Hegel e Freud: entre Aufhebung e Verneinung

Por Alenka Zupančič, via Crisis and Critique, traduzido por Ramon Frias e Daniel Alves Teixeira, membros do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia.

Em seu curto comentário falado ao artigo de Freud sobre a Verneinung, que ele deu ao convite de Lacan, Jean Hyppolite pontua a extraordinária dimensão “filosófica” (especulativa) do artigo de Freud. Hyppolite também foi aquele que indicou, mesmo que só de passagem, a maneira pela qual Freud usa a palavra Aufhebung nesse texto, relacionando isso à como Hegel faz distinções entre vários tipos de negação no capítulo da “dominação e escravidão” (“Senhor e Escravo”) da Fenomenologia do Espírito, bem como de forma mais geral. [1]


Tomarei essa pista mais seriamente, e tentarei desenvolvê-la mais profundamente para ver onde ela nos leva – a aposta sendo a de que os dois conceitos podem lançar uma produtiva e inesperada luz um ao outro. A ideia é propor um tipo de representação paralela dos dois conceitos, contra o pano de fundo através do qual alguns dos marcos singulares, distintivos, de cada um deles possam, talvez, trazer à tona alguns dos traços menos óbvios, porém potencialmente bem interessantes do outro.

O artigo de Freud (de 1925) começa com uma série de exemplos bem interessantes e concretos de negação que se encontram “durante o trabalho de análise”. Aqui estão dois deles: “Agora você pensará que quero dizer algo ofensivo, mas na verdade não tenho essa intenção”. E tem, claro, a mais famosa: “Você pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe.”[2] É crucial que a pessoa que nega algo dessa maneira introduza, ponha à mesa, o conteúdo negado – o que está em jogo não é uma resposta, digamos, à pergunta do analista; o analisando poderia simplesmente não dizer o que ela/ele diz e nega. É por isso que Freud conclui que esse tipo de negação é de fato usado para que o analisando introduza ou  antecipe, dentro de sua estrutura, um certo conteúdo. Ademais, Freud sugere um tipo de técnica útil em análise, assim como em outras situações, e que consiste em perguntar: “O que você consideraria o mais improvável e inimaginável numa dada situação? O que você pensa que estava mais longe de sua mente naquela hora?” – se a pessoa com quem você está falando deixa-se cair em sua armadilha e lhe diz o que considera ser a coisa mais inacreditável, é nisso que você tem que acreditar.

É claro, no entanto, que não estamos lidando simplesmente com uma inversão: se o outro diz não, isso só pode significar sim. O que está em jogo é que, considerando a maneira que ela é usada aqui, a negação é irrelevante ao conteúdo que ela acompanha: ela não nega seu conteúdo, mas o transmite, o entrega. Nesse sentido, a negação é tanto não essencial como absolutamente essencial (porque sem ela, isso nunca teria lugar ou “sairia”).

O esquema desses exemplos, concisamente formulados já por Hyppolite, é então o seguinte: é “um modo de apresentar o que algo é na forma de não sê-lo”[3]. O que aparece (ou o que devemos escutar) é algo assim: “eu vou lhe falar aquilo que não sou; preste atenção, isso é precisamente o que eu sou”.

Apesar de que possa parecer ser o caso, Freud não procede aqui simplesmente dispensando a negação. Ele não diz: uma vez nos foi dado o conteúdo, podemos esquecer da negação, ela está lá apenas pela forma, e é só o conteúdo que importa. O que ele diz é algo diferente. Nomeadamente: o “ ’não’ é o selo da repressão, um certificado de origem – como, digamos, ‘made in Germany’ ”.[4]

O ponto fundamental dessa afirmação – que é também o ponto fundamental da psicanálise, sua descoberta crucial – poderia ser formulada assim: o conteúdo reprimido/ inconsciente não é apenas como qualquer outro conteúdo (exceto que é reprimido), ele não possui o mesmo status ontológico. Para entendermos isso, precisamos ter em mente o fato de que o “reprimido” é reprimido mesmo antes de sua (primeira) aparição (como algo).   Isso, por exemplo, é o que Lacan almeja em seu seminário sobre Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise com uma série de declarações, tais como: “o inconsciente é manifestado a nós como algo que se mantém em suspense na área … do  não-nascido”; “a lacuna do inconsciente poderia ser dita como sendo pré-ontológica”; “a emergência do inconsciente … não se presta à ontologia”; “o inconsciente … é nem ser, nem não ser”.[5] Sempre que estivermos lidando com um conteúdo inconsciente, estamos lidando com algo que é constitutivamente inconsciente, isso é dizer que só é registrado na realidade na forma de repressão, como repressão (e não como algo que primeiro é, e então é reprimido). É por isso que se simplesmente nos focarmos no conteúdo perdemos essa especificidade (perdemos essa dimensão do não-inteiramente-ser como o próprio modo de ser dessa coisa particular, que é precisamente o modo da repressão). A repressão não é algo que podemos simplesmente suspender e ter acesso nesse caminho ao conteúdo/representação inconsciente “imaculado”. Se fazemos isso, perdemos algo um tanto essencial. De fato, Freud descreve isso como uma Aufhebung “má”, inoperativa, que já está trabalhando no próprio mecanismo da Verneinung: “A negação é uma maneira de tomar conhecimento do que é reprimido; todavia ela já é uma suspensão (Aufhebung) da repressão, apesar de não, obviamente, uma aceitação (Annahme) do que é reprimido.”[6] Em outras palavras, “tomar conhecimento do que é reprimido” não é realmente do que se trata a análise.

Também seria equivocado assumir, entretanto, que a verdadeira Aufhebung (analítica) equivaleria (para Freud) a algo como uma aceitação consciente do conteúdo reprimido. Em apenas algumas linhas adiante Freud complementa: “no curso do trabalho analítico nós [frequentemente] obtemos sucesso em também conquistar a negação, e em trazer uma completa aceitação intelectual do reprimido; mas o processo repressivo em si ainda não está removido (aufgehoben) por isso”.[7]

Freud chegou a essa diferença entre a simples suspensão da repressão e uma maneira de trabalhar através dela (trabalhando com ela, ao menos até certo ponto) bem cedo; isto já estava em jogo na sua rejeição da hipnose como uma técnica adequada pela qual primeiro – no estado de hipnose – estabelecemos o conteúdo reprimido, e então – quando ela está acordada – fazemos ele ser sabido para o sujeito. Freud percebeu que isso simplesmente não funciona.

Seja o que o verdadeiro Aufhebung freudiano (digamos, um bem sucedido resultado da análise) possa ser, é claro que ele não pode ser simplesmente uma operação realizada no conteúdo reprimido, mas algo que envolva ativamente a repressão (o processo repressivo) em si, aproximando-a a um tipo de movimento dialético, usando-a contra si mesma, por assim dizer;  sendo o movimento dialético, nesse caso, um movimento que preserva e trabalha com o que nem é nem não-é, com algo que não conta (nem mesmo “para nada”).[8]

Agora, se considerarmos a repetitiva insistência de Hegel de que a Aufhebung significa ao mesmo tempo negar e preservar, não é deveras impactante como a própria Verneinung parece ser em um primeiro momento uma encarnação quase cômica (“mecânica”) dessa mesmíssima definição? Definida como “uma maneira de tomar conhecimento do que é reprimido”, enquanto preservando “o que é essencial à repressão”, a Verneinung de fato parece funcionar como uma comédia da Aufhebung (da repressão). Será realmente isso? Ou antes a Verneinung corresponde mais ao que Hegel chama de “negação abstrata”?

Poderia parecer que que sim à primeira vista. “Negação Abstrata” é definida na Ciência da Lógica como o que um determinado Ser não é. E podemos ver como isso ressona com o Freudiano “isso é o que eu não sou.” (por exemplo: “eu não sou a pessoa que quer lhe insultar”). Podemos então dizer que, em ambos os casos, o que um Ser Determinado é, depende do que ele não é para sua própria determinação. Contudo, também podemos imediatamente ver que com a Verneinung isso significa algo ligeiramente diferente do que significa no caso da negação abstrata de Hegel. Posto rapidamente: o que (eu digo que) não sou, me determina não apenas negativamente (como na negação abstrata: eu sou o outro disso), mas também por seu próprio direito, diretamente. De certa maneira, eu sou o que eu digo que não sou. Nós estamos realmente mais próximos aqui de uma “negação da negação”.

Nesse sentido a Verneinung já é uma Aufhebung (ainda que uma “falsa”), e não simplesmente uma negação abstrata. Poderíamos também dizer: o inconsciente é estruturado como uma falsa Aufhebung. A outra coisa importante, contudo, é que se a Verneinung aparece então como uma falsa Aufhebung da repressão, enquanto que a análise deveria revelar sua Aufhebung adequada, não devemos nos esquecer que a Verneinung é ao mesmo tempo a coisa mesma a partir da qual a análise se desenvolve em uma direção que vai efetivamente fazer algo à e com a repressão. Ou, em outras palavras: a “verdadeira” Aufhebung necessariamente começa como uma “falsa”, ela necessariamente começa como uma comédia de si mesma.  A grande virada prática e teórica de Freud foi encarar essa comédia bem a sério. E algo similar poderia talvez ser dito para Hegel: Não seria a Fenomenologia da Espiritualidade uma Comédia do Espírito, levada com toda a seriedade filosófica?[9]

Essa ambiguidade da Verneinung (o fato de que ela aparece como uma comédia da Aufhebung, de forma que ela já carrega em si mesma uma Aufhebung verdadeira) se torna ainda mais evidente se pormos lado a lado os seguintes elementos conceituais de Freud e Hegel. No caso da Verneinung o próprio símbolo indiferente, universal, da negação, é o portador do “imaculado” do singular, da marca distintiva similar ao selo “made in Germany” (é por causa do “não” que esse ou aquele conteúdo em particular acaba não sendo simplesmente indiferente; ao mesmo tempo, a negação, o “não” de alguma forma carrega o sinal da Coisa que o “não” disso é.) O que é preservado nela daquele conteúdo singular (“mãe”) é seu caráter específico (“propriedade”) – aquele do reprimido. Em outras palavras, o que Freud tira dessa particular Verneinung não é: “Ah, mas na verdade era a mãe” (como se isso fosse algo profundamente significante em si mesmo) mas, antes: “algo apareceu aqui, nesse nexo, que é da ordem do reprimido” (“mãe” torna-se interessante para a análise porque é marcada pela repressão e não porque “mãe” é supostamente sempre significante na análise. Em outras palavras, o que Freud tira desse episódio não é essa ou aquela coisa (“mãe”), mas uma peculiar qualidade/propriedade daquilo (“reprimido”).

É bem impressionante o quão semelhante a isso é a configuração na qual a primeira Aufhebung toma lugar na Fenomenologia do Espírito de Hegel, quando o dilema inicial da certeza-sentido é “superado” nos domínios da “percepção”. O que é esse dilema? Hegel famosamente começa com o que usualmente nos parece mais imediatamente certo, pontuando a impossibilidade de dizê-lo. Eu vejo uma árvore e digo “isso é uma árvore”. Vejo através da janela e digo “agora é noite”. Contudo, se eu olhar em outra direção (da árvore) ou deixar algum tempo passar, essas afirmações não serão mais verdade. Tudo o que permanece certo da certeza-sentido são palavras como “aqui”, “isso”, “agora”, que – em sua própria negatividade– são o universal.

“Obviamente,” escreve Hegel, “nós não visamos o Isso universal ou o Ser em geral, mas nós pronunciamos o universal; em outras palavras nós não dizemos estritamente o que queríamos dizer nessa certeza-sentido. Mas a linguagem, como vemos, é mais verdadeira; nela, nós mesmos refutamos diretamente o que queríamos dizer (…) simplesmente não é possível, nunca, para nós dizer, ou expressar em palavras, um ser sensual que queríamos dizer”.[10]

Essa é a primeira introdução de uma discrepância fundamental que irá propelir o processo dialético através de toda a Fenomenologia. É a primeira “forma” dessa divergência, que – como dito acima – é resolvida através da passagem da certeza-sentido à percepção. Como? Aqui está a citação crucial que deveria nos lembrar diretamente Freud:

“O Isso é, assim, estabelecido como não Isso, ou como algo suprassumido (aufgehoben); e, por isso não como Nada, mas como um Nada determinado, o Nada de um conteúdo, nomeadamente do Isso. Consequentemente, o elemento-sentido ainda está presente, mas não da maneira em que era suposto estar na (posição de) certeza imediata: não como o item singular que “se quis dizer”[11], mas como um universal, ou como aquilo que será definido como propriedade. A suprassunção (Aufhebung) exibe seu verdadeiro duplo sentido que nós vimos no negativo: é de uma só vez um negar e um preservar.”[12]

Freud toma a Verneinung como sendo precisamente “um nada determinado” que pode nos trazer, na análise, não ao item singular que “realmente” significava, mas a uma propriedade universal de afirmações proferidas dessa maneira, e essa propriedade é aquela do reprimido. O Indiferente, o símbolo universal da negação em si, conseguiu apresentar, produzir, alguma característica do conteúdo original dispensado/ negado – ainda sim uma característica que não estava simplesmente lá, discernível nesse conteúdo no princípio.

 O que é preservado é, assim, algo que somente vem à luz (ou, mais precisamente: que somente vem a ser algo, ou parte de algo) no processo mesmo de sua negação. Não é que uma das propriedades do objeto “original” seja preservada; mas que alguma propriedade essencial do objeto primeiro emerge (na realidade) nesse estágio. Podemos, portanto, ver que mesmo se ela começa como uma comédia da Aufhebung (ou talvez até mesmo porque ela começa como comédia), a Verneinung – quando olhada pela perspectiva freudiana – acaba sendo bem menos superficial e de mais longo alcance do que parecia.

E isso nos permite agora levantar a questão de se não poderíamos também ver a Aufhebung (hegeliana) como algo essencialmente duplo: como um movimento (uma “operação” dialética), mas também como um modo de ser de algo que não possui outro ser fora desse movimento (“operação”). Em outras palavras, e nessa perspectiva, a questão da Aufhebung não seria somente, ou simplesmente, uma questão sobre o resultado (que é uma questão sobre o que sobra ali depois de sua operação), mas também uma questão de algo imanente a ela: o que é exatamente isso que essa “operação” especulativa, dialética, agarra, e para a qual dá alguma forma de ser, com e dentro de sua própria estrutura e movimento? O que é isso que ela continua “preservando” (em todos estágios) – qual é o status desse algo?

Nós não estamos aqui lidando precisamente com algo no ser que não é inteiramente ser, algo não-nascido que não tanto espera nascer quanto influencia e molda o ser daquilo que é nascido? Não seria por isso que ela envolve esse terceiro elemento (que, por definição, “não se presta a ontologia”, embora seja inseparável do ser) que, num processo dialético, cada “próximo” passo traz à tona a verdade do anterior? Esse elemento não é a verdade que é revelada no próximo passo, antes, ele é o ponto de vista (uma perspectiva singular) do qual uma verdade pode ser vista.

Ele também não é uma espécie de objeto metonímico que impulsiona o movimento dialético adiante porque é o único ponto que não pode ser aufgehoben; o movimento da Aufhebung não está atrás desse elemento/ponto, como se o perseguisse, mas é gerado nesse/desse ponto (ao qual também dá sua forma). Ele é gerado no ponto do hiato mesmo do espírito o qual, em Hegel, toma a forma de uma repetida, recorrente, divisão em dois da realidade do espírito – e nós iremos retornar a isso. O que então está em jogo não é “o que permanece” (que é basicamente como Derrida e Nancy leem isso)[13], algo que o espírito e seu movimento podem nunca inteiramente digerir e liquidar (e o que então leva o movimento adiante), mas algo que estritamente falando só vem a ser dentro/com esse movimento – ele vem a ser (“é produzido”) como um elemento heterônimo desse (e a partir desse) movimento em si.

O que vem a luz nesse ponto é também a diferença entre conhecimento (correto) e verdade. De um lado, há o conhecimento que, apesar de correto, não possui implicações ou consequências (para a análise). Essa é a situação em que podemos “trazer uma completa aceitação intelectual do reprimido; porém o processo repressivo em si mesmo não está ainda removido (aufgehoben) por isso”. E, do outro lado, há o conhecimento como verdade, conhecimento que “faz lugar” à própria negatividade que o produziu.

Para esperançosamente ilustrar isso de forma mais eficiente, vamos agora introduzir mais outra curta, porém brilhante peça da escrita de Freud, seu artigo sobre fausse reconnaissance (“recordação/memória equivocada”). Como veremos, o fenômeno da fausse reconnaissance tem uma estrutura homóloga a da Verneinung, negação, embora tome a forma da afirmação.

Deixe-me citar o primeiro parágrafo do artigo de Freud, que é também um exemplo/esboço do que poderíamos chamar do processo dialético de Freud na análise:

“Não com pouca frequência acontece, no curso de um tratamento analítico, do paciente, após reportar algum fato de que se lembrou, continuar dizendo: ‘Mas já lhe disse isso antes’ – enquanto o próprio analista sente-se certo de que é a primeira vez que escutou a estória. Se o paciente é contrariado quanto ao ponto, ele irá frequentemente protestar energicamente que ele está perfeitamente certo de que está correto, que ele está disposto a jurar, e assim por diante; enquanto que a própria convicção do analista de que o que ouviu é novo para ele se tornará correspondentemente mais forte. Tentar decidir a disputa mandando o paciente se calar ou vencê-lo com protestos seria um procedimento bem pouco psicológico. É um ponto pacífico que um senso de convicção da exatidão da memória de alguém não possui valor objetivo; e, uma vez que uma das pessoas em questão deve necessariamente estar errada, pode tão bem ser o médico quanto o paciente que caiu vítima de uma paramnésia. O analista admitirá tal ao paciente, sairá do argumento, e adiará a resolução do ponto a uma ocasião posterior”.[14]

De fato, isto soa quase como o começo da dialética da “Dominação e Escravidão” (“Senhor e Escravo”): a verdade só pode advir por um adiamento (da decisão sobre quem está certo e quem está errado), ao pôr as coisas em movimento, e assim permitindo-as desenvolver sua própria verdade (que não está simplesmente lá desde o princípio). Nenhuma das duas convicções deveria ser “colocada para morte” (derrotada) se quer a chegar à verdade do que está de fato em jogo.  Além do mais, a verdade virá do desenvolvimento da convicção “errada” (o desenvolvimento da posição do escravo no caso de Hegel), enquanto que uma insistente asserção da convicção “verdadeira” pode apenas acabar como conhecimento vazio, inútil e indiferente (apesar de “correto”). (Como Hegel coloca: se a luta termina na morte de uma ou de ambas as apartes envolvidas, “os dois deixam um ao outro livres apenas indiferentemente, como coisas”.)[15]

Mas o que nos interessa aqui primeiramente e no mais é a lógica do fenômeno da fausse reconaissance (que inclui coisas como déjà vu, déjà éprouve, déjà entendu, déjà raconté), pois essa lógica é sem dúvida impressionantemente similar a aquela involvida na Verneinung.  Assim é como podemos colocá-lo tão claro quanto possível: como no caso da Verneinung, a repressão persiste não simplesmente apesar da aceitação do reprimido, mas com sua ajuda. O que acontece no caso da fausse reconnaisance é que um “evento” presente, contemporâneo do inconsciente (um achado inesperado, surpreendente) aparece na forma de uma memória de um fait accompli (de algo que parece ter sido “encontrado de novo”), quer dizer, na forma de algo que não é de imediato interesse (a nós). Algo que acabou de surgir é, assim, visto como que pertencendo a alguma outra época (ou temporalidade). Estamos olhando diretamente para ele (está bem ali, diante de nossos narizes), ainda sim o vemos como que advindo de muito distante, como estranho e indiferente. A fausse reconnaissance paradoxalmente mantém o caráter não-familiar (estranho, estrangeiro, outro, indiferente) do que apareceu graças a sensação mesma de reconhecimento e familiaridade (a peculiar forma da afirmação cumpre aqui a mesma tarefa da negação no caso da Verneinung). Poderíamos também dizer que ela a mantém através do corte da coisa de sua articulação possível como presença (no tempo presente) na realidade: pois essa articulação já aparece pela primeira vez como sua própria memória. E o ponto de Freud é, novamente, que o que nos chega dessa maneira estranha, indiferente, é geralmente algo essencial.

Porém, aqui mais uma vez, não devemos cometer o erro de projetar tudo no conteúdo (traumático), como se esse conteúdo fosse um ser completo (um ser plenamente constituído) contra o qual o sujeito está se defendendo, pondo um escudo. Antes, nós devemos tomar esse escudo mesmo como o próprio modo de ser do “não-nascido” (que é desse conteúdo específico), como sua manifestação genuína. Não estamos lidando com algo que é impedido, por alguma outra agência, de se articular como presença e no tempo presente; ele é impedido de fazê-lo por seu próprio (não-)status ontológico paradoxal. Esta é precisamente a diferença entre o inconsciente entendido como o sujeito não estando a par de algo, e o inconsciente no sentido Freudiano mais forte, que ativamente cria diferentes formações do inconsciente. É por isso também que o inconsciente pode somente aparecer como algo que interrompe, descontinua a presença e o tempo presente, e não simplesmente como um conteúdo alternativo.

Também, o inconsciente não é algo que é “sempre-já” reprimido – como que reprimido em algum passado inalcançável, ou no modo de uma “ constituição transcendental”; o modo “sempre já” não descreve propriamente seu status ontológico: não é que ele não possa nunca estar “presente”, “contemporâneo”, “acontecendo de fato”, que nunca possa aparecer como ser – ao contrário, ele aparece o tempo todo, porém precisamente como uma descontinuidade (do presente, e do ser). Ele aparece como uma complicação, uma torção do ser (presente) enquanto tal.

O que é então crucial enfatizar em relação a esse tipo de fausse reconnaissance é, como no caso da Verneinung, o seguinte: ela não é simplesmente uma maneira de manter algo para trás, mantendo-o desligado da realidade apesar de (ou pela via mesma de) seu reconhecimento; é também um meio pelo qual o que é reprimido pertence a (é parte de) essa mesma realidade (influenciando sua própria estrutura).

As telas da falsa memória, ou o “não” da Verneinung não mediam entre meu consciente e a coisa (“mãe”); ao contrário, eles fazem de algo que começa como um (mero) pensamento (da minha mãe) uma coisa: eles a i-mediam, fazem ela i-mediata. Se as coisas são sempre mediadas pelo nosso pensar sobre elas (se elas são pensamentos) então aqui nós testemunhamos outro processo, ou o mesmo processo de outra direção: a de um pensamento tornando-se uma coisa. E temos que partir (e seguir) daí, ao invés de concebê-la (e a nós mesmos com isso) como “um mero pensamento” (ou meramente uma memória equivocada, errada). A memória equivocada É a objetiva e imediata presença dessa Coisa, está última não pode ser mais “objetivamente presente”.

A fausse reconnaissance não é um meio pelo qual algo (que seria por demais traumático em sua presença imediata) é mediado pela tela da falsa memória. O que está em jogo é ante que a falsa memória É a imediata presença (é a externalização mesma, Entäu erung hegeliana) da essência do conhecimento traumático em si, do traumatismo como tal.

Esse movimento ou mudança de perspectiva é obviamente profundamente hegeliano. Se olharmos, por exemplo, a dialética Hegeliana do senhor e do escravo, o que corresponderia nela ao movimento freudiano em sua leitura da Verneinung e do fenômeno da fausse reconnaissance? O que corresponde a ela é a seguinte descrição de Hegel sobre o que a luta da vida-e-morte pressupõe: “seu (consciência-de-si) ser essencial é presente a ela na forma de um ‘outro’, ele está fora dela mesma e tem de livrar-se de sua auto-externalidade”[16]. Essa aparição da essência de algo na forma de um “outro externo” é a forma mesma da Verneinung. Não é, como somos tentados a pensar, o movimento de atacar o outro, de aniquilá-lo (matar) que corresponde ao movimento da (Freudiana) “negação”, mas o próprio arranjo que essa configuração implica, e pressupõe: nomeadamente, o consciente de si como que dividido em dois, e minha essência aparecendo como um ser independente fora de mim mesmo.

Contudo – e esse é realmente o lampejo de genialidade de Hegel – a questão não é simplesmente que conquanto ela pareça ser um ser independente, exterior, ela seja em verdade somente uma “projeção” de uma (e somente uma) essência interior da própria consciência-de-si (não é que devamos nos “reconhecer” nesse outro). O ponto de Hegel é, ao contrário, que esse exterior tem sua própria realidade, existe como outro ser (Similarmente a isso, Freud, no caso de alguém dizendo “agora você irá achar que quero dizer algo ofensivo, mas na verdade não tenho essa intenção”, não põe um fim a discussão afirmando: “Ah, mas isso é VOCÊ, VOCÊ quer me insultar”. Ou: “Essa sua memória está errada, você nunca me contou sobre essa coisa antes”. Ele não tenta negar a realidade do que aparece aqui. Ao invés disso, ele toma essa realidade como esta aparece e a segue daqui). Isso é o porque – voltando a Hegel – deste último insistir, por todo o tempo e com alguma intensidade, na estrutura da Verdopplung e Doppelsinn: um movimento duplo de uma coisa como um movimento de duas coisas, que é ele mesmo redobrado.

”Esse movimento do consciente-de-si em relação a outra consciência de si tem dessa maneira sido representado como a ação de uma consciência de si, mas essa ação do único tem em si mesma a dupla (gedoppelte) significância de ser ambas sua própria ação tal qual a ação do outro. Pois o outro é igualmente independente e autônomo, e não há nada nele de que ele não seja em si mesmo a origem”.[17]

E esse é motivo pelo qual  o “agir unilateral seria inútil; pois o que deve acontecer, só pode efetuar-se através de ambas as consciência”.[18]

Essa, penso eu, seria uma maneira muito boa de ler Freud. A Verneinung (negação) induz duas realidades simétricas (mãe/não-mãe), ambas são reais e o fato de uma ser “errada” não a torna menos real (parte da realidade). E é também crucial enfatizar que o inconsciente não é simplesmente uma dessas duas realidades (da mesma forma que “senhor” e “escravo” não poderem ser vistos como o consciente e o inconsciente, ou o “escravo” como o inconsciente (verdade) do senhor). O inconsciente não é uma dessas duas realidades, ele é o que faz delas duas, e o que as conecta (com suas formações) em suas próprias incompatibilidades (lógica e real). O sujeito do inconsciente não é aquele que secretamente pensa na mãe dele, mas o sujeito do mecanismo da negação; ou, se tomarmos a configuração simples que Hegel também colocou bem no começo da Fenomenologia: Eu quero dizer algo, mas de fato digo algo diferente. O inconsciente não é simplesmente a diferença entre o que quero dizer e o que de fato digo, mas refere-se ao trabalho/processo ocorrendo entre os dois, e que não pode ser reduzido a qualquer um dos dois lados sem o risco de perder algo um tanto essencial.

A Psicanálise claramente procede trabalhando com duas realidades ou textos (“manifestos” e “latentes”). Toma ocorrências tais como a Verneinung seriamente, e segue, até mesmo reforça. a divisão que elas introduzem na narrativa. Ela vê a divisão como um sinal de conflito ou contradição que não é simplesmente uma contradição entre os dois lados envolvidos, mas a contradição que estrutura o campo mesmo no qual elas aparecem. Esse é o porque de não ser suficiente estabelecer qual lado está certo e qual está errado. Na verdade, a questão de quem está certo até acaba estando bem além do ponto. Como acontece em Hegel. O que importa é que algum conhecimento vem a ocupar um certo lugar (o lugar da verdade), e assim muda a maneira pela qual a repressão pertence a (é parte da) realidade do que está lá.

É precisamente por isso que os procedimentos freudianos se encaixam perfeitamente no que Hegel chama de “o especulativo em ato”:

“A superação da forma da proposição não deve acontecer somente de maneira imediata, através do mero conteúdo da proposição. Ao contrário, esse movimento oposto deve encontrar expressão explícita; […] isso sozinho é o especulativo em ato [das wikliche Spekulative], e somente a expressão desse movimento é uma exposição especulativa [Darstellung].”[19]

Se a mera suspensão da repressão (a inscrição do conteúdo reprimido na realidade consciente) não muda muita coisa, é porque ela falha em localizar e em nomear o ponto de repressão nessa realidade mesma (que é o ponto do inconsciente). Em outras palavras, o crucial é nunca simplesmente reconstruir a outra história, reprimida, mas trabalhar na direção de circunscrever o ponto na realidade presente onde a repressão (de algum aspecto dessa realidade) está sendo ativamente mantida. É somente aqui que chegamos a algo como a verdade.

Não poderia isso, por sua vez, também ser dito para a Aufhebung Hegeliana?

Seja o que for preservado pela Aufhebung, não é preservado no sentido de que tomamos algo e o conservamos (como que colocando-o em uma caixa e transmitindo-o a um novo estágio dialético); ele é preservado ao ser ativado como o motor do movimento dialético. A Aufhebung ativa o ponto mesmo que separa as duas realidades (como os pontos da Verneinung ou de uma memória errada), coloca esse ponto para trabalhar. Ela relaciona algo e seu outro no mesmo (novo) Ser. Não por englobá-los em um todo maior contendo ambos, mas por uma mudança/troca qualitativa que os “une” pelo ponto de vista produzido por sua própria contradição. Ao realizar isso ela muda a própria maneira pela qual eles são determinados.


[1] Ver Hyppolite 2006.

[2] Freud 1984, p. 437.

[3] Hyppolite 2006, p. 747.

[4] Freud 1984, p. 438.

[5] Lacan 1987, pp. 23, 29,39.

[6] Freud 1984, p. 438.

[7] Ibid. Isso, novamente, seria uma “má” versão da “negação da negação” Hegeliana, a maneira de não entendê-la …

[8] Se reduzirmos a noção Freudiana de inconsciente a diferença entre um conteúdo que está presente ao consciente e um conteúdo que está “reprimido dele”, se o reduzirmos a oposição entre ser ou não ser consciente de algo (ou entre aceitar conscientemente ou não aceitar algo), nós o perdemos inteiramente. O processo repressivo é algo diferente do conteúdo reprimido (e, diga-se de passagem, é também uma lição crucial para mantermos em mente nesses tempos politicamente agitados. Poderíamos dizer que enquanto a “esquerda liberal” tem estado, por um longo tempo, preocupada em “suspender a repressão”, e nos fazer aceitar o conteúdo reprimido (aceitar e tolerar o Outro, as diferenças…), o processo repressivo continuou absolutamente intacto. No máximo, intensificou.)

[9] Não surpreende, então, que um bom número de capítulos na Fenomenologia do Espírito soem como perfeitos títulos de comédia: “Senhor e Escravo”, “A Consciência Infeliz”, “Prazer e Necessidade”, “dissemelhança ou Duplicidade”, “A Bela Alma”…

[10] Hegel 1977, p.60.

[11] Como em Freud, não interessa se o analisando realmente quis dizer “mãe”.

[12] Hegel, p 68. Ou, como Hegel pôs no “marco especulativo”: “O que é superado é, assim, não reduzido a nada. Nada é imediato; o que é superado, de outro lado, é o resultado da mediação; é um não-ser mas como um resultado que teve sua origem em um ser. Ainda tem, portanto, em si a especificidade da qual origina” (estamos emprestando a tradução de Jean Luc Nancy de Nancy 2001, p. 25.).

[13] ver por exemplo Nancy 2001.

[14] Freud 1955, p. 201.

[15] Hegel 1977, p. 114.

[16] Hegel 1977, p. 114.

[17] Ibid., p. 112, ênfase minha.

[18] Ibid.

[19] Hegel 1977, p. 40.


Bibliografia

Freud, Sigmund 1955, “Fausse reconnaissance (déjà raconté) in psycho-analytic treatment”, SE vol. XIII, London: The Hogarth press.

Freud, Sigmund 1984, “Negation”, in: Beyond the Pleasure Principle, The Ego and the Id and other works, The Pelican Freud Library, vol. 11, Harmondsworth: Penguin Books.

Hegel, G. W. F. 1969, Hegel’s Science of Logic (trans. A. V. Miller), New York: Humanity Books.

Hegel, G. W. F. 1977, Phenomenology of Spirit (trans. A. V. Miller), Oxford: Oxford University press.

Hyppolite, Jean 2006, “A Spoken Commentary on Freud’s ‘Verneinung’”, in: Jacques Lacan, Ecrits, London & New York: W. W. Norton & Company.

Lacan, Jacques 1987, The Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis, Harmondsworth: Penguin Books.

Nancy, Jean-Luc 2001, The Speculative Remark, Standford: Srandford University Press.

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