Crítica à “A revolução brasileira”, de Caio Prado Jr., por Ruy Mauro Marini

Por Ruy Mauro Marini, via Revista Mexicana de Sociologia, México, 1967. (Analisando: A Revolução brasileira. Caio Prado Júnior, Editora Brasiliense, São Paulo, 1966.) Tradução de Maria Almeida.]

Na busca de proporcionar uma cobertura ideológica à divisão que se espalha atualmente nas fileiras do comunismo brasileiro, o autor da conhecida História econômica do Brasil (Buenos Aires, 1960) faz uma análise crítica, em sua mais recente obra, da tese básica do marxismo oficial no Brasil – a do caráter democrático-burguês, ou, se preferirem, antifeudal e anti-imperialista do processo revolucionário nacional. No entanto, o faz incompletamente, esquivando-se de discutir a própria validade de tal caracterização. Essa hesitação, compreensível em quem abraçou por tantos anos as teses do Partido Comunista Brasileiro, acaba, como veremos, por comprometer seriamente o esforço de classificação teórica que se pretende.

Prado Jr. rejeita claramente a concepção que apresenta as relações de produção vigentes no campo brasileiro como remanescentes feudais – concepção que tende naturalmente a propor a extensão do capitalismo ao campo como solução para o problema. Argumentou, com as mesmas estruturas da colonização portuguesa, analisando as situações concretas que se apresentam atualmente na agricultura brasileira; demonstra e proporciona com isso as melhores páginas do seu ensaio – o caráter capitalista dessas relações, cujas distorções não seriam reminiscências feudais, e sim escravistas.

Por outro lado, submete à severa crítica a teoria marxista oficial no Brasil, pondo em evidência de que se trata de uma aplicação mecânica das concepções elaboradas pela Terceira Internacional, no período estalinista.

Segue com sua argumentação tomando agora a tese consagrada de uma “burguesia nacional”, de caráter anti-imperialista e, após insistir no mesmo caráter de importação apresentado por essa tese, procura demonstrar a natureza própria das relações que tradicionalmente o Brasil tem mantido com o mundo capitalista, muito diferentes, certamente, daquelas que vigoraram nos países coloniais da Ásia e África. A contribuição teórica do autor, neste particular, não se distingue por sua originalidade, e fica atrás, em profundidade e penetração, dos estudos divulgados, nos primeiros anos da década, por autores como Wanderley Guilherme (Introdução ao estudo das contradições sociais do Brasil, Rio, 1963) e do Grupo “Política Operária”.

Retificado o enfoque, Prado Jr. considera que o sentido profundo do processo brasileiro, sua dialética, digamos assim, seria a transição de uma situação colonial “para uma coletividade nacionalmente integrada, ou seja, voltada a si mesma, e estruturada social e economicamente em função de sua individualidade coletiva e para atender às aspirações e necessidades próprias” (p. 130). Nessa perspectiva, se definiriam suas contradições fundamentais como as que se expressam no enfrentamento com o imperialismo e nas inadequações da estrutura produtiva às necessidades de consumo e, sobretudo, do emprego da população. Retoma-se assim, embora o autor não o diga explicitamente, a linha de pensamento que vem sendo desenvolvida em obras como as de Celso Furtado, do já citado Wanderley Guilherme e outros, que constitui a valorização de um dos filões mais fecundos do marxismo.

No entanto, é a partir daqui que começam a se manifestar as limitações do estudo. Preocupado em propor um programa político para a revolução brasileira e em identificar as forças sociais encarregadas de sua aplicação, Caio Prado vai se chocar com as insuficiências de sua análise de classe, as mesmas que o impediram de esclarecer a validade do caráter democrático-burguês proposto pelo marxismo oficial para a revolução brasileira.

Essas insuficiências já haviam sido percebidas nos ataques do autor aos erros da teoria revolucionária vigente, interpretada apenas como desvio de ordem subjetiva, efeito do prestígio estalinista, deficiência teórica, e não como o resultado das classes que participaram efetivamente em sua elaboração. O livro não faz sequer referência à pequena burguesia e ao papel desempenhado na constituição do Partido Comunista Brasileiro, bem como a conformação de sua ideologia. Mesmo quando se refere à penetração da ideologia burguesa no partido, Caio Prado o faz através de uma categoria duvidosa – a do “capitalismo burocrático” – que é deficiente por sua própria formulação, posto que se expressaria melhor como “burguesia burocrática”, e que não explica os enfrentamentos travados entre os grupos dominantes pelo controle do aparelho estatal. Deve-se reconhecer, neste particular, que tais enfrentamentos são explicados muito mais pelos conflitos entre a agricultura e a indústria, e pelos que emergem dentro do próprio setor industrial pela diferenciação de camadas tendentes a uma crescente diferenciação, bem como por enfrentamentos específicos com os interesses de grupos estrangeiros.

O autor trata, contudo, de identificar as forças revolucionárias, e as encontra nos trabalhadores da cidade e do campo, não tendo, porém, realizado uma análise profunda da burguesia, que só é tentada no que se refere às relações desta com o imperialismo. Não tem os elementos necessários para pôr em evidência as contradições que se desenvolvem no seio da sociedade brasileira entre o capital e o trabalho. Tende, pois, a superestimar o papel dos trabalhadores rurais, cuja ação hegemonizaria, no seu entender, a política revolucionária e aos quais o proletariado urbano deveria se submeter, transformado praticamente em braço auxiliar da organização e das reivindicações do campo. Tais reivindicações, referidas basicamente a problemas de emprego e de salário, tenderiam, segundo Caio Prado, a promover um reajuste das estruturas produtivas às necessidades reais da nação brasileira, o que implicaria criar bases para um desenvolvimento posterior a formas superiores de organização, ou seja, socialistas (embora esta ideia não chegue nunca a ser explicitada na obra).

Na etapa atual, no entanto, as reformas propostas não implicam uma mudança no sistema. Mesmo quando se refere ao Estado e a seu papel decisivo nesta fase, o autor não parece acreditar necessariamente em modificar suas bases de classe. Recomenda inclusive modéstia às “forças trabalhadoras e de esquerda”, as quais deveriam atuar “sem sectarismos, sem pretensões utópicas, sem as ânsias de conquistar posições de mando” (p. 294). No mesmo sentido, enfatiza o papel a ser desempenhado pela iniciativa privada no novo marco de desenvolvimento nacional planificado.

Tais objetivos contrastam singularmente com a análise da burguesia feita anteriormente, a qual aparecia como vinculada diretamente à grande propriedade agrária e ao imperialismo, e cada vez mais dependente deste último. A insistência em destacar este fato justifica a escolha dos trabalhadores da cidade e do campo como elementos propulsores da política tendente a estabelecer o desenvolvimento nacional planificado. Porém, deixa dúvidas se, ao se definir, em função de tal ação, as trincheiras da revolução e da contrarrevolução, como pretende o autor, a burguesia passará à primeira, podendo continuar comandando o aparelho do Estado.

As inconsequências de Prado Jr. quanto à caracterização da burguesia brasileira debilitam outros aspectos de sua análise, notadamente no que se refere à integração econômica continental (pp. 306-309). O autor se esquece, aparentemente, das vinculações que constatou entre a burguesia nacional e as empresas imperialistas e se limita a considerar a tendência à integração regional como um movimento derivado exclusivamente dos interesses dos grupos estrangeiros que operam na América Latina.

Por outro lado, a insuficiência da análise da burguesia não nos permite ver com clareza as diferenças que se expressam entre suas várias camadas (grande, média e pequena), nem sequer entre seus principais setores (indústria pesada e leve). No entanto, a compreensão de tais diferenças contribuiria muito mais para esclarecer as lutas em torno do controle do Estado do que o conceito de “burguesia burocrática”, visivelmente importado de certas análises da realidade mexicana, bem como situar melhor a posição da burguesia frente ao problema de desenvolvimento planificado e o atrito dali derivado em relação ao capitalismo internacional.

Finalmente, Caio Prado Jr. expressa a convicção de que, levando adiante suas reivindicações de salário e emprego, os trabalhadores rurais poderão abrir o caminho para a superação definitiva da velha sociedade brasileira, dentro de uma via progressiva, que não implica a ruptura radical do sistema vigente. Não analisa, contudo, o efeito das reivindicações similares levantadas pelos trabalhadores urbanos, os quais, em anos bem recentes, desencadearam um violento processo de radicalização política, aceleraram o processo da depressão econômica e levaram a um enfrentamento direto com as classes dominantes, que culminou com a ditadura militar de 1964.

O que o autor não considera em nenhum momento é a própria natureza do desenvolvimento capitalista brasileiro, o qual tem conduzido a uma integração crescente à economia capitalista internacional e tem motivado uma completa inadequação da estrutura de produção às necessidades de emprego e salário das massas trabalhadoras, tudo isso não em caráter circunstancial, e como consequência da sobrevivência de reminiscências coloniais, mas sim pela própria dinâmica do crescimento econômico em uma economia capitalista periférica. Isso, que constitui a tendência profunda da dialética capitalista no Brasil, coloca divisões muito mais radicais para as forças sociais envolvidas no processo do que as que Prado Jr. supõe.

Em última instância, o resultado é a invalidação definitiva das concepções reformistas, as mesmas que, apesar da crítica que faz ao reformismo oficial, continuam norteando o pensamento do autor.

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