas; mover-se. Esse é um momento crucial. Você sabe, as grandes fortunas e o capital não cederam nem um pouco, até agora. Temos que dar um enorme empurrão se quisermos ver algo diferente em nossa sociedade. Nós precisamos criar mecanismos e formas de organização que reflitam as necessidades e vontades da sociedade como um todo, não apenas de uma oligárquica e privilegiada classe de indivíduos.
David Harvey é um eminente Professor de Antropologia e Geografia do Centro de Graduação da City University of New York (CUNY), Diretor na The Center for Place, Culture and Politics, e autor de inúmeros livros, incluindo seu mais recente, Cidades Rebeldes: Do Direito à Cidade à Revolução Urbana (Verso 2012). Ele tem lecionado O Capital de Karl Marx por mais de 40 anos.
Vincent Emanuele é escritor, ativista e apresentador de rádio. Vince apresenta um programa semanal na Rede de rádio progressista chamada “Meditações e Molotovs” (“Meditations and Molotovs”), que vai ao ar toda segunda às 1:00 da manhã (horário de Chicago).