Heribaldo Maia, Graduando em História UFPE
No Brasil a crise, não o progresso, se tornou ordem, e em nome dela se faz as maiores barbaridades. Com o golpe que alçou ao poder os setores mais antipopulares, um retrocesso na vida do povo que corrói as chances de vida de milhões ocorre de forma, agora, acelerada: é recorde de desemprego, milhões de pessoas sem moradia, perda de direitos históricos, desmonte do pouco que sobrou do patrimônio nacional, chantagem militar, apologia política do judiciário e extermínio de militantes. Esse conturbado momento faz a esquerda elaborar diversas análises de conjuntura, debates sobre projetos nacionais, etc. Tudo isso é muito importante. Mas a esquerda, em crise que vem de longa data e se evidencia com a derrocada do Projeto Democrático Popular, por vezes, na busca desesperada de algum apelo que sensibilize o povo, conclama, num retorno à Marx: “trabalhadores, uni-vos”. Mas aqui nos deparamos com, o que talvez seja, uma questão central: o que nos une?
Durante muito tempo a esquerda acreditou que as sucessivas crises do capitalismo, que levaria a um arrocho cada vez maior nas possibilidades materiais de reprodução da vida das camadas mais pobres, ou seja, que permitira ao povo a percepção concreta da impossibilidade de garantir minimamente a vida, seria o impulso cognitivo primário do qual se constituiria os laços políticos em prol de processos de emancipação social. Tal cenário (apesar de ter sua importância cognitiva) se evidenciou muito mais complexo, já o capitalismo se mostrou muito mais flexível em termos de assimilar reivindicações e, a partir disso, gerar novas coerções cada vez mais sutis e, por isso mesmo, subjetivas.
É importante observar que o surgimento de formas mais cirúrgicas de exercer o poder não elimina a coerção via violência direta e suas instituições, como as penitenciárias por exemplo. O que mudou é como esses aparatos são usados e, consequentemente, a percepção subjetiva que tais dispositivos exercem na constituição das pessoas – o que tem, vale ressaltar, um caráter de classe (e portanto de raça, gênero, sexualidade e endereço) inegável, onde se invisibiliza e visibiliza determinado aspecto coercitivo a depender de qual camada social se quer atingir e com que objetivo. Mas de modo geral, os dispositivos, que antes eram atuavam para controlar, disciplinar e moldar, hoje, mesmo de foma contraditória, se guia por uma lógica de inclusão vs exclusão – apenas os que precisam ser excluídos pelo poder são os que sentem sua presença, para os demais ela é imperceptível.
Isso muda a forma em que as pessoas subjetivam a realidade desses dispositivos e percebem a coerção. Os sujeitos expostos aos aparatos excludentes sabem exatamente que são alvos e por sob quais condições correm mais ou menos risco de exclusão (exemplo: a política de “guerra as drogas” e o encarceramento em massa). Mas isso não significa que consegue-se localizar a força que controla os interesses que sustentam todo o poder, já que o poder que oprime se tornou menos localizável. O capital se diluiu na mesma medida em que sua lógica se totalizou na sociedade, e é justamente esse movimento aparentemente contraditório que permitiu sua invisibilidade. Se antes o poder do capital era facilmente associável ao burguês cruel que explorava diretamente a todos e controlava pessoalmente os mecanismos de poder impondo suas vontades abertamente, hoje, num mundo em que “o indivíduo se autoexplora”[1] – até pelas mudanças na estrutura do mundo do trabalho e financeirização da economia – a figura detentora do poder econômico e coercitivo se tornou menos visível, observamos apenas seus tentáculos. Já na década de 1980, José Paulo Netto coloca com maestria, em seu livro ‘Capitalismo e reificação’ tal fenômeno:
“a disciplina burocrática transcende o domínio do trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova. E mais, fenômeno peculiaríssimo: a visibilidade do poder opressivo (outrora, por exemplo, o patrão capitalista) se esvaneceu – ele é tanto mais eficiente em suas manifestações econômicas, sociais, políticas e culturais quanto menos é localizável: mais funciona, menos é identificável. A ubiquidade desse poder, dessa weberiana autoridade “racional” e sem rosto, se instala nos trilhos por onde escorre o cotidiano (porque, aqui, a vida é o cotidiano, esse produzir-se e reproduzir-se num eterno retorno, numa tautologia plena) – aparece nas ações na bolsa, nos regulamentos, no talonário de cheques, nas portarias, nos documentos, nos certificados, instala-se na parafernália que valida a cidadania. Está em todas as partes e não reside em lugar algum. Escamoteia os fluxos, as continuidades e as rupturas: dá ao viver a sequência da later-mágica – normas, trabalho, lazer, etc., tudo é uma mescla inorgânica cujo único enlace é a sucessão no tempo e no espaço: a vida é uma justaposição de objetos, substâncias, implementos. A própria fantasia, infinito do possível, se abastarda: fuga, perde o húmos da historicidade. A ubiquidade do poder – imaterial, gasosos e onipotente – esconde o poder na ubiquidade.”[2]
Essa mudança foi fundamental para que o neoliberalismo tivesse êxito em seu processo de implementação. Mas houve outro passo importante, os aparatos disciplinares que deram lugar a aparatos de exclusão, precisavam, para que a violência da exclusão não gerasse impulsos para constituição de vínculos políticos, de uma coerção muito mais profunda e indireta: nos afetos e psíquica. Em entrevista ao Opera Mundi, Domenico Losurdo faz o alerta:
“Devemos tomar consciência dessa nova situação: das ideias e emoções, com uma tecnologia e psicologia muito refinadas e sofisticadas. Nesse sentido, o aparelho militar do imperialismo ficou mais forte não só no domínio militar clássico, mas no plano multimidiático. Armas midiáticas provocam a opinião pública a ser favorável ao início de uma guerra”[3].
O neoliberalismo sob essa perspectiva passa a ser analisado não somente como uma política econômica para o Estado, mas como um, nas palavras de Margaret Thatcher, “método, (cujo) o objetivo é conquistar corações e mentes”. O objetivo não é mais manter o sujeito sob controle ou disciplinado, mas criar um sujeito adaptado a dinâmica neoliberal para o qual essa forma de viver seja um desejo pessoal subjetivo que precise realizar, cria-se o sujeito neoliberal[4].
Diante desse cenário em que as estruturas de poder criam uma nova gramática de reconhecimento, em que esse novo sujeito até se vincula à lutas por inserção nas relações sociais vigentes, buscando que o Estado ofereça a possibilidade de ter as mesmas condições de competir no mundo neoliberalismo. Mas poucos conseguem articular tais demandas à pautas universais, já que a articulação concreta entre o Estado neoliberal, que faz a manutenção entre incluídos e excluídos, e o capital que controla tais dispositivos, se diluiu ao ponto de se tornar quase invisível.
O resultado é que não necessariamente os processos desigualdade extrema levam a criação de vínculos políticos. As pessoas entendem que há opressão, mas é ligado, na maior parte das vezes, a um problema que se localiza na cultural e/ou um problema de Estado. Porém a desigualdade, que já se tornou naturalizada, visto que a lógica inclusão/exclusão, não é vinculada ao capitalismo diretamente, mas a essas estruturas antes citadas – por exemplo: há desigualdade econômica entre homens e mulheres porque causa do machismo que permite que mulheres ganhem menos que os homens. Observe que é verdadeira a afirmativa, porém insuficiente para analisar o problema. Há desigualdades econômicas, que terminam por estreitar as condições concretas de vida, e há questões culturais envolvidas nelas (o machismo), porém há de se entender como o capitalismo mantém, reforça e joga com tais aspectos culturais em benefício de sua lógica. Veja que se antes era fácil identificar como isso ocorria, já que o burguês contratava diretamente mulheres com salários gritantemente menores e jornadas muito maiores que os homens, hoje o capitalismo mantém essas desigualdades, mas assimila certo discurso de empoderamento, criando uma imagem de que: ‘temos um problema que é o machismo, mas estamos juntos lutando contra isso, aos poucos, sem precisar mudar nada, vamos mudar’. Outro ponto é que a exclusão é, muito vezes, individualizada, vejamos: se o sujeito não consegue emprego e fica em péssimas condições, a culpa é ele que não investiu nele mesmo suficientemente para competir no mercado de trabalho. Essa lógica (in or out) desconsidera qualquer contexto que o sujeito esteja submetido que o levou a não ter condições de competição no mercado.
É nesse ponto que retornamos a questão inicial. O que nos vincula? Se não mais as condições materiais são suficientes para impulsionar vínculos, qual será a “liga” que nos unirá? A resposta, apesar de controversa, pode ser o sofrimento. E uma longa tradição crítica, como Adorno[5] até Honneth, já tinha percebido isso.
Essa tradição de pensamento observou no capitalismo tardio formas de dominação tão intensas, junto com a radicalização da reificação e fetichismo, que subjetivados e somatizados pelos sujeitos gerariam sensações de sofrimento social e, possivelmente, psíquica[6]. Lógico que cada sujeito somatiza a realidade subjetivada de formas variadas, nem sempre levando ao sofrimento mental imediato, mas há no sofrimento social um potencial cognitivo, já que, como nos lembra Freud, todo sofrimento indica que o sofrimento não deveria acontecer. Assim, o sofrer pode impulsionar o sujeito a se livrar a buscar alternativas e identificar as causas de seu incomodo patológico.
Porém há dois problemas: i) por ser um sofrimento oriundo de uma experiência subjetiva e somatizada, seu potencial cognitivo é fraco, e ii) que por si só o sofrimento pode indicar uma demanda de inserção, e assim terminar por conservar as estruturas sociais vigentes, no máximo ampliando o horizonte intersubjetivo de reconhecimento, por exemplo: “as mulheres conviveram por muito tempo com uma pressão social que exigia a submissão. O aumento de sua autoestima dependia, constantemente, de que cumprisse adequadamente determinados papéis, como o de uma boa dona de casa e esposa”[7], no mesmo texto, em nota de rodapé, continua:
“É interessante mencionar que em um dos – assim chamados – “índices de felicidade”, o país que aparece em terceiro lugar é a Arábia Saudita: um claro exemplo do paradoxo que é a articulação de um sentimento subjetivo enquanto outras evidentes precondiciones não são enchidas, como pode se constatar na violação sistemática de direitos humanos, a opressão da mulher, a falta de liberdade de expressão, etc.”[8]
O sofrimento apresenta, portanto, um duplo aspecto: primeiro denuncia problemas na socialização, onde o sujeito busca inserção e reconhecimento social; mas, aí que se encontra nossa chave, evidencia que é essa mesma socialização que causa lhe sofrimento. Esses aspectos não rebaixam o potencial cognitivo que o sofrimento pode proporcionar para a criação de vínculos políticos. É preciso apenas tomar precauções e pensar formas de transformar esse impulso inicial em possibilidades de vínculos emancipatórios.
Diante de um cenário em que pessoas sofrem para se incluir no sistema e todas as consequências já dita (individualização da dor da exclusão social, dissipação das estruturas de dominação do capital, etc), criar espaços em que o sofrimento seja visto como parte da condição humana, e não como um problema individual, é fundamental. Esse ponto é importante, a troca de experiências pode criar vínculos de solidariedade mútua, empatia e de criar formas de pensar soluções coletivas. É comum ouvir na militância organizada que o espaço de militante não deve se tornar um momento terapêutico (visto os inúmeros problemas de falta de organicidade de diversos militantes que diversas organizações enfrentam, muito por conta do excesso de casos de adoecimento mental). N grande maioria das vezes se trabalha na forma de manter o militante, mas reduzindo suas tarefas; ou afasta-o temporariamente das atividades (obvio que há casos e casos, mas as exceções não podem desmerecer o geral). Apesar de tal debate ser recente nas organizações políticas, é notório que essa forma é a menos eficaz, e por dois motivos: i) por não tratar coletivamente o problema, não no sentido de expor os militantes em seu sofrimento, mas de buscar soluções coletivas em espaços de compartilhamento da experiência, de modo terapêutico (cartático) mesmo, e ii) ao ter tarefas diminuídas ou ser afastado, mesmo que por opção própria, o sujeito se sentirá, por vezes, pior, já que muitas vezes a militância é o espaço onde o sujeito encontra o reconhecimento de grupo (não no sentido egoico do termo), que muitas vezes lhe é negado socialmente[9].
O sofrimento, no sentido mais largo do termo, indica ao sujeito que essa dor, seja mental, seja de não ser inserido e reconhecido, não deveria existir e que, portanto, há algo problemático. Numa época onde depressões, ansiedade, burnout se alastram como epidemias do sofrimento, é que desse sintoma social, que aparece como individual, pois se somatiza nos indivíduos de diferentes formas, pode surgir uma pista interessante para que a esquerda reconstrua sua inserção social, a partir de compartilhamento de experiências de sofrimento, que apontem: i) o caráter transindividual do sofrimento e ii) a possibilidade de transcendência da situação atual em sua radicalidade.
Se levarmos tal proposta a sério, precisamos nos colocar como tarefas aprofundar o debate sobre as causas sociais do sofrimento e, a partir disso, repensar as organizações políticas, mesmo a forma partido[10]. Essa é uma chave que cada vez mais, acredito, deva ser enfrentada com seriedade e sem dogmatismos, como uma possibilidade concreta de reconstrução de uma teoria da ação política. De algum modo Marx intuiu algo nesse sentido quando em seu livro, Sobre o suicídio, afirmou que em uma sociedade em que não vale se a pena viver, precisa ser mudada. Nos resta pensar como transformar a dor de não querer viver em força para mudar o mundo.
[1]https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/07/cultura/1517989873_086219.html
[2] Peço perdão a citação direta, e ainda por cima longa, já que não é o intuito um texto acadêmico, pelo contrário, porém dada, primeiramente a polêmica e complexidade da temática, senti a necessidade de usar referência direta nesse ponto, visto que tal citação exemplifica de forma didática o processo de diluição do poder coercitivo do capital.
[3]http://operamundi.uol.com.br/conteudo/entrevistas/31615/losurdo+producao+das+emocoes+e+novo+estagio+do+controle+da+classe+dominante.shtml%22EUA%20s%C3%A3o%20o%20pior%20inimigo%20da%20democracia%20nas%20Rela%C3%A7%C3%B5es%20Internacionais%22. Importantes contribuições nesse sentido são os livros: ‘O circuito dos afetos’ de Vladimir Safatle e ‘Topologia da violência’ de Byung-Chul Han.
[4]Nesse sentido as pesquisas do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo vêm analisando o neoliberalismo em sua matriz psicológica: https://docs.wixstatic.com/ugd/91f056_26bf4bf615c64588970afe292e7b8827.pdf
[5] Em relação ao pensamento de Adorno, uma boa introdução é o artigo de Axel Honneth, Capitalismo como forma de vida fracassada: esboço sobre uma teoria da sociedade de Adorno: http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/view/6599/4155
[6] Cabe diferenciar essas duas formas de sofrimento e seus vínculos, porém não irei detalhar, visto que o objetivo do texto não é aprofundar nenhum tema, mas colocar elementos para pensarmos juntos.
[7] Campello, Filipe. Límites del reconocimiento. p. 152. In: El paradigma del reconocimiento en la ética contemporánea: un debate en curso. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, Fondo Editorial, 2017
[8]Idem
[9]Nesse sentido a tese de Mestrado de Guilherme Boulos, Pré-Candidato à presidência junto com Sônia Guajajara, importante liderança indígena de nosso país, e líder do MTST, possui valiosas pistas sobre esse problema: file:///C:/Users/078736360868/Downloads/GuilhermeCastroBoulos.pdf
[10]É válido lembrar que na Argentina, o movimento dos Piqueteiros, teve importante apoio de psicanalistas de esquerda que criaram espaços de partilha do sofrimento de ser desempregado e de estar em situação de exclusão social. Já no Brasil, o crescimento das Igrejas Neopentecostais nas periferias, pode ter como base o sofrimento, visto que por ser a periferia um local de grande contradição social e de exposição completa das mazelas do capitalismo brasileiro, que diversas pessoas encontraram, nessas Igrejas, o conforto necessário para seguir a vida, e muitas delas melhoram. Voltando à tese de Mestrado de Guilherme Boulos, num dos depoimentos por ele colhido, a entrevistada disse que frequentava a Igreja porque lá as pessoas faziam aniversário para ela e ela sabia que valia mais que uma sandália.