De “lojinha” à maior exportadora de carne do mundo. A JBS é o exemplo da burguesia nacional

Por César Lignelli[1]

Este artigo tem como objeto apontar o itinerário de criação do Grupo J&F, controlador da JBS, que se transformou na maior empresa de processamento de carnes do mundo e cujas atividades foram fomentadas por políticas de Estado, a partir de créditos do BNDES. Na sequência, será realizada uma crítica ao projeto político denominado neodesenvolvimentismo à luz do ideário de Caio Prado Júnior. 


  1. Introdução

Se, de forma bem rudimentar, pudermos opor as duas principais hipóteses para a formação do capitalismo, especificamente sua inicial acumulação, necessária para fazer girar a “roda da riqueza”, teremos de um lado Marx, com sua explicação a respeito da acumulação primitiva, atrelada aos violentos processos de dominação e, de outro, Weber, que anunciou a ética do trabalho, ligada à ascese protestante, como o vetor central para a fixação do sistema.

Certamente as hipóteses, além de não serem únicas, não são excludentes, como anunciaram seus próprios idealizadores, mas nos ajudam a contextualizar e refletir sobre a formação da burguesia e a constituição de seu poderio econômico, que extravasa os estreitos limites de sua atuação meramente mercadológica, para se espraiar na superestrutura da sociedade não apenas como singela consequência, mas também como o aparato estatal que contribui neste movimento.

Com base nestes marcos e à luz da leitura de Caio Prado Júnior a respeito da formação da burguesia nacional, ou daquilo que se aproximaria disso, procuramos desvendar, ainda que em linhas bem iniciais, dados os limites do trabalho, os caminhos que percorreu a JBS, de origem nacional, para chegar à condição de maior empresa global de processamento de carnes (FRANCO, 2015).

A escolha não foi arbitrária porque o frigorífico, que era apenas uma média empresa há não muito tempo atrás, teve um crescimento significativo em uma década, demonstrado pelos números de seu faturamento, que saltou de R$ 4 bilhões em 2006, para R$ 170 bilhões em 2016 (ALVARENGA/GAZZONI, 2017).

No entanto, e este é o principal ponto do presente artigo, a formação do maior frigorífico do mundo só foi possível pela atuação direta do Estado brasileiro, a partir de grandes empréstimos efetuados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), permitidos pelas políticas definidas pelos governos petistas, que resolveram fomentar aquilo que se alcunhou de “campeãs nacionais” (GARCIA, 2011).

A atenção à JBS também decorre do recente noticiário, não só ligado à delação efetuada pelos seus principais acionistas, que relataram um esquema de corrupção que se pautava, basicamente, pelo pagamento de suborno em troca de intervenções estatais que atendessem os interesses da companhia.

O fato que pretendemos dar enfoque foi a situação analisada e julgada pelo Tribunal de Contas da União, que identificou que os empréstimos do BNDES ao grupo econômico foram prejudiciais aos cofres públicos, pois o método de pagamento teria sido o de aquisição de ações da empresa, realizadas de forma supervalorizada. (TCU, 2017)

Ao final, na mesma linha adotada por Prado Júnior, procuraremos fazer um paralelo de sua análise, realizada no século passado sobre o sentido da nossa colonização e os limites da formação da “nossa burguesia”, com o itinerário traçado pela JBS, para concluir que os processos são extremamente assemelhados e os limites impostos pelo capitalismo mundializado se impõem.

  1. JBS. A “lojinha” que virou líder mundial de processamento de carne

O termo “lojinha” é emprestado do principal acionista da JBS, Joesley Batista que, ao atender os anseios do senador Aécio Neves, que requisitava um “empréstimo” de R$ 2 milhões, usou a palavra para explicar que sacaria o numerário de um de seus estabelecimentos – um açougue (BOMFIM, 2017). A conversa, gravada pelo próprio interlocutor, não deixa de ser emblemática por vários sentidos: a forma prosaica da “nossa burguesia” ao tratar dos negócios; o patrimonialismo, sempre presente; a seletividade da Justiça brasileira que, mesmo diante do áudio (devidamente autorizado pelo Judiciário), manteve o Senador não só fora da cela, mas com seu mandato.

A conversa, mantida pouco antes do início dos estertores da onda do “milagroso” crescimento da empresa, nos serve de ponto de partida para desenhar a trajetória da JBS. Joesley Batista, dono da empresa, confessou que nunca foi “petista”, mas ofereceu seu negócio para ser um campeão nacional, assim como queria o governo Lula. A menção às campeãs nacionais, já referenciada anteriormente, diz respeito à política “pela qual o BNDES assumiu a tarefa de alavancar empresas privadas com dinheiro público” (SILVA, 2017, p. 22), iniciada a partir da gestão de Guido Mantega à frente do Banco Nacional, mantido até 2006 e que permaneceu com a assunção de Luciano Coutinho no mesmo cargo[2].

Mas a história da empresa começou há 60 anos, numa singela casa de carnes em Anápolis/GO, capitaneada pelo patriarca José Batista Sobrinho. Em 1957 comprou o primeiro local de abate próprio e se transferiu para Brasília. Passados cinco anos, Zé Mineiro, como era chamado, alugou um abatedouro em Luziânia (GO), o que lhe permitiu produzir, diariamente, o abate de 55 bois. Em 1969 montou seu primeiro frigorífico, chamado de Friboi e, em 1970 e 1972 nasceram seus filhos Joesley e Wesley, respectivamente.

O primeiro salto, muito modesto ainda, ocorreu em 1997, com a aquisição da unidade frigorífica de Barra do Garças e de Andradina, ambas da Sadia e, o que se tornou marca da empresa, com a ajuda do BNDES. Neste período a desvalorização do real frente ao dólar contribuiu para as exportações e, no início do século, suas operações se tornam mais significativas.

Em 2003, quando inicia o primeiro mandato petista no Governo Federal, as empresas dos Batistas ocupavam apenas o 6º lugar no ranking nacional de exportadoras de carnes, atrás da Sadia, Bertin, Seara, Perdigão e Frangosul e seus balanços continham alertas sobre “gravíssimas dificuldades financeiras”. A “sorte”, no entanto, mudou. No mês de dezembro de 2004 o BNDES confere o primeiro empréstimo à JBS na era petista, de R$ 100 milhões.

A partir disso, a recente história da companhia tem uma intrincada relação com o BNDES e foi descrita pelo próprio Joesley Batista, na delação realizada ao Ministério Público[3]:

” […] a JBS apresentou ao BNDES, em junho e agosto de 2005, duas cartas-consulta que, juntas, pleiteavam financiamento no valor de 80 milhões de dólares para suportar o plano de expansão daquele ano. Vic solicitou, para si e para Guido Mantega, e JB prometeu, pagamento de 4% do valor do financiamento, em troca de facilidades com Guido Mantega, inclusive a marcação de reunião e a aprovação da operação financeira.

A operação foi aprovada com grande rapidez […]

Mesmo depois de 2006, quando Guido Mantega se tornou Ministro da Fazenda, foram fechados os seguintes negócios entre a JBS e o BNDES com intermediação de VIC:

(1) Junho de 2007, aquisição, pelo BNDES, de 12,94% do capital social da JBS, por 580 milhões de dólares, para apoio ao plano de expansão daquele ano;

(2) Primeiro semestre de 2008: aquisição, pelo BNDES, de 12,99% do capital da JBS, por 500 milhões de dólares, em operação conjunta com FUNCEF e PETROS, para apoio ao plano de expansão do ano de 2008.

[…]

JB entendeu que deveria discutir valores de propina por cada negócio em que Guido Mantega interviesse em seu favor e que custodiaria, ele próprio os valores. Àquela altura, JB entendia que estava pagando propina para o próprio Guido Mantega.

Foram essencialmente dois, no âmbito do BNDES, a que se aplicou esse formato. O primeiro foi a aquisição, em dezembro de 2009, pelo B=NDES, de debêntures da JBS, convertidas em ações, no valor de 2 bilhões de dólares, para apoio do plano de expansão do ano de 2009. Nesse negócio, Guido Mantega interveio junto a Luciano Coutinho, inclusive em reuniões a que JB estava presente, para que o negócio saísse, sempre contornando as objeções do presidente do Banco.

[…]

O negócio subsequente foi o financiamento de 2 bilhões de reais, em maio de 2011, para a construção da planta de celulose da Eldorado. Também nesse negócio, Guido Mantega interveio junto a Luciano Coutinho para que o negócio saísse.”

O saldo de toda a ajuda dada pelos representantes do Governo para as faraônicas aquisições da JBS foi a propina de cerca de R$ 300 milhões, conforme informado pelo próprio empresário na sua confissão. Apenas a título de resgate histórico, a criação da JBS ocorre em 2005, quando se efetiva sua internalização com a aquisição da Swift Armou, empresa argentina. Na sequência, a operação muda, o BNDES não mais emprestaria, mas se tornaria sócio da empresa e todas as negociações relatadas na delação se referem às inúmeras incorporações de outros grandes frigoríficos.

O ponto de inflexão, portanto, que levou a JBS à condição de maior empresa de processamento de carne no mundo ocorreu em 2009 quando, num único dia, anunciou a “incorporação das operações frigoríficas do Bertin e a compra da Pilgrims´s Pride, a segunda maior empresa de abate de frango dos EUA” (SILVA, 2017, p. 24).

Mas o interessante é que a aquisição só foi possível porque o BNDES, sócio da JBS e da Bertin, subscreveu “R$ 2 bilhões de dólares em debêntures da JBS S/A, que deveriam ser permutadas por ações da JBS USA até fins de 2011” (SILVA, 2017, p. 24). Mas o pior ainda estava por vir: como não ocorreu a tal permuta, o BNDES converteu as debêntures pelo valor de face em ações, com um ágio de 28,5%, o que aumento sua participação na empresa em 30,4%.

A transação aqui resumidamente relatada foi objeto de investigação do Tribunal de Contas da União, que refez todos os passos dos empréstimos do BNDES à JBS. Vejamos alguns excertos do Acórdão 3011/2015-Plenário:

  1. A equipe de auditoria apontou que a missão do BNDES é ‘promover o desenvolvimento sustentável e competitivo da economia brasileira, com geração de emprego e redução das desigualdades sociais e regionais’, pelo que o Regulamento Geral das Operações – RGO do Banco estabelece que os estudos dos projetos submetidos para apoio devem considerar, entre outros, ‘os aspectos econômico-financeiros, de engenharia, jurídicos e de organização e gerência do postulante, bem como as informações cadastrais, as garantias propostas, os aspectos sociais e os relativos ao meio ambiente, além dos aspectos referentes à atenuação dos desequilíbrios regionais e ao desenvolvimento tecnológico do País’. 140. Não obstante isso, o achado descrito no item 3.6.1 do relatório de auditoria consignou o não atendimento aos aspectos relacionados ao desenvolvimento social do país, e a alguns dos aspectos econômicos e de desenvolvimento sustentável de interesse do país 141. Relativamente à ‘promoção do desenvolvimento sustentável e competitivo da economia brasileira’, a equipe de auditoria aponta que o Programa de Desenvolvimento Produtivo – PDP, que serviu de fundamento para pelo menos as duas últimas operações analisadas, tinha por objetivos, entre outros, ‘o aumento da participação do Brasil nas exportações mundiais’ e, especificamente em relação ao setor de carne, ‘expandir a liderança mundial desse setor, visando consolidar o País como o maior exportador mundial de proteína animal’. 142. A análise dos dados disponíveis sobre o setor demonstra uma evolução em sentido contrário. Segundo a equipe de auditoria, de 2007 a 2011 o volume de exportações de carne caiu 80,4% e, mesmo tendo havido recuperação nos últimos anos, os volumes exportados em 2014 ainda se encontravam aproximadamente 66% abaixo dos níveis de 2007. 143. Relativamente à posição do Brasil como exportador, observou-se a partir de 2007 uma redução da participação do Brasil no mercado mundial de carne, com crescimento de seus principais competidores, EUA, Austrália e Índia, culminando em 2014 com a perda da posição de maior exportador mundial de carne para essa última. 144. Em contraposição, a equipe de auditoria deixou consignado no relatório que ‘as aquisições pela JBS com o apoio do BNDESPar, da terceira e da quinta maiores empresas de carne bovina nos Estados Unidos, em 2007 e 2008, não evitaram a queda no volume de exportações de carne bovina brasileira nos anos seguintes, mas foram importantes para consolidar a recuperação dos Estados Unidos no aludido mercado de exportação’. 145. Em nenhuma das operações analisadas o BNDES considerou aspectos sociais dos projetos, como por exemplo o montante de empregos gerados, ou perdidos, no país como consequência das operações sob análise. Apesar de o BNDES apontar que a JBS passou de 19 mil empregados no país em 2006 para 117 mil em 2014, tornando-se a terceira maior empregadora do País, não há comprovação de que a aquisição das empresas no exterior tenha contribuído para esse resultado. É provável que tal elevação tenha resultado do processo de consolidação no setor de carne no Brasil no período indicado, o que fez com que a produção de carne, e consequentemente a mão de obra já utilizada, se concentrasse em poucas grandes empresas. Em sentido contrário ao afirmado pelo BNDES, o efeito dessa consolidação sobre o total de mão de obra no setor seria exatamente o oposto, pois processos consolidadores reduzem as duplicidades, inclusive as existentes em termos de mão de obra. 146. Um aspecto que faço questão de ressaltar com relação aos aportes de capital realizados pelo BNDESPar na JBS é que tais investimentos, muitas vezes, são realizados com recursos públicos subsidiados. […]147. Não obstante a ausência de certeza sobre esses valores, pode-se afirmar que R$ 5,1 bilhões, em recursos públicos, a princípio subsidiados, foram aportados pelo BNDESPar na JBS, sem uma criteriosa análise prévia de seus benefícios para o País em termos de desenvolvimento econômico e social e até mesmo sem uma avaliação a posteriori de tal benefício, o que demonstra desvinculação da concessão dos aportes de capital com a missão institucional do Banco e com suas normas internas, e, pior, com os interesses públicos que deveriam nortear todas essas ações. (grifo nosso)

Não podemos perder de vista que o BNDES é empresa pública que capta recursos públicos, sobretudo do Tesouro, FAT, PIS/PASEP, cujo objetivo é financiar investimentos de longo prazo na economia brasileira. Na prática, o que alavancou o maior frigorífico do mundo foi a intervenção estatal, que municiou a empresa com vastos recursos, para que esta última pudesse adquirir outros concorrentes.

Segundo apurações iniciais do TCU, neste curto espaço de tempo, os cofres públicos destinaram algo em torno de R$ 5,1 bilhões de reais aos Batistas, que, sem considerar a inflação, é o dobro do valor que será destinado pelo Governo Federal, por exemplo, para o orçamento de Ciência e Tecnologia em 2018 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2017).

A operação, como está sendo divulgada, foi permeada de denúncias de corrupção e de grave prejuízo aos cofres públicos, já que a forma de contratação e pagamento da dívida foi realizada por um procedimento pouco ortodoxo de aquisição de debêntures, pagamento de ágios e esfacelamento do valor original.

É para deixar embaraçado qualquer arauto do culto ao empreendedorismo, da meritocracia, do Estado mínimo e do “Deus Mercado”. A formação deste importante quadrante da “burguesia nacional” só foi possível, ao menos em sua dimensão planetária, não por obra de uma ética do trabalho, de uma vida regrada e pautada pela poupança do excedente, para que a roda girasse cada vez mais larga, mas por intermédio de uma deliberada política de Estado que aportou recursos públicos a um custo social altíssimo e movida por interesses, ao que tudo indica, escusos.

  1. JBS como emblema da “burguesia nacional”

Adotamos, do ponto de vista metodológico, a leitura sobre a “burguesia nacional” trazida por Caio Prado Júnior. A despeito do seu vínculo com o Partido Comunista Brasileiro, que compreendia o curso da história a partir de um etapismo inexorável e que esperava pela formação da burguesia nacional para que a oposição entre as classes fosse a válvula necessária para a revolução socialista, o Autor se afastava deste primado para lê-lo criticamente, notadamente com vistas à mundialização do capitalismo e a posição do Brasil neste contexto, pois a burguesia local não teria a força revolucionária que lhe era exigida em tempos idos, por conta das novas condições materiais. Segue nota a respeito do tema:

“A “burguesia nacional”, tal como é ordinariamente conceituada, isto é, como força essencialmente anti-imperialista e por isso progressista, não tem realidade no Brasil, e não passa de mais um desses mitos criados para justificar teorias preconcebidas; quando não pior, ou seja, para trazer, com fins políticos imediatistas, a um correlato e igualmente mítico “capitalismo progressista” o apoio das forças políticas populares e de esquerda. O anti-imperialismo tem no Brasil outro conteúdo e outras bases que interesses específicos da burguesia ou de qualquer de seus setores.” (PRADO JÚNIOR, 1977, p. 121)

As limitações da “nossa burguesia” estão relacionadas ao fato de que não tem ela nem condições, nem interesse para romper com aquilo que Prado Júnior chamou de imperialismo, por duas questões muito objetivas, que podem ser assim condensadas: a burguesia precisa, para sua constituição e manutenção, de recorrente auxílio do Estado, o que inviabiliza a ideia de rompimento abrupto; a inserção do país no capitalismo mundial pressupõe sua interlocução com estas forças e um imbricado inter-relacionamento, ou seja, desde 1848, com a traição da burguesia em relação aos operários, na luta contra o absolutismo, ficou claro que esta classe não iria medir esforços para manter suas relações de dominação, mesmo que isso resultasse em acordos com o antigo sistema ou, atualmente, entre os próprios concorrentes.

A ideia desenvolvimentista, fundamento anunciado para a adoção do tipo de política pública que alicerçou a JBS, como Prado Júnior já havia alertado tempos atrás, tem limites muito claros, e a associação entre o partido que se reivindica de esquerda e progressista com setores nacionais supostamente interessados no fomento à atividade econômica, para gerar expansão e geração de emprego, não passa de engodo diante das bem delimitadas circunstâncias impostas pelo capitalismo.

Vejamos o escólio de Prado Júnior:

“Há mister para a complementação daquela teoria, de uma burguesia progressista capaz de figurar como aliado burguês da revolução. E por isso as ocasionais coincidências entre as posições do capitalismo burocrático e as forças realmente progressistas da política brasileira […] Realmente é isso que vem ocorrendo no que respeita a orientação política de esquerda no Brasil […] É isso que levou o capitalismo burocrático à aliança e ao apoio das forças populares e de esquerda, que aceitaram essa aliança sem maior exame e com a simples atribuição a seus aliados, da qualidade consagradora de progressistas. Não foi, contudo, investigado em que consistia esse progressismo, nem se procurou analisar as reais características socioeconômicas e profissionais dos elementos burgueses que assim se aproximavam da esquerda. O simples fato da aproximação já valeu, por si só, de diploma de progressismo… Ingenuidade e inexperiência? Oportunismo?“(PRADO JÚNIOR, 1977, p. 127, grifo nosso)

Que eficaz lição deixou o Autor. Imaginamos que boa parte dos ideólogos petistas tenham tido acesso à obra, mas, por algum motivo, deixaram de lhe dar concretude e viabilizaram a concentração do capital nas mãos dos Batistas. Se o objetivo era, como anunciado oficialmente, o fomento à atividade econômica, industrial, que geraria empregos e melhoria nas condições sociais, o erro foi acreditar que o objetivo e compromisso da burguesia brasileira estaria atrelada ao progresso do país.

Soa pueril esta ilação. A história nos demonstra que a burguesia nacional nunca foi ousada suficiente para pensar nisso; sua lógica é o de acúmulo sem risco, ainda que isso, por exemplo, lhe exija traficar seres humanos e comercializá-los[4]. Como ainda nos informa PRADO JÚNIOR (1999, p. 121) a industrialização não significou, nem teve por objetivo o mais eficiente aparelhamento das atividades produtivas, para o consumo da sociedade, mas satisfazer necessidades de específicos setores. A opção desta classe nunca se voltou às condições estruturais e sociais do país e seria imensa ingenuidade dos governos petistas encararem os Batistas sob este prisma.

Eles se tornaram a maior empresa processadora de carne do mundo ao custo de dinheiro público e, como ficou comprovado pelo Tribunal de Contas da União, toda a operação estatal, que aportou vultosos recursos na JBS, não viabilizou o progresso que estava sendo prometido, tendo sido utilizado para fins particulares de acumulação.

Se o objetivo anunciado era falso, como ficou evidente na delação efetuada por Joesley Batista, o resultado é ainda mais nefasto, porque os recursos públicos foram utilizados de forma absolutamente irregular nas duas pontas. Suborno à burocracia estatal, ao custo social elevadíssimo, em troca da formação/fortalecimento de uma burguesia nacional capenga.

Aqui, talvez, esteja a quintessência do erro da política neodesenvolvimentista. Primeiro, devemos recordar que o ideário desenvolvimentista, suportado na doutrina de Celso Furtado, nos induz a acreditar que bastaria o aporte financeiro do Estado na industrialização brasileira para dar vazão ao mercado interno e, ao mesmo tempo, criar a classe trabalhadora e o mercado de consumo.

A tentativa, dentro do modelo descrito rusticamente acima, grassou porque não foram consideradas as tensões internas, advindas do conflito de classes, isto é, ao mesmo tempo em que a industrialização brasileira levava o país a um ótimo patamar econômico, desnudava as profundas desigualdades, que não foram corrigidas por este processo, mas intensificadas.

Basta lembrar que depois da primeira onda de industrialização (no pós-Primeira Guerra), o sistema brasileiro se suportou, notadamente com o chamado “milagre econômico” anunciado no regime militar, numa expansão da produção com brutal aumento das desigualdades e concentração de renda. A falta de políticas públicas protetivas e a passagem de dois longos períodos de regimes de exceção, em que todos os mecanismos de defesa dos trabalhadores foram desbaratados, permitiu ao grande capital a superexploração do trabalho, que jogou o Brasil no nada desejado terceiro lugar no mundo, no quesito de desigualdade de renda. (POCHMANN, 2014, p. 48)

E não é que aquele filósofo alemão estava certo, quando disse que os grandes acontecimentos se repetem, o primeiro como tragédia, o segundo como farsa? Pois bem, a ascensão de um governo popular, dito progressista, levou à mesma carga de equívocos já visualizados e o mais triste é que nem mesmo a denominação foi modificada: o “novo” paradigma apenas ganhou o “neo” na frente do termo desenvolvimentismo.

A título de ilustração, vejamos que BOITO JR., de alguma forma, comemora a tal nova fase desenvolvimentista, e elenca sua caracterização da seguinte forma: política de recuperação do salário mínimo e de transferência de renda; forte elevação da dotação orçamentária do BNDES para financiar as grandes empresas, a juros subsidiados; política externa de apoio às grandes empresas; políticas anticíclicas; investimento em infraestrutura. (BOITO JÚNIOR, 2012)

O que não foi visualizado pelo economista acima citado é que o problema se repetiu porque o conflito de classe, que tentou ser abafado ao longo dos mandatos petistas, se impôs, de forma que a política de financiamento do capitalismo rendeu ótimos resultados para os capitalistas que, ao menor sinal de crise, não titubearam em exigir e aplicar políticas de estrangulamento da classe trabalhadora.

Se em 2014, logo após a reeleição de Dilma, a JBS continuava festejando seus ótimos resultados, os trabalhadores eram “pegos de surpresa” com as medidas da reeleita, que durante a campanha prometeu “não mexer em direitos trabalhistas”, mas aplicou mudanças em várias legislações de caráter social, restringindo direitos.

E, mais do que isso, a ascensão da JBS como exportadora de carne, sequer tirou o Brasil da condição de posição periférica de simples fornecedor de gêneros primários ao mercado internacional (PRADO JÚNIOR, 1999), que vem desde o sentido da nossa colonização e que também se conforma num empecilho às necessárias modificações internas, de dinâmica econômica, que poderiam colocar o país num compasso diferente do que a história produziu até hoje.

A simbiótica relação entre público e privado também nos informa que a “burguesia nacional” foi incapaz de lançar suas bases e o caso eleito neste texto somente nos confirma tal hipótese, já que seria inimaginável a empresa dos irmãos Batista atingir os níveis alcançados sem uma espúria aliança com a burocracia estatal. Mais uma vez nos socorremos dos ensinamentos de Prado Jr.:

“A importância relativa, no conjunto das atividades econômicas brasileiras, desse setor híbrido em que negócios públicos e privados se entrelaçam e intimamente se combinam, é considerável. Isso se prende, de um lado, ao grande papel que o Governo federal desempenha na vida econômica do país, e relativamente a ela, como agente econômico e financeiro. E doutro, aos consideráveis poderes de que dispõe no que respeita à intervenção legal das atividades econômicas em geral […] Essa situação deriva, em última instância, de fatores históricos que dizem respeito à própria natureza da organização econômica e social brasileira no que tem de mais profundo; e se reflete numa estrutura política e estatal em que também se conservam acentuados traços herdados de remoto passado […] São essas circunstâncias que farão do Governo brasileiro um poderoso instrumento de acumulação capitalista privada que, pelo seu vulto e pelas condições específicas em que se realiza nitidamente se destaca no conjunto da vida econômica do país.”

E daí se origina uma categoria burguesa também à parte e suficientemente bem caracterizada, que se alimenta diretamente da ação estatal e das iniciativas públicas, e à custa delas se mantém e progride (PRADO JÚNIOR, 1977, p. 123-124).

A nova “burguesia nacional”, cristalizada na JBS, cuja articulação foi possível apenas por obra de um governo caracterizado por “progressista” e de suposta orientação aos interesses sociais, mais uma vez, não atinge o desiderato oficialmente buscado, o que fez naufragar uma suposta funcionalidade da fase “neodesenvolvimentista” e que, ao final e ao cabo, redundou somente na acumulação extraordinária que serviu exclusivamente aos interesses pessoais dos donos da empresa.

  1. Considerações finais

Em 2017 os donos da JBS acordaram com os representantes do Ministério Público Federal os termos de uma delação premiada, que incluía gravação de uma conversa nada republicana com o Presidente da República e com um Senador. Como a luta política é dinâmica, aquela imagem dos czares da carne, no dia da divulgação das denúncias, embarcando num “jatinho” para Nova Iorque, sob os abraços calorosos dos familiares, gerou um clima de consternação bem capitalizado pela classe política envolvida no escândalo.

O resultado é que os representantes da JBS amargaram um período de detenção e suas empresas não seguem o mesmo ritmo de antes. A aposta petista neodesenvolvimentista arrimada no tipo de negócio que o BNDES se envolveu, definitivamente, não cumpriu sua missão declarada. Serviu, ao que tudo indica, como fonte de propinas e, mais do que tudo, para uma super acumulação de capital dos Batistas.

A conciliação de classes, novamente, se envereda naquilo que sempre enveredou: o campo dito progressista é abandonado pela burguesia…basta lembrar que o principal expoente da malfadada política de conciliação, hoje, está encarcerado em Curitiba; os ataques aos trabalhadores pululam diariamente, como a reforma trabalhista, previdenciária, teto de gastos primários, entre tantos outros.

Nada diferente daquilo que o saudoso Caio Prado não tenha alertado.


[1] Advogado com especialização em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo e graduando do curso de Sociologia e Política da FESPSP.

[2] O mesmo Luciano Coutinho anunciou em abril de 2014 que estava encerrado o ciclo de apoio às campeãs nacionais. (SILVA, 2017, p. 29).

[3] Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2017/5/art20170519-04.pdf##LS>. Acesso em 14 abr. 2018.

[4] “Este início, cujo caráter manter-se-á dominante através dos séculos da formação brasileira, gravar-se-á profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Particularmente na sua estrutura econômica. E prolongar-se-á até nossos dias, em que apenas começamos a livrar-nos deste longo passado colonial. Tê-lo em vista é compreender o essencial da evolução econômica do Brasil, que passo agora a analisar” (PRADO JÚNIOR, 1977, p. 14).


Referências

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